A questão é que os "Mitos" (e ponham aspas nesta palavra) elencados nos contos do autor não se coadunam em específico com os gêneros "clichês" que vemos por aí: é ocultismo, é horror, é fantasia, é realismo fantástico? O que gera a esta "meia indefinição" a respeito das obras de Lovecraft tem muito ligação com sua visão pessoal de mundo e sua predisposição ao chamado Cosminicismo - filosófico:
A filosofia do cosmicismo declara que não há presença divina reconhecível, tal como um deus, e também exprime a idéia de que os seres humanos são particularmente insignificantes no esquema maior de existência intergaláctica, e que talvez não passem de uma pequena espécie projetando suas próprias idolatrias mentais ao vasto cosmos, estando eternamente susceptível à possibilidade de ser varrida da existência a qualquer momento. Esta idéia também sugeriu que a humanidade inteira não passa de criaturas que possuem exatamente a mesma relevância e significância que plantas e insetos, mas em uma luta muito maior com forças igualmente muito maiores que, dada a pequeníssima e insignificante natureza desprovida de visão do ser humano, o mesmo não reconhece.
Talvez o mais proeminente tema no cosmicismo seja a completa insignificância da humanidade. Lovecraft acreditava que "a espécie humana desaparecerá. Outras espécies aparecerão e, por sua vez, desaparecerão no lugar. O céu há de tornar-se gelado e vazio, perfurado por fraca luminosidade e semimortas estrelas, estas que por sua vez também hão de desaparecer. Tudo há de desaparecer. E tudo o que os seres humanos fazem é mover partículas elementares, em sua liberdade de movimento. Bem, mal, moral, sentimentos? Puras ficções vitorianas. Apenas o egotismo existe."
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Ou seja, a grosso modo, a vida humana é insignificante perante a existência do universo e tudo o mais; as divindades dos Mythos se afastam desse conceito de deidade - pessoal, que zela por seus adeptos ou
mandam sinais, milagres, acontecimentos, fenômenos ou evidenciam grandes ciclos de renovação/desaparecimento, justamente por estarem além de uma importância religiosa ou com a necessidade de existirem (conforme a noção religiosa comum da existência de deidades).
Então para quem amou a Antropomorfia criacionista no Ainulindalë com o Ainur-humanos de Tolkien que prenunciam o Universo em prol dos homens e elfos, se horroriza em saber que os cosmos são nada mais nada menos que as emanações psiônicas de uma corte insana do deus idiota, letárgico e demiurgo Azathoth rodeado por seus "músicos", no intento de manterem coeso a própria existência do universo:
https://en.wikipedia.org/wiki/Azathoth - uma vez que é o
sono do Deus-Burro que mantém o tempo e espaço:
A humanidade não importa, é supérflua, não prioritária quanta suas ações ou protagonismo. Não há um Béren, não há um Tyrion Lannister. O que temos é um Charles Dexter Ward um louco teosofista numa história filosoficamente Pessimista/Realista que trata (ou melhor, destrata) qualquer noção de vida após a morte - nos levando à uma discussão incômoda que não vamos querer (em geral) em nossa existência. Em vez disso:
A morte é seu destino, o dom de Iluvatar, que, com o passar do tempo, até os PODERES hão de invejar. Melkor, porém, lançou sua sombras sobre esse dom, confundindo-o com as trevas, e fez surgir o mal do bem; e o medo da esperança
Seríamos isso:
A coisa mais misericordiosa do mundo, acho eu, é a incapacidade da mente humana correlacionar tudo que ela contém. Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio a mares tenebrosos de infinidade, e não está v amos destinados a chegar longe.
As ciências, cada uma puxando para seu próprio lado, nos causaram poucos dano
s até agora, mas algum dia a junção das peças do conhecimento disperso descortinar á
visões tão terríveis da realidade e de nossa pavorosa posição dentro dela que só nos restar á enlouquecer com a revelação ou fugir da iluminação mortal para a paz e a segurança de uma nova idade das trevas.
Seu estilo de escrita, para alguns decadentistas, para outros um realismo fantástico em que os interlocutores são arqueólogos e agem como arqueólogos. Ou são investigadores desprovidos de uma "Femme-Fatale", mas que enlouquecem diante da sua insignificância e insignificância cósmica de tudo o que fizermos diante do colosso do universo. É assustadora essa percepção.
Vide, por exemplo, nas "Montanhas da Loucura". A melhor obra do escritor, na minha opinião. Não pelo detalhismo dos geólogos retratados ou pela civilização dos "Elder Things" e seus confrontos titânicos pela supremacia na Terra. A parte que mais me choca é o que trata da origem da humanidade: A grosso modo, para as ciências somos resultados de vários e vários anos de processos químicos + seleção natural. Já Lovecraft (cruelmente) deturpa o que na visão idealizada/sentido religioso trata da atribuição divina à origem do homem. O homem nada mais nada é do que um monstro de laboratório dos "Seres mais velhos" - apenas experimentos que fugiram de um protocolo de segurança - ou seja, engloba o sentido científico para a origem da humanidade ao mesmo tempo que une a visão mítica.
É um "escárnio" (se é que há/houve a intenção de Lovecraft) à ideia de um construto perfeito na formação humana, na sua origem, no tal design inteligente à essa máquina perfeita que somos ou dizemos que somos. Os monstros, demônios e deuses são bem mais as leis, teorias e fenômenos cósmicos-naturais, indiferentes a existência da vida 0u a importância que damos a ela. Em termos atuais, quem mais se aproximou desta premissa foi o Alan Moore: