Soberba e Humildade: A Grandeza e Miséria Humana

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Escrito por Ives Gandra

Na Segunda Guerra Mundial, os Aliados acreditavam que bombardeando as fábricas e fontes de energia da Alemanha poderiam levar à falta de suprimentos e ao colapso do regime nazista, o que encurtaria a guerra. No entanto, a relação entre o custo e o benefício dessa estratégia não se mostrava animadora: cerca de 25% dos aviões que partiam em missão eram abatidos pelos caças ou baterias anti-aéreas inimigas e um tripulante de B-17 ou B-24 tinha que cumprir 35 missões para estar liberado e voltar para casa. Assim, para os pilotos, navegadores, artilheiros e bombardeadores americanos, a perspectiva era bem pouco esperançosa de se sair vivo da guerra.

O que os tripulantes de um B-24 mais temiam era a flak, a artilharia anti-aérea alemã: quando enquadrava um esquadrão de bombardeiros, muitos aviões eram atingidos e, com uma boa dose de sorte, conseguiam saltar de paraquedas, passando o resto da guerra como prisioneiros dos alemães. A maioria, no entanto, explodia junto com seus aviões. Nesse clima, a percepção da impotência na condução da própria existência, bem como da dependência recíproca e de um Poder mais elevado era quase física. Assim descreve Stephen Ambrose as reações dos membros da tripulação do Dakota Queen, pilotado por George McGovern (posteriormente senador e ex-candidato à presidência americana), na missão do dia 16 de dezembro de 1944, para bombardear as refinarias de petróleo de Brux, na Tchecoslováquia (mesmo dia do contra-ataque alemão nas Ardenas):

“McGovern pôs o Dakota Queen em formação numa clareira da cobertura das nuvens, mas ‘de repente sumiu tudo’. A formação inteira estava voando dentro das nuvens. McGovern manteve a sua posição, a de número três, mas ao chegar acima das nuvens descobriu que o avião da posição dois voava à mesma altitude, mas à sua esquerda. Eles haviam se cruzado. ‘Eu fiquei gelado ao ver aquilo’. Ao perceber a situação, o piloto do líder perguntou pelo rádio: ‘O que é que está havendo aqui?’. McGovern gesticulou para o outro piloto subir enquanto o Dakota Queen descia, e eles se cruzaram novamente até chegar à posição correta. ‘Aquele foi o momento em que estive mais perto de morrer, levando comigo a tripulação (10 homens) e o nosso bombardeiro’, disse McGovern. Ele tremeu de medo e de ‘saber quão pouco controle temos sobre nosso destino quando o tempo está no comando. Entre as nuvens não havia nada que se pudesse fazer exceto rezar, porque não dava para ver absolutamente nada’. Nesta ocasião, Rounds (o co-piloto) disse a McGovern: Deus tomou conta de nós’.

“O flak sobre Brux foi intenso. ‘Eles puseram aquela coisa lá em cima’, nas palavras de McGovern, ‘quase como se um artista a tivesse desenhado’. McGovern tinha a impressão de que os artilheiros alemães estavam ficando melhores a cada ataque. ‘Aqueles obuses estavam chegando cada vez mais perto de nós’. Ele rezou muitas orações durante aquele bombardeio, uma coisa que fazíamos instintivamente’. (“Azul Sem Fim”, Bertrand Brasil – 2007 – Rio, pg. 162) (negritos não constantes do original).

A percepção do pouco controle que temos sobre o nosso destino, o que levava os membros das tripulações dos bombardeiros americanos a rezar instintivamente, é uma captação das mais antigas da humanidade. Platão, ao desenvolver o seu projeto educativo (paidéia) na obra As Leis, dizia que o homem seria um fantoche nas mãos de Deus ou dos instintos (n. 645B). A paidéia seria a direção da vida humana pelo fio do logos, manejado por Deus, em vez do homem se deixar levar pelos instintos (cfr. Werner Jaeger, “Paidéia”, Martins Fontes – 2003 – São Paulo, pg. 1315).

A visão de fantoches é poética, para retratar uma realidade palpável: a de que não temos controle sobre os fios que governam nossa vida. Prezamos muito nossa liberdade e auto-determinação, mas nem temos tanta liberdade assim, pois realmente, quem se deixa levar pelas paixões se torna escravo dos instintos, nem conseguimos dar o rumo que gostaríamos à nossa vida.

