"Hã????", dirá você. Calma, que o raciocínio é bem menos estranho do
que parece. Não dá para negar que os protagonistas e heróis trágicos do
universo tolkieniano quase sempre são os Noldor, o segundo grande ramo
da espécie élfica. A etimologia do nome dos Noldor indica que eles são
simplesmente chamados de "os que sabem". O que é exatamente o mesmo
significado de "cientistas" no latim de onde a palavra deriva.
O mero fato de, por um lado, o maior dos Noldor — Fëanor, claro —
jogar quantidades astronômicas de estrume no ventilador e, por outro, a
decisão de Tolkien de retratá-lo não como um vilão, mas como um herói
trágico, diz muita coisa sobre a visão que o Professor realmente tinha
do avanço científico e tecnológico. Para entender isso um pouco melhor,
confira o que ele diz em uma de suas cartas (minhas desculpas ao
Tilion, tradutor das Cartas — estou apenas com a versão em inglês em
casa no momento):
"Esse ramo dos Altos-Elfos, os Noldor ou Mestres da Tradição, sempre
estiveram do lado da ‘ciência e tecnologia’, poderíamos dizer: eles
queriam ter o conhecimento que Sauron genuinamente tinha, e os de
Eregion recusaram os avisos de Gil-galad e Elrond. O ‘desejo’ típico
dos elfos de Eregion — uma ‘alegoria’, se você quiser, do amor pela
maquinaria e por aparelhos tecnológicos — também é simbolizada por sua
amizade especial com os anões de Moria.
Eu não os considero mais malévolos ou insensatos (embora corram o mesmo
perigo) do que católicos que participem de certos tipos de pesquisas
físicas (p. ex. as que geram, mesmo que apenas como subprodutos, gases
venenosos e explosivos): coisas que não necessariamente são más, mas
que, as coisas sendo como são, e a natureza e as motivações dos mestres
econômicos que providenciam todos os meios para o trabalho deles sendo
como são, quase certamente vão servir a objetivos malignos. Pelos quais
eles não necessariamente terão culpa, mesmo que estejam cientes deles."
Os detalhes que emergem dessa carta e de outros textos do Professor
mostram, portanto, que a briga dele não era com a ciência propriamente
dita. Então, qual era o problema?
Liberdade e escravidão
Não dá para dizer que o problema de Tolkien era com a tecnologia. Se
examinarmos a questão a fundo, vamos ver que o Professor era um grande
crítico da tentação manipuladora que a ciência e a tecnologia
representavam. Ele considerava que a ambição à la Noldor de entender
como a natureza funcionava e de criar coisas novas era um direito de
criaturas como os elfos (e nós, claro), mas também reconhecia que isso
abria portas para uma série de tendências não muito agradáveis.
Em grande medida, podemos dizer que ele estava certo. O conhecimento
científico e sua aplicação tecnológica resolvem problemas, mas também
os criam. A poluição, o aquecimento global, a destruição da
biodiversidade na Terra inteira — essas ameaças derivam diretamente
dos últimos séculos de desenvolvimento, quando a humanidade tentou
arrebanhar todos os recursos do planeta para seu próprio benefício.
Para Tolkien, era essa tendência a escravizar a natureza, que sempre
corre o risco de corromper a ciência e a tecnologia, que precisava ser
combatida. O sonho dele era que o conhecimento humano se tornasse mais
parecido com o élfico, no qual as habilidades do Noldor eram usadas
para embelezar ainda mais a natureza e fazê-la florescer, e não para
sugá-la até a última gota. Para o nosso próprio bem, espero que a gente
consiga chegar lá algum dia.