Nos idos dos anos 1950, quem era fã de SdA e tinha coisas legais a dizer dificilmente ficava sem resposta quando escrevia uma carta para Tolkien. Aliás, nem precisava escrever coisas legais: podia ser pentelhação pura mesmo. Foi o caso do gerente de uma livraria católica de Oxford, que disse ter adorado a Saga do Anel, mas que discordava do fato de que os elfos "reencarnavam" na saga, por ser "má teologia".
Tolkien respondeu muito educadamente, dizendo que o principal problema
do ciclo de vida élfico não era teológico, mas biológico. "Elfos e
homens são evidentemente, em termos biológicos, uma raça só, ou não
poderiam se acasalar e produzir descendentes férteis. Mas, como alguns
já afirmaram que a longevidade é uma característica biológica, você não
poderia ter elfos ‘imortais’ e homens imortais, e ainda assim
suficientemente aparentados", escreveu o Professor.
E aí vem o pulo-do-gato, revelando que Tolkien sabia um bocado mais
sobre biologia teórica do que a gente poderia esperar. "Eu poderia
responder [a essa objeção] que essa ‘biologia’ não passa de teoria, e
que a moderna ‘gerontologia’, ou como você quiser chamá-la, sugere que
o ‘envelhecimento’ é algo bem mais misterioso, e menos claramente
inevitável em corpos de estrutura humana." Boa, Professor. Na mosca,
diriam muitos biólogos.
Dano acumulado
Parece loucura? Pois, ao menos em parte, parece ser verdade. O que
acontece é que o envelhecimento não é um processo exatamente idêntico
às outras fases do ciclo de vida dos animais, como o nascimento, o
crescimento e a chegada à maturidade sexual. Em outras palavras, o
consenso científico atual indica que envelhecemos e morremos
basicamente por causa do acúmulo de danos aleatórios às bases do nosso
metabolismo, até que chega um momento no qual ele perde a
funcionalidade de forma definitiva.
Desse ponto de vista, a morte é, em parte, um mistério, principalmente
do ponto de vista da seleção natural. Pode-se imaginar que indivíduos
imortais teriam uma vantagem reprodutiva sobre os que morrem, uma vez
que seriam capazes de gerar descendentes indefinidamente; dessa forma,
passariam a "imortalidade" a sua prole, de maneira que, no longo prazo,
só restariam membros imortais daquela espécie em dado ambiente.
Acontece, porém, que as coisas não são nem de longe tão simples. No
mundo real, os recursos não são infinitos, nem os ambientes são
totalmente hospitaleiros. É preciso fazer "escolhas" (normalmente
inconscientes, ditadas pela dinâmica do organismo, claro): a energia
que poderia ser gasta para preservar um corpo pelos séculos dos séculos
compete com a que precisa ser investida na produção de bebês.
E é aí que o bicho pega. Uma vez garantida a reprodução, as demandas da
seleção natural ficam enfraquecidas: não faz mais muita diferença o
organismo entrar em colapso se ele já garantiu a geração futura. Aliás,
há indícios de que os genes que favorecem a fertilidade muitas vezes
podem estar envolvidos com os problemas da velhice. É por isso que a
natureza "prefere" majoritariamente as espécies que se reproduzem
loucamente e morrem cedo às que são muito longevas e têm poucos filhos.
Cláusula élfica
Você já deve estar roendo as unhas, perguntando-se onde diabos os elfos
entram nessa história. Bem, digamos que há uma espécie de "cláusula
élfica" capaz de subverter, ao menos em parte, a lógica inescapável do
envelhecimento. A espécie "Matusalém" precisa ter um determinado
conjunto de características — e os elfos se dão impressionantemente
bem nesse quesito, coincidência ou não.
Em síntese, a pressão para se reproduzir — e envelhecer — diminui
muito se você tem tamanho (relativamente) grande, poucos inimigos
naturais, crescimento lento e quantidade reduzida de filhotes.
Ora, todos esses requisitos são preenchidos de forma perfeita pelos
elfos tolkienianos. Vejamos: o tamanho equivalente ao dos seres humanos
é de grande porte para mamíferos (e, oras, elfos são mamíferos); poucos
seres de Arda são capazes de fazer frente aos elfos (fora exceções
malévolas sobrenaturais, tipo balrogs e lobisomens da vida); sabemos
que eles só chegam à maturidade aos 100 anos; e o único elfo a ter sete
filhos na história é Fëanor (a regra é três ou menos rebentos, mesmo
que o elfo em questão viva milhares de anos).
Essas características são as mesmas de seres de vida muito longa no
mundo real, como grandes árvores ou tartarugas marinhas. Ciclos de vida
como os desses seres parecem permitir uma manutenção altamente
eficiente das funções do organismo, sem os malefícios advindos de uma
reprodução desenfreada. Como último indício, poderíamos acrescentar
outro dado empírico: animais que comem pouco, num regime de restrição
calórica (mas sem ficarem desnutridos), parecem ganhar
surpreendentemente em longevidade. Talvez seja esse o conceito por trás
dos pequenos bocados de lembas capazes de sustentar os Eldar por
longuíssimos períodos.
Razão literária
Para encerrar, voltemos à carta de Tolkien. É claro que todos os
elementos citados acima até hoje não foram suficientes para criar uma
espécie não apenas longeva, mas capaz de durar "enquanto Arda durar",
que parece ser o caso dos elfos tolkienianos. O Professor, continuando
seu raciocínio, lembra que seu principal propósito foi literário e
filosófico, e não científico.
"Elfos e homens são representados como biologicamente aparentados nesta
história porque os elfos são certos aspectos dos homens, e de seus
talentos e desejos, encarnados em meu pequeno mundo. Eles possuem
certas liberdades e poderes que gostaríamos de ter, e a beleza e o
perigo e a tristeza da posse dessas coisas é exibida neles."E no próximo "Ciência da Terra-média": dragões e seus genes!