Como você deve ter depreendido do parágrafo acima, “The Legend” não tem nada a ver com a Terra-média, em princípio. Não é um livro pra qualquer um, no melhor dos sentidos. São estrofes e mais estrofes, com oito linhas cada uma, da esquisitíssima (pros nossos ouvidos) rima aliterativa germânica, aquela na qual o que importa é a presença dos mesmos sons (consonantais ou de vogais) nas sílabas tônicas das principais palavras do verso. (É, é complicado, mas a sonoridade pode ser belíssima, como é nesse caso ou nos poemas/canções de Rohan no SdA.)
A intenção de Tolkien era recontar alguns dos episódios mais importantes da mitologia e da lenda escandinavas na Idade Média, que aparecem — de forma truncada, fragmentada e frequentemente inconsistente — em poemas como o Edda Antigo ou nas sagas islandesas em prosa. Começando com a criação do mundo, os poemas logo partem para abordar a história trágica de Sigurd, o herói que matou o dragão Fáfnir, e a perdição que se abate sobre sua família por causa da maldição que o tesouro do bicho carrega.
Nesse ponto você deve ter pensado, quiçá, que há aí uma relação com Túrin, outro célebre matador de dragões. De fato, em uma de suas cartas, Tolkien cita Sigurd como uma das influências diretas de Turambar, junto com o finlandês Kullervo e o grego Édipo. (Incesto, manja?) Mas a coisa vai mais fundo que isso, e na direção contrária — uma influência da saga de Túrin na maneira inovadora como Sigurd é retratado.
Cadê o Thor?
É que Tolkien introduz no “novo” livro a ideia de que o humano Sigurd foi escolhido pelo senhor dos deuses, Odin, como o matador da Serpente de Midgard (“Terra-média”, ou seja, as terras mortais, em islandês antigo), Jormungand, na batalha final do Ragnarok, o Apocalipse nórdico. E, ao derrotar a Serpente, Sigurd possibilitaria o surgimento de um novo mundo depois da catástrofe.
Ora, na mitologia escandinava “oficial”, o responsável pela derrota da Serpente é o deus Thor, que acaba morrendo também. Mas, Tolkien deve ter pensado, nada como um matador de dragões para acabar com o maior deles (já que dragões não passam de serpentes supercrescidas, enfim). Ocorre que uma profecia parecida está ligada a Túrin no legendarium tolkieniano.
Conhecida como a Segunda Profecia de Mandos, ela diz, numa das versões, que Túrin vai matar o próprio Melkor/Morgoth, o primeiro Senhor do Escuro, com sua espada negra, e na outra a vítima é mesmo um dragão, Ancalagon, o Negro, aparentemente renascido pelos poderes malévolos de Morgoth no fim dos tempos. (Tudo isso está fragmentado nos livros da série The History of Middle-earth).
Christopher Tolkien sugere que a profecia sobre Túrin provavelmente influenciou a inovação na história tradicional de Sigurd. Aliás, especula ele, os traços de Odin nos poemas de Tolkien também teriam sido modificados, deixando-o mais parecido com Manwë, o senhor dos Valar em “O Silmarillion”.