A primeira razão está no fato de Tolkien esmerar-se em delinear e glorificar em sua obra a Magia Nórdica, para Miéville este era o brado que faltava para aqueles que sempre lamentaram a hegemonia dos clássicos classicistas e a falta de calor nos mitos gregos e romanos.
A Tragédia quem diria, é a segunda razão. Para Miéville ao contrário do que muitos possam achar a história tolkieniana é trágica. No final, nem todas as lágrimas nos olhos dos personagens e dos leitores são expressões de felicidade. Se por um lado, os bons ganharam, por outro a “vergonha” que a época representa contribui para diminuir a Glória. Vendo por este prisma, é impossível negar isso. Se a união de personagens tão diversas por uma causa maior demonstra a grandeza da obra, o fato dessa união ser necessária é só um fato a mais para comprovar que a decadência da Terra Média caminhava a passos largos, e sim isso é trágico!
“O episódio do Expurgo do Condado conclui bem, naturalmente, na medida em que ocorre, mas em relação à sua própria insignificância é apenas aquilo que foi, é brilhantemente insatisfatório, anunciando uma era de paródias de epopéias degradadas, onde não são apenas os elfos que vão: você não pode sequer mais obter um bom Senhor do Escuro. Qualquer que seja a visão que temos como a unidade por trás da visão trágica de Tolkien e, no entanto, dizem respeito à sua política e estética, a tragédia da desordem cotidiana da Terra Média, confere uma poderosa melancolia lamentavelmente ausente em muito do que seguiu. Isso merece ser celebrado e cultivado.”
(…)
“Podem falar o que quiser de Tolkien, mas o fato é que ele criou bons monstros. Shelob, Smaug, o Balrog… Com seus espantosos nomes e a descrição vivaz de suas malevolências. Ninguém mais pode descrever sobre aranhas gigantes a não ser através de Shelob, todos os dragões são agora auxiliares. E assim por diante.”
A terceira razão está justamente aí, mas mais precisamente no Monstro na Água: o fato de Tolkien utilizar a técnica de esconder mais do que revelar é o que garante o diferencial aqui. Sabemos muito pouco sobre a criatura de muitos braços que habita o lago em Moria. E isto é o que a torna sobrenatural e fantástica, a incerteza que paira sobre a criatura só a torna mais forte e mítica.
A quarta razão remete a Alegoria. E talvez agora, os fãs mais afoitos devem estar pensando que este cara é doido afinal Tolkien sempre falou que sua obra não era alegórica e sim que possuía uma aplicabilidade variada ao pensamento e à experiência do leitor. É, é justamente por aí que Miéville passeia. Segundo ele, a obra de Tolkien é rica em metáforas. E aqui cabe explicar justamente a diferença entre alegoria e metáfora: a última é fecunda, polissêmica, geradora de significados, mas evasiva de estabilidade; a alegoria é fecunda e interessante em grande parte, até que falha. Ao negar a alegoria, Tolkien recusa a noção de que uma obra de literatura é de certa forma redutora, principalmente, exclusivamente, ou mesmo “sobre” qualquer outra coisa, de forma restritiva e precisa.
“O problema não é o fato de que a alegoria exagere inutilmente sobre o ‘significado’ de uma história ‘pura’, mas sim o fato de que ela a reduz criminalmente.
Se Tolkien iria seguir todo o caminho com este argumento não é o ponto aqui: a questão é que o seu “desagrado cordial” é absolutamente fundamental para o projeto de criação de uma ficção fantástica viva e irredutível em si, tornando a ficção digna deste nome.”
A última razão, mas não menos importante é a Subcriação:
E na falta de palavras que melhor pudessem explicar o que o termo significa, recorro às palavras de Tolkien sobre o assunto.
