Texto inspirado por uma sensação estranha com que acordei ontem de madrugada, depois de uns sonhos malucos. Aproveitei para encaixar algumas divagações existenciais, porque meio que é tudo a mesma coisa.
De repente a vida lhe pareceu tão sombria.
Acabara de ter uma daquelas confusões de sonhos que não são pesadelos, mas que nos fazem acordar com uma sensação esquisita… Angústia? Mas por nada em especial. Um vazio melancólico.
Contemplou por um tempo o quarto em penumbra. Seu marido dormia. Eram felizes. Fitou o relógio no celular. Em breve o sol se ergueria, mas ela não precisava fazer o mesmo: estava de férias. O trabalho, aliás, ia muito bem, com todos os seus projetos e remuneração em alta. Dentro de poucos dias, viajariam, um daqueles destinos há muito planejados.
Tudo, enfim, apontava para a sua felicidade, e ela se sentia feliz, na maior parte do tempo. Sabia o que era a depressão; nada parecido a atormentava, agora ou há muitos anos. A sensação que essas noites de sono estranhas lhe causavam era diferente. Era volátil: por alguns minutos a transtornava, até que outros pensamentos ou as tarefas corriqueiras a varriam.
É o mesmo que acontecia quando, volta e meia, pegava-se pensando no nosso “propósito”, e na efemeridade que é a vida, e no absurdo que é a morte. Todos os seres humanos adultos e sãos alguma vez já fizeram essas reflexões, e se admiraram, e se assombraram; mas nada impediu que no dia seguinte voltassem às frivolidades da vida comum, junto a todas as outras pessoas que em seu íntimo têm os mesmos pensamentos. Mas somos unidos por um pacto, jamais declarado, de não andar falando muito sobre essas coisas. É mais fácil assim.
Pensava nisso enquanto acendia o abajur e apanhava o livro na cômoda. Queria voltar a pegar no sono, e a leitura na cama costumava ser tiro e queda. Estava na metade de Guerra e Paz, de Tolstói:
"Mas o mal de que sofria e que recalcava em vão no íntimo continuava a existir: 'Qual é o objetivo da existência? Por que é que se vive? Que se faz neste mundo?', perguntava a si próprio com assombro, mil vezes por dia. Mas, sabendo por experiência que as suas perguntas ficariam sem resposta, abandonava-as o mais depressa possível, pegando num livro, ou corria para o clube ou para casa de um dos seus amigos, para aí saber as pequenas notícias do dia. [...] Sentir-se obsidiado por aquelas perguntas vitais, sem conseguir resolvê-las, era-lhe tão penoso, que mergulhava, para as esquecer, em todas as distrações imagináveis. [...] Tratemos somente de nos subtrair à realidade e de nunca nos encontrarmos face a face com ela!"
Foi obrigada a rir, e o marido balbuciou no sono. Conteve-se.
Acordar com uma cratera existencial no peito e deparar-se justamente com aquele trecho. Quais eram as chances de aquilo ser uma coincidência? Às vezes, certas coisas deixavam o seu ateísmo em xeque. Divertiu-se pensando que, talvez, existisse alguma forma de predestinação naquilo tudo. Será que algo estava reservado para ela fazer, aproveitando um pouco dessa inspiração? Nem que fosse um poema, ou uma canção, ou uma pintura...?
Pensou de quantas obras de arte a humanidade poderia ter sido privada devido a pequenas circunstâncias: até mesmo a preguiça ou a procrastinação de seu artista - como a dela própria ali, consciente de que muito improvavelmente exteriorizaria aqueles pensamentos de alguma maneira.
Ou até mesmo: quanto da História não poderia ter sido tão diferente, graças a pequenos detalhes? Lembrou-se de um documentário a que assistira recentemente sobre personalidades da Segunda Guerra Mundial. Adolf Hitler e Winston Churchill, ambos escaparam da morte por um triz, ao combaterem na Primeira. Milímetros, segundos… o acaso é tão poderoso! Ou seria… algo superior?
É tão mais confortável pensar que sim, e deixar esses pensamentos para lá.
E é tão mais cômodo somente tocar a vida… tocar a vida… até que não haja mais vida a tocar.
Como é lúgubre ficar pensando nisso!
Trocou o livro pelo celular: a rolagem interminável pelas redes sociais foi aos poucos desanuviando a sua expressão. Ah! esses memes!...