Bruce Torres
Let's be alone together.
Governo suíço propõe reparação a 15 mil crianças arrendadas e vítimas de abusos
Heloísa Broggiato | Viena - 17/01/2015 - 06h00
Até meados do século XX, crianças suíças eram enviadas a casas de particulares por razões econômicas ou morais
Atualizada às 12h40
A rigidez moral deixou uma ferida aberta na vida da suíça Rosalie Müller. Aos 17 anos, ela engravidou do namorado, que era casado e pai de um filho. Em 1963, deu à luz um menino e trabalhou na cozinha de um abrigo para pagar as despesas do parto. Meses depois, o garoto foi encaminhado para adoção, sem a permissão dela. “Nunca tive qualquer notícia sobre o paradeiro de meu filho”, conta.
Já a infância de Walter Emmisberger foi entrecortada por maus tratos. Ele nasceu em uma prisão, em Tobel, na Suíça, em 1956, e foi levado a um abrigo de crianças, onde ficou por seis anos. Depois, foi entregue a uma família que o deixava preso em um porão escuro com frequência, até que decidiram entregá-lo a uma instituição religiosa.
Fotos: Divulgação/Paul Senn, FFV, Kunstmuseum Bern, Dep. GKS
Foto da exposição Verdingkinder reden: crianças em um reformatório na região de Sonnenberg, em 1944
Depois de ser abusado sexualmente pelo pastor, passou a frequentar uma clínica psiquiátrica. “Achavam que eu era um menino muito difícil para educar”, conta Emmisberger. A partir dos 11 anos, começou a ser tratado com uma série de medicamentos, nem todos identificados pelo nome. “Na escola, as professoras nunca desconfiaram que eu tremia e ficava apático por causa dos efeitos colaterais dos remédios.”
As histórias de Müller e Emmisberger convergem em um ponto: até meados do século XX, crianças e jovens suíços eram “acomodados” em casas de particulares ou em estabelecimentos fechados por razões econômicas ou morais. As medidas de restrição eram tomadas tanto por autoridades locais como por organizações privadas. As vítimas afetadas vinham de famílias pobres, eram órfãs ou nascