O Pablo Villaça tinha prometido escrever uma resenha do último episódio depois que findasse a maratona de festivais de que participou e agora ele pagou a promessa:
Breaking Bad S05E16
(
My Baby Spoiler.)
Se alguma evidência ainda era necessária para demonstrar a precisão narrativa de
Breaking Bad, esta surgiu com veemência no título do episódio final da série de Vince Gilligan. Batizado como
FeLiNa, esta derradeira hora da saga de Walter Whiter não só trazia um anagrama de “Finale” em seu nome como ainda poderia, com certa liberdade de interpretação, simbolizar os três princípio da história: Sangue (Ferro), Metafentamina (Lítio) e Lágrimas (Sódio) – ao menos, de acordo com os próprios realizadores, que, ao contrário do que normalmente fazem, não hesitaram em expor o significado dos três elementos químicos que ajudam a compor o título. No entanto, mais do que um anagrama e um conjunto de compostos químicos, “Felina” é também a amada do narrador da canção “El Paso”, que, cantada por Marty Robbins, é escutada por Walter logo na abertura do episódio e traz versos que contam a história de um homem que, encantado pela garota, comete um “mal terrível”, é obrigado a fugir de sua cidade, mas finalmente retorna por perceber que “não lhe resta nada”.
Sim, é fácil considerar que a “Felina” de Robbins é o cristal azul de Walter – seu amor maior e final que acaba levando-o ao crime e condenando-o à solidão e à morte -, mas ainda assim é fascinante observar como a canção acaba se revelando uma espécie de mapa do que ocorrerá no episódio final:
“Maybe tomorrow
A bullet may find me.
Tonight nothing’s worse than this
Pain in my heart.”
(…)
Off to my right I see five mounted cowboys;
Off to my left ride a dozen or more.
Shouting and shooting I can’t let them catch me.
I have to make it to Rosa’s back door.
Something is dreadfully wrong for I feel
A deep burning pain in my side.”
Estão na canção do início do episódio os vilões comandados por Jack, a dor de Walt que o obriga a retornar mesmo sob o risco de morte e, claro, a bala que finalmente o atingirá e o matará.
E eu aqui me preocupando com
spoilers.
Ressaltando a situação desesperadora de Walter desde o início ao retratá-lo em um plano claustrofóbico e sufocante que o situa no interior de um carro coberto por neve, “FeLiNa” não se furta em apelar para um sutil
deus ex machina ao trazer o protagonista praticamente orando por uma saída daquela situação (“Just get me home and I’ll do the rest”) apenas para ser atendido com a descoberta da chave do carro – e aqui Vince Gilligan, que também dirigiu o episódio, é inteligente ao inverter completamente a lógica usada ao longo de cinco anos, quando nos habituáramos a ver os personagens em
contra-plongé, e inclui um plano em
plongé no qual a chave parece ser enviada diretamente dos céus para o colo de Walt, numa contra-rima elegante e belíssima que me emocionou profundamente pela inteligência e por soar como recompensa depois de quase seis anos de pistas contínuas.
A partir daí, “FeLiNa” se entrega a uma narrativa de despedidas e de medidas finais. Revelando uma saída engenhosa para o beco sem saída representado pela incapacidade de Walt de deixar seu dinheiro para a família (“Eles não querem meu dinheiro; mesmo que quisessem, o governo não permitiria que ficassem com ele.”), Gilligan e seus co-escritores conseguem não apenas fazer com que o anti-herói consiga passar sua fortuna adiante como ainda permitem, no processo, que ele obtenha algum tipo de vingança diante das injustiças que – ao menos em sua mente, já que a série nunca esclarece exatamente o que aconteceu – Gretchen e Elliott cometeram no passado (“Esta é a sua chance de endireitarem as coisas”). Ainda exibindo o velho orgulho ao insistir que não gastem um centavo do próprio dinheiro, Walter tampouco hesita em usar a mitologia criada em torno de Heisenberg para amedrontar ainda mais os antigos sócios e garantir que cumpram a promessa feita.
Da mesma maneira, já nesta cena Gilligan introduz o vermelho que, simbolizando o perigo representado por Walter (além, claro, do sangue que derramará), percorrerá o episódio até o final – e, assim, o quadro ao fundo do plano que traz o amedrontado casal Schwartz, bem como os lasers que os marcam, não surge em cena à toa.
Não que seja surpreendente a beleza da construção narrativa de
Breaking Bad, uma série que, ao longo de suas cinco (seis?) temporadas, demonstrou uma atenção cinematográfica para com os detalhes de sua
mise-en-scène, recompensando a atenção de seus espectadores com pistas e símbolos espalhados pelos cenários, figurinos e luzes. Assim, ao trazer Skyler sufocada em planos claustrofóbicos que a expõem como a prisioneira que se tornou graças às ações do marido, “FeLiNa” descarta a necessidade de diálogos expositivos, optando por retratar na composição dos quadros o estado no qual a mulher se encontra, transformando as persianas em grades, obscurecendo parte dos planos para mantê-la acuada e incluindo uma coluna que, em certo instante, surge como materialização perfeita da barreira construída entre o casal em função do surgimento de Heisenberg.
E se menciono a cena que traz o encontro final entre Skyler e Walt, não é só por admirar sua construção estética, mas por reconhecer, ali, a iniciativa de Gilligan em abordar diretamente a relação equivocada que certos espectadores passaram a manter com a série e com seu protagonista (e que discuti
neste post). Se alguns episódios antes
Breaking Bad já dera um tapa no rosto daqueles que odiavam Skyler ao trazer Walter repetindo todos os clichês vomitados por aqueles que a encaravam como um obstáculo no caminho do “herói” (reparem: “herói”, não “anti-herói”), desta vez Walt se encarrega de desfazer as ilusões que tais fãs mantinham ao insistir que ele fizera “tudo pela família”. Finalmente reconhecendo suas motivações egocêntricas, Walter admite ter se transformado em Heisenberg por vaidade e para se sentir no controle – e a maneira com que Bryan Cranston cerra os olhos ao reviver o prazer do poder em sua mente, seguindo o momento com um quase inaudível “tsc” de lamento por seu erro ao entregar-se ao alterego, é a prova máxima do brilhantismo de um ator que, mesmo confinado à diminuta tela da televisão, não precisa de gestos grandiosos para construir seu personagem.
Ainda assim, Vince Gilligan e o diretor de fotografia Michael Slovis reforçam a ideia da
persona sombria e destrutiva de Walter ao trazê-lo, na cena seguinte, como o único que mergulha na sombra ao visitar o quarto da filha – e, logo em seguida, “FeLiNa” traz aquele que é possivelmente seu plano mais devastador ao retratar o protagonista observando Flynn à distância enquanto as molduras da janela expõem a situação de um homem que se prendeu fora da vida da própria família, obrigando-se a ver, como fugitivo, o filho que passou a odiá-lo. Até que, por fim, se afasta daqueles que ama e é transformado quase num fantasma pela fotografia superexposta.
É importante que não nos iludamos quanto à natureza de Walter White, porém: sempre vaidoso, o homem que matou Mike Ehrmantraut por puro despeito é ainda um sujeito vingativo e rancoroso – algo que Gilligan faz questão de evidenciar ao trazê-lo descartando o relógio que Jesse lhe deu de presente de aniversário. Sentindo-se insultado ao descobrir que o antigo sócio ainda vive e permanece produzindo o cristal azul que se tornou a obra-prima de sua vida, Walt mal consegue ocultar o ódio ao constatar que Jack não matou o rapaz – e é impossível ver sua expressão de raiva e despeito ao concluir que Jesse vive e insistir na fantasia de que ele tem a menor intenção de salvar sua vida. Sim, eventualmente é isso que faz, mas apenas ao constatar que Jesse vivera os últimos meses como escravo – e é fundamental notar a expressão de choque no rosto de Walt ao ver o estado no qual o garoto se encontra antes de finalmente decidir poupá-lo das balas que reservou a Jack e companhia.
Neste sentido, aliás, “FeLiNa” é hábil ao levar o espectador a perceber como a presença de Walt destruiu a vida de Jesse ao trazer um (raro)
flashback no qual, em tons quentes e agradáveis, vemos o personagem de Aaron Paul construindo a caixa de madeira que viria a enchê-lo de orgulho ainda no colégio – uma imagem que Michael Slovis usa para criar um contraponto chocante à sua situação atual através não só do contraste entre os tons quente e frio da fotografia, mas através da decupagem que, num
raccord de movimento lindíssimo, usa o movimento do corpo de Jesse como transição entre passado e presente.
Este não é o único momento no qual “FeLiNa” emprega rimas visuais como observação da trajetória de Walt, diga-se de passagem: em certo ponto, ao revisitar a sala de sua casa agora dilapidada, Walter retorna ao instante no qual tudo começou ao lembrar-se do convite de Hank para acompanhá-lo em uma de suas incursões com a Narcóticos – algo que Gilligan, praticamente me levando a convulsões de desejo para vê-lo dirigindo um longa, justapõe ao Walter White coberto pelas sombras que projetou sobre si mesmo em outro fabuloso
motif.
Sombras que, diga-se de passagem, se tornam companheiras de jornada do personagem, não sendo um acidente o fato de que, ao sair do restaurante no qual confrontou Lydia e Todd, ele seja o único a ser visto na escuridão em meio a vários clientes do estabelecimento.
Este, obviamente, não é o único momento no qual as escolhas do gênio Michael Slovis se sobressaem: ao usar uma grande angular para mostrar o pequeno apartamento no qual Skyler passou a morar com os filhos, o diretor de fotografia não só expõe as dimensões diminutas do imóvel como ainda cria um plano no qual a bem situada coluna acaba servindo como elemento fundamental ao ocultar a presença de Walt, que, revelada num movimento fluido de câmera, surge como impactante surpresa. Sim, Slovis peca pelo óbvio aqui e ali (os planos que mostram Lydia derramando adoçante no chá são óbvios o bastante para estragar a surpresa do plano do protagonista), mas, de modo geral, merecem créditos pela engenhosidade técnica/plástica (como a composição que usa a janela de uma construção semidemolida como moldura-dentro-da-moldura ao trazer Walt construindo a engenhoca que usará para destruir seus inimigos).
O que nos traz de volta à cor-chave do episódio, que, como não poderia deixar de ser, é o vermelho. Qualquer um que tenha assistido a
Breaking Bad com atenção nos últimos anos seria capaz de perceber que a trajetória do ex-professor de Química do ensino médio não terminaria em abraços, desabafos ou confissões de amor – e, assim, é mais que apropriado que Vince Gilligan e Michael Slovis tenham determinado que a cor que simboliza violência seria aquela que se tornaria recorrente no último episódio da série. Presente no chaveiro que Walt usa para destruir seus inimigos, ela surge contínua (mesmo que em planos quase subliminares) na magistral sequência que coroa os planos do agora ex-Heisenberg, estabelecendo-se como recortes luminosos de destruição e morte na casa de Jack e seus neo-nazistas (um vermelho também presente no travesseiro que Lydia abraça ao descobrir que irá morrer).
Aliás, como fã de
O Poderoso Chefão, devo reconhecer a engenhosidade de Gilligan ao prestar homenagem a Coppola, que sempre incluía um elemento atípico em suas sequências de violência e que aqui ganha um representante na cadeira vibratória que mantém um dos principais capangas de Jack “respirando” mesmo depois de morto, criando um vai-e-vem sonoro que cria um incômodo fabuloso no espectador mesmo depois que todos os inimigos de Walt se encontram mortos.
Sim, mesmo como fã sou obrigado a admitir que o fato de Todd e Jack serem os únicos sobreviventes do tiroteio é conveniente demais do ponto de vista narrativo, já que permite vinganças pessoais que satisfazem o espectador de um ponto de vista catártico, mas ainda assim me atrevo a defender esta decisão dos realizadores como algo que, mesmo maniqueísta, é mais do que apropriado como exercício narrativo. Afinal, o que é a Arte senão a concretização de fantasias, desejos e impulsos dos espectadores? Assim, ainda que reconheça a conveniência de Jack sobreviver tempo suficiente para permitir um disparo final de Walt, sou obrigado a admitir que, do ponto de vista narrativo, é perfeito que o anti-herói da série devolva o favor ao não permitir que Jack conclua a última frase que diria – exatamente como este fez com Hank.
Maniqueísta? Sim. Artificial? Claro. Perfeito como narrativa? Não tenha dúvida (e o mesmo vale para a conversa final entre Walt e Lydia).
“Maniqueísta”, claro, é um adjetivo que se aplica perfeitamente a Walt. Depois de passar cinco temporadas manipulando Jesse (a grande vítima da série, como não me canso de apontar), ele tenta levar o garoto a realizar suas vontades uma última vez ao buscar levá-lo a matá-lo – e se compararmos o Jesse que diz “Então faça isso você mesmo” ao garoto que se mostrava tão certo de si (e, claro, tão imaturo) no início da série, podemos perceber de maneira inequívoca o amadurecimento (não: o
ressecamento) do jovem que conhecemos há cinco anos. Desta maneira, é recompensador constatar o leve aceno de reconhecimento final que os personagens trocam entre si antes de vermos Jesse gritando, num berro interrompido pela montagem, ao ver-se finalmente livre da influência do Sr. White.
E é assim que chegamos à sequência final de uma série que, por cinco anos, nos apresentou a personagens complexos, tocantes e envolventes. E que revelou a motivação inequívoca de seu protagonista: o poder de se ver como autor de uma obra-prima, de uma droga que, de tão perfeita, trazia o orgulho de autor, realizador, criador e mestre mesmo sendo responsável por destruir vidas.
O cristal azul era a Mona Lisa de Walter White. Sua Criação de Adão. Seu legado.
Mortalmente ferido, Walt finalmente se vê consolado pelo laboratório que o tornou inesquecível como julgava digno de ser. Com a expressão satisfeita, orgulhosa e feliz, Walter White caminhou, prestes a deixar de ser, entre os equipamentos que demonstraram sua genialidade – e, assim, é revelador o carinho com que toca o aço frio dos aparelhos, seus verdadeiros amores.
E é perfeito que, ao vermos seu reflexo no metal, seus óculos pretos surjam magicamente substituídos pelos aros brilhantes de Heisenberg, como se ele visse, ali, a criação que permitiu sua imortalidade, que gerou seu legado.
Walter White, depois de uma vida de submissão e frustrações, morreu como dono de seu destino, partiu em seus próprios termos (algo prenunciado pelo bordão do estado de New Hampshire – “Viva Livre ou Morra” – exibido no início do episódio).
Algo que sua expressão satisfeita – mesmo que trágica – revela de maneira inequívoca enquanto a câmera flutuante de Gilligan deposita um “X’” fatal sobre seu corpo.
Walter White era um homem falho, egocêntrico e vaidoso. Mas era também uma figura fascinante e digna de admiração. Não pelo que destruiu, mas pelo que julgou construir ao ver-se à beira da morte.
Afinal, não sonhamos todos com o legado que deixaremos?
“Guess I got what I deserve
(…)
The special love I have for you
My baby blue”
Ah, Walt.
Ah.