Com efeito, a sensação que McGovern teve, de ficar gelado ao perceber que acabara de escapar da morte por um triz, é mais comum do que imaginamos. Quem não se sentiu assim, após escapar de um acidente de carro, ao marcar um gol milagroso diante de uma defesa impenetrável (ou defender uma boa indefensável, ou mesmo levar um “frango” inexplicável), ao ser guindado a um cargo ou posição inesperada por confluência de fatores favoráveis (ou, pelo contrário, fracassar, quando fez tudo direito)?

Não posso me esquecer do dia em que, numa excursão, nos idos de 1983, saia do Rio Maranhão, na fronteira norte do Distrito Federal, e, ao subir a encosta da margem num dia chuvoso, senti algo escorregando por entre minhas pernas: era uma cascavel, que, pega de surpresa, não havia tido tempo de armar o bote. Pulei por cima dela, que escorregou em direção ao rio. Na hora, tive a presença de espírito de reagir rapidamente, afastando-me e avisando o resto do pessoal para voltar para o rio e subir mais à frente. Mas, passada a adrenalina momentânea, também gelei ao pensar sobre como e do que havia escapado.

Todas essas experiências e as que cada um traz na memória estão a nos lembrar nossa condição de criaturas, ou seja, de seres contingentes e não senhores do seu destino. Experiências que servem para desenvolver em nós a tão mal compreendida e, por que não dizer, humilhada virtude da humildade. Digo humilhada, porque despojada pela cultura moderna de toda a sua grandeza e importância.

Expliquemo-nos. A palavra que hodiernamente se usa na linguagem comum para falar de uma pessoa apoucada, pobre, tímida e pouco relevante na escala social é que é uma pessoa humilde. Nada mais distante do que seja a virtude da humildade.

S. Tomás de Aquino definia a humildade como a virtude pela qual nos avaliamos da maneira que corresponde à realidade. Faz parte da virtude da temperança, porque supõe encontrar o ponto de equilíbrio para o amor-próprio (cfr. “Suma Teológica”, II-II, q. 161, art. 6; q. 162, art. 3, ad 2). Josef Pieper destaca que o vício oposto à humildade é a soberba, que, mais do que uma falta para com os homens (julgar-se melhor e superior aos demais), é a negação, contrária à realidade, da relação de dependência da criatura para com o Criador: “é um desconhecimento da criaturalidade do homem” (“Virtudes Fundamentais”, Editorial Áster – 1960 – Lisboa, pgs. 268-269).

A soberba é um dos sete pecados capitais, sendo também conhecida como orgulho. Distingue-se da vaidade pelo seu aspecto mais interior e profundo. Dizem que o orgulhoso é aquele que tem tanta convicção de sua superioridade sobre os demais homens que não precisa alardeá-la. Já o vaidoso, não tendo tanta certeza e vivendo a opinião alheia, procura em tudo e com todos mostrar suas virtudes, feitos e qualidades… Parece, este último, defeito feminino, mas é muito mais comum nos homens, pois a vaidade intelectual supera a vaidade física. Característico é o comentário do escritor narcisista: “Já falamos muito de mim: Chega! Agora, falemos um pouco de você: O que você achou do meu último livro?”.

Mas fiquemos inicialmente no orgulho e na soberba, que retratam a nossa aparente grandeza e real miséria.

Na obra de J.R.R. Tolkien, especialmente nos “Contos Inacabados de Númenorë e da Terra Média”, o conto da Ilha de Númenorë, à semelhança da lenda de Atlântida, é das melhores descrições da evolução da soberba, plasmada na dinastia dos reis numenorianos, cada vez mais prepotentes e distanciando-se do tradicional culto à Divindade. Assim podemos resumir essa evolução, em seus passos mais significativos (baseado na sinopse dessa obra, que fizemos em nosso “O Mundo do Senhor dos Anéis”, Martins Fontes – 2006 – São Paulo, pgs. 79-100):

a) Em “O Silmarillion”, Tolkien desenvolve as bases de sua mitologia inglesa, descrevendo de forma poética a criação do mundo e a origem do mal sob a imagem de um Deus Único (Eru ou Illúvatar) que cria seres puramente espirituais (os Ainur ou Vala) e lhes dá uma tema de música para desenvolverem conjuntamente, sendo que um deles (Morgoth ou Melkor), por soberba, deseja desenvolver seu próprio tema e não se submeter à vontade de seu Criador, separando-se dos demais, e passando a ter como propósito da existência destruir tudo aquilo que os demais Vala (que seriam comparados aos deuses da mitologia antiga) vão construindo na esteira da música proposta por Illúvatar.

b) Assim, a estória da Primeira Era da Terra Média é a estória da luta entre o bem e omal: entre Morgoth e os demais Vala, da qual participam as principais criaturas inteligentes de Illúvatar, ou seja, os elfos (seres corpóreos não sujeitos à morte natural) e os homens (seres mortais). Essa Era termina com a vitória dos Vala sobre Morgoth, mas com a destruição da região de Beleriand, onde se haviam construído os principais reinos dos elfos, invadida pelo mar.

c) A estória da Segunda Era da Terra Média se desenvolve especialmente nos “Contos Inacabados de Númenorë e da Terra Média” e começa com os Vala, como recompensa pelos  sofrimentos que os homens haviam passado na luta contra Morgoth, preparando-lhes uma ilha entre a Terra Média e Aman, denominada Númenorë, para a qual se dirige Elros (primeiro rei da ilha) e os descendentes das principais casas humanas (passando a compor o povo dos dúnedain, de notável longevidade). No entanto, aos numenorianos, os Vala impõem, além da mortalidade, a “interdição” de navegarem para o Oeste, para as Terras Imortais.

d) Assim, no princípio de seu reinado, os reis numenorianos reinavam em Armenelos (sua capital) e prestavam o culto divino na montanha de Meneltarma. Com o passar do tempo, a monarquia numenoriana vai se tornando poderosa e navegante, conquistando partes do litoral da Terra Média e participando da Primeira Guerra contra Sauron, braço direito de Morgoth e continuador de seus pérfidos desígnios de dominação e destruição da obra criadora de Illúvatar, que se havia feito passar por emissário dos Vala diante dos elfos, os quais forjaram os anéis do Poder, com a ajuda de Sauron, que, por sua vez, forjou o Um Anel, para a todos dominar.

e) A decadência de Númenorë começa pela arrogância de seus reis, que antes iam à Terra Média para ajudar os homens que lá ficaram, passando a oprimi-los com tributos, trazendo para Númenorë ouro e prata. Começam a desejar ir para Aman, rebelando-se contra seu destino mortal e falando abertamente contra os Vala. Formam-se dois partidos: os homens do rei (contrários aos elfos) e os “fiéis” (que buscam preservar a amizade com os elfos). Quanto mais aumenta a soberba e ambição dos reis numenorianos e seu apego à vida, mais diminui seu tempo de vida. Os últimos reis começa a perseguir os “fiéis” e já não mais reverencia Illúvatar na Meneltarma.

f) O último rei numenoriano é Ar-Pharazôn, que se  torna o mais poderoso e arrogante de todos os reis de Númenorë. Seu desejo de grandeza leva-o a armar uma grande frota, com a qual dirige-se à Terra Média para enfrentar Sauron. Desembarcando com seu poderoso exército em Umbar, intimida Sauron, que decide submeter-se a Ar-Pharazôn, de modo a conquistá-lo para os seus propósitos. Sauron vai para Númenorë como prisioneiro, mas acaba se tornando o principal conselheiro do rei, convencendo-o de que o verdadeiro Senhor do Mundo seria Morgoth, a quem deveriam prestar culto, para obterem a libertação da morte.

g) Ar-Pharazôn constrói um grande templo em honra de Morgoth, no qual oferece sacrifícios humanos, perseguindo dessa forma os “fiéis”. Amandil, descendente dos senhores de Andúnië, decide descumprir a ordem real e a interdição dos Vala e viajar para o Ocidente, para tentar obter nova salvação através dos Vala. Avisa os filhos para ficarem preparados para fugir de Númenorë quando a desgraça vier.

h) Ar-Pharazôn, convencido por Sauron, decide enfrentar os Vala, armando uma grande frota. Quando chega com ela à terra de Aman, Illúvatar provoca uma grande fenda no mar que traga toda a frota de Ar-Pharazôn, separando para sempre a terra abençoada, do restante do mundo. Quando a armada dos numenorianos havia zarpado para Aman, Elendil, filho de Amandil, e seus dois filhos Isildur e Anárion, fogem de Númenorë numa pequena frota, em direção à Terra Média, escapando, assim, da destruição de Númenorë, que é tragada inteira pelas águas. Sauron, com o desastre de Númenorë, perde pela 2ª vez a forma corpórea.

A estória de Númenorë é a história da ascensão e queda do orgulho humano, bem retratada pela música popular brasileira, na “A Banca do Distinto”, de Billy Blanco:

“Não fala com pobre, não dá mão a preto, não carrega embrulho.
Prá que tanta pose doutor?
Prá que esse orgulho?
A bruxa que é cega, esbarra na gente, a vida estanca.
O infarto te pega doutor, acaba essa banca.
A vaidade é assim, põe o tonto no alto, retira a escada,
fica por perto esperando sentada,
mais cedo ou mais tarde ele acaba no chão.
Mais alto o coqueiro, maior é o tombo do tonto
afinal, todo mundo é igual, quando o tombo termina,
com terra por cima e na horizontal”.

Pensando no antídoto contra a soberba, orgulho e vaidade, que é a virtude da humildade, chama a atenção, folheando as páginas do Evangelho, que a única virtude em relação à qual Cristo se coloca expressamente como modelo, não apenas no lava-pés, é justamente a virtude da humildade (de um Deus que se faz homem, despojando-se do apanágio da divindade, para conviver com os homens):

“Vinde a mim, vós todos que estais aflitos sob o fardo, e eu vos aliviarei. Tomai meu jugo sobre vós e recebei minha doutrina, porque eu sou manso e humilde de coração e achareis o repouso para as vossas almas. Porque meu jugo é suave e meu peso é leve” (Mt 11, 28-30).

Todo o livro do “Senhor dos Anéis”, obra-prima de J.R.R. Tolkien, é uma ode à humildade, no mais genuíno espírito cristão: “Aquele que se exaltar será humilhado, e aquele que se humilhar será exaltado” (Mt 23, 12); “Derrubou do trono os poderosos e exaltou os humildes” (Lc 1, 52). A vitória sobre todo o orgulho e prepotência de Sauron, o Senhor das Trevas, só é possível pela confiança de Gandalf nas mais humildes e fracas, do ponto de vista físico, das criaturas inteligentes da Terra Média: os hobbits. A aparente pequenez dos habitantes do Condado não deixava perceber toda a sua fibra moral.

Pensando em outro paladino da humildade e da grandeza moral, lembro que, numa entrevista sobre o Fundador do Opus Dei, poucos anos após o falecimento daquele, o Bispo de Leeds relembrava que quando pediu a S. Josemaría Escrivá (1902-1975) um retrato seu de lembrança, ele lhe deu um pequeno burrico de madeira. E o bispo disse que o colocou sobre a lareira de sua residência: “Olho para ele quando estou me tomando muito a sério”.

Tomar-nos muito a sério é darmo-nos muita importância. É dar muita importância ao que nos acontece. E aí o orgulho sobe e se acende à menor desatenção de que somos objeto. Daí a importância da virtude da humildade para se viver e trabalhar com eficácia.

S. Teresa de Ávila (1515-1582) dizia que “a humildade é a verdade”. A verdade sobre nós e o mundo. Diante de Deus, que é o Criador, nós somos nada. Essa a verdade que não podemos esquecer.

A imagem do burrico representa plasticamente como devemos ser no trabalho:

“Pensai nas características de um burro, agora que vão ficando tão poucos. Não no burro velho e tosco, rancoroso, que se vinga com um coice traiçoeiro, mas no burrico jovem: as orelhas estiradas como antenas, austero na comida, duro no trabalho, com o trote decidido e alegre. Há centenas de animais mais formosos, mais hábeis e mais cruéis. Mas Cristo se fixou nele, para apresentar-se como rei ante o povo que o aclamava” (S. Josemaría Escrivá, “É Cristo que Passa”, n. 181).

Guimarães Rosa, em seu conto “O Burrinho Pedrês” captou bem essa realidade ao dizer que: “A estória de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida” (“Sagarana”, Editora Nova Fronteira – 1997 – Rio, p. 18). A descoberta do acadêmico brasileiro é a da grandeza da vida corrente. Os grandes feitos não são possíveis se se descuida do ordinário.

Mons. Escrivá apontava para as várias facetas da vida de um burrico que deveriam nos servir de exemplo:

“Bendita perseverança a do burrico de nora! – Sempre ao mesmo passo. Sempre as mesmas voltas. – Um dia e outro; todos iguais. Sem isso, não haveria maturidade nos frutos, nem louçania no horto, nem teria aromas o jardim. Leva este pensamento à tua vida interior” (“Caminho”, ponto 998).

O nosso trabalho diário não é diferente desse dar voltas em torno da nora, para mover a roda de água ou triturar a cana-de-açúcar nos moinhos. Todos os dias temos umas tarefas concretas para fazer, uma rotina de trabalho que se repete e que, aos poucos, vai construindo a nossa vida profissional e as obras nas quais nos empenhamos. As grandes obras são fruto de uma pedra em cima da outra.

Quando nos virmos assim, como um burrico de nora, o nosso trabalho será eficaz. Em primeiro lugar porque estaremos dispostos a aprender de tudo e de todos. Sem o orgulho de nos acharmos infalíveis ou superiores.

Um dos defeitos que mais atrapalha no ambiente de trabalho é a vaidade e o orgulho exacerbados. É o subordinado que não aceita receber uma bronca do superior, pois sempre acha que está certo. É o superior que não admite um erro, e mantém uma decisão desacertada, mesmo percebendo que os demais têm razão. É o colega que se ofende com qualquer comentário, como se fosse ofensivo, levando tudo para o campo pessoal. É o outro que só fala das suas realizações, dos seus trabalhos, como se fossem a coisa mais importante do mundo…

O problema do vaidoso e do orgulhoso é que se colocam numa vitrine, e depois a cobrança externa é proporcional à aparência da imagem que forjaram, e a queda é proporcional à altura do pedestal em que subiram. Os nervosismos, as angústias e as preocupações que surgem quando se deve estar à frente de um empreendimento são fruto, muitas vezes, desse valorizar-se excessivamente. A insegurança ao falar ou presidir pode vir de se estar contemplando continuamente, como num espelho. E não é possível ser, ao mesmo tempo, protagonista e espectador. São dois programas que não rodam simultaneamente na cabeça! Ao concentrarmos a atenção em nós mesmos, esquecemos o “scripti”.

A preocupação com a própria imagem é o que tira a paz e as forças de tantas pessoas no trabalho: “Será que o chefe está satisfeito comigo?”; “O que estarão pensando de mim os meus colegas?”; “Será que agradei?”.

O nosso trabalho deve ser intenso e não… tenso. A tensão vem justamente dessa preocupação com a própria imagem. Só quando estivermos desapegados da própria imagem, pois o que importa é o que Deus pensa de nós e o serviço que estejamos prestando aos demais, é que teremos a tranqüilidade para trabalhar em qualquer ambiente ou situação, por mais adversa que se apresente num determinado momento. Só quando nos aceitarmos tal como somos, com defeitos e limitações, é que não teremos a preocupação (que desgasta) de querer mostrar uma imagem que não corresponde à realidade (que mais cedo ou mais tarde será desfeita).

Certas pessoas, no trabalho, portam-se como se estivessem em academias de musculação: não apenas pela forma de vestir, mas, principalmente, por estarem como que contemplando num espelho os próprios movimentos. É como dizia um “malhador” inveterado: “É difícil render sem espelho e sem música”. Como se a nossa vida fosse um filme épico ou video-clip, com telão e trilha sonora!

A epopéia deve ser a do dia-a-dia: “transformar a prosa diária em decassílabos, verso heróico” (S. Josemaría Escrivá, “É Cristo que Passa”, ponto 50). O heroísmo está justamente nessa descoberta do valor das pequenas coisas, do realizar bem as pequenas tarefas de cada dia. Não pensar que o nosso dia tem seus momentos importantes – uma entrevista, uma cerimônia, um evento extraordinário – e que o resto é apenas recheio. Se não damos importância ao pequeno, nunca estaremos preparados para receber a responsabilidade pelo grande.

O primeiro Vigário Regional do Opus Dei no Brasil, Mons. Francisco Xavier de Ayala, costumava dizer que todas as atividades que fazemos durante o dia, por mais prosáicas que fossem, poderiam ser consideradas como um trabalho e, como tal, deveriam ser santificadas, sendo realizadas com a maior perfeição possível. Assim, ao acordar, saber arrumar bem a cama, como se fossemos camareiros de hotel. Fazer a barba de manhã como um verdadeiro barbeiro. Procurar dirigir no trânsito com a suavidade e perícia de um bom taxista, que deve satisfazer o cliente e fazer com que o carro dure o máximo possível. E assim por diante.

Dar importância às coisas pequenas, às pequenas tarefas de cada dia, valorizando-as, faz com que tenhamos uma visão mais realista do mundo e, em conseqüência, não fiquemos frustrados ou paralisados diante dos erros e desacertos que vemos à nossa volta (Cfr. J. Malvar Fonseca, “Coisas Pequenas”, Quadrante – 1996 – São Paulo). Há pessoas que, diante das manchetes de jornal que mostram a corrupção no governo, a violência na cidade, a degradação dos costumes, entram em depressão e perdem o ânimo para reagir e realizar o trabalho concreto que lhes compete. Outros, partem para cruzadas quixotescas, pensando que seus atos ou realizações irão deixar marcas indeléveis na sociedade.

Ora, não podemos nem ficar desanimados com o mundo como ele está (não existem tempos melhores ou piores… existe o tempo em que Deus nos colocou para viver), nem pretender ser gerentes do mundo, querendo consertar tudo o que vemos de errado à nossa volta (não somos o modelo da sabedoria ou da perfeição).

Como dizia Arnold Toynbee, ao invés de olhar para o macrocosmos, cuja situação talvez nos oprima, olhemos para o microcosmos interior e percebamos que a fonte dos desacertos do mundo está em nós mesmos, no pecado pessoal: se combatemos este, que é possível para nós, estaremos contribuindo enormemente para reverter o quadro de degradação moral que vemos na sociedade:

“Ele experimenta, afinal de contas, a mesma crise que seus semelhantes em sua comum provação de vida numa sociedade em desintegração; entretanto, o que é para os outros um obstáculo, para ele é um supremo desafio. Quando o élan de desenvolvimento numa sociedade sadia parece ter desaparecido, o indivíduo passivo perde seu domínio sobre os mares ignotos do Universo; mas a reação alternativa para esta sensação de perda de controle não é olhar para o exterior, para um macrocosmo mergulhado em pecado, mas olhar dentro de seu íntimo e reconhecer a derrota moral como um fracasso de autodomínio. Este senso de pecado pessoal apresenta o mais agudo contraste imaginável com a passiva sensação de deriva; pois, quando a sensação de deriva tem o efeito do ópio, instilando na alma uma insidiosa aquiescência a um pecado que se acredita estar nas circunstâncias externas, para além do controle da vítima, a sensação de pecado tem o efeito de um estímulo, porque conta ao pecador que o mal não é externo, afinal de contas está em seu íntimo, e portanto sujeito à sua vontade” (“Um Estudo da História”, Martins Fontes e Editora da UnB – 1987 – São Paulo, p. 260).

Dar importância ao pequeno e não nos darmos tanta importância, esse é o segredo da humildade que devemos ter no trabalho, na família e no relacionamento social. Nossa grandeza está justamente na aceitação das condições concretas em que vivemos. Em vez de viver esperando as COTP (Condições “Ótimas” de Temperatura e Pressão), como aquele amigo que sonhava com a mulher ideal (misto de Miss Brasil com Madre Teresa de Calcutá), o trabalho ideal (Presidente do Brasil sem responsabilidade pelo que diz ou faz), filhos ideais (obedientes, inteligentes, bonitos, dignos da vitrine do colégio, faculdade ou trabalho), patrimônio ideal (duplex no Leblon, Casa de Campo em Tiradentes, Fazenda em São Paulo, iate, jatinho e um apartamento de suporte em Paris), amigos ideais (sintonia total e ao seu gosto) e perfil pessoal ideal (misto de São Tomás, com o Ten. Dick Winters do “Band of Brothers”, Cap. Jack Aubrey do “Mestre dos Mares”, Min. Moreira Alves do STF e Charlon Heston, de tantos épicos como “Ben-Hur”, “El Cid” e tantos outros, unindo santidade, coragem, sagacidade e inteligência, com pinta de galã), o que só existe no Hiperurânio de Platão, aceitar e agradecer as CNTP (Condições Normais de Temperatura e Pressão) nas quais se pode estar vivendo (trabalhando, no entanto, com paciência para melhorá-las): mulher mais gordinha, velhinha, feinha e chatinha; filhos aborrecentes; trabalho desinteressante e estafante (ou desempregado); amigos-da-onça (interesseiros, furões e muitas vezes desleais) e o euzinho intragável (vaidoso, sensual, preguiçoso e um pouco limitado de cabeça).

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