“(…)A filologia foi destronada do lugar elevado que ocupava neste tribunal de inquérito. A opinião de Max Müller, a visão da mitologia como “doença da linguagem”, pode ser abandonada sem remorso. A mitologia não é nenhuma doença, porém pode adoecer, como todas as coisas humanas. Da mesma forma alguém poderia dizer que o pensamento é uma doença da mente. Estaria mais próximo da verdade dizer que as línguas, em especial as européias modernas, são uma doença da mitologia. Mas ainda assim a Linguagem não pode ser descartada. A mente encarnada, a língua e o conto são contemporâneos em nosso mundo. A mente humana, dotada dos poderes de generalização e abstração, não vê apenas grama verde, discriminando-a de outras coisas (e contemplando-a como bela), mas vê que ela é verde além de ser grama. Mas quão poderosa, quão estimulante para a própria faculdade que a produziu, foi a invenção do adjetivo: nenhum feitiço ou mágica do Belo Reino é mais potente. E isso não é de surpreender: tais encantamentos de fato podem ser vistos apenas como uma outra visão dos adjetivos, uma parte do discurso numa gramática mítica. A mente que imaginou leve, pesado, cinzento, amarelo, imóvel, veloz também concebeu a magia que tornaria as coisas pesadas leves e capazes de voar, transformaria o chumbo cinzento em ouro amarelo e a rocha imóvel em água veloz. Se era capaz de fazer uma coisa, podia fazer a outra, e inevitavelmente fez ambas. Quando podemos abstrair o verde da grama, o azul do céu e o vermelho do sangue, já temos o poder de um encantador em um determinado plano, e o desejo de manejar esse poder no mundo externo vem a nossa mente. Isso não significa que usaremos bem esse poder em qualquer plano. Podemos pôr um verde mortal no rosto de um homem e produzir horror, podemos fazer reluzir a rara e terrível lua azul, ou podemos fazer com que os bosques irrompam em folhas de prata e os carneiros tenham pelagem de ouro, e pôr o fogo quente no ventre do réptil frio. Mas numa “fantasia”, tal como a chamamos, surge uma nova forma: o Belo Reino vem à tona, o Homem se torna subcriador.
Assim, um poder essencial do Belo Reino é o de tornar as visões da “fantasia” imediatamente efetivas através da vontade. Nem todas são belas, nem mesmo salutares, certamente não as fantasias do Homem decaído. E ele maculou os elfos que têm esse poder (em verdade ou fábula) com sua própria mácula. Este aspecto da “mitologia” – a subcriação, não a representação ou interpretação simbólica das belezas e dos terrores do mundo – é muito pouco considerado, em minha opinião. (…)”
J. R. R. Tolkien
Sobre Histórias de Fadas, pp. 28-29.
Que a Terra Média não foi o primeiro mundo a ser inventado é sabido. Mas a forma como esse mundo é encarado e gerido é o que representa a revolução. Anteriormente, era consenso que o mundo mágico tinha papel secundário para o enredo. Tolkien foi o arauto do que se mostrou uma inversão extraordinária: o mundo vem primeiro, e só então as histórias ocorrem, dentro dele. Quer se comemore ou lamente este fato, esta forma de abordagem literária é incrivelmente poderosa.
Miéville finaliza o seu artigo da seguinte forma:
“Nunca faltam elogios à Tolkien, mas isso não é razão para não repetir aqueles mais merecidos, ou, mais ainda, de salientar a razões negligenciadas por justificados e fervorosos elogios.”
Talvez Miéville ainda não tenha se dado conta, mas parece-me que ele também já está sendo “fisgado” pela obra do professor. E ter um autor reconhecido elogiando a obra tolkieniana não pelos aspectos aos quais estamos mais acostumados e sim por outros menos alardeados é sem dúvida nenhuma muito representativo.
Algumas informações sobre o autor:
China Miéville é inglês, escritor de ficção fantástica e membro do Partido Socialista Operário. É autor dos romances Rei Rato, Perdido Street Station, The Scar e Iron Council. Pertence a um grupo de escritores por vezes chamado de Weird Fiction (“Ficção Estranha”), os quais conscientemente tentam manter-se longe das fantasias do gênero Tolkien.
Vocês podem ler o artigo de China Miéville na íntegra em seu blog Omnivoracious
Fontes:
Tolkien Library
J.R.R. Tolkien. Sobre Histórias de Fadas. pp. 28-29.
“o fato de Tolkien utilizar a técnica de esconder mais do que revelar é o que garante o diferencial“,,o senhor peter deveria ter lido esse artigo…..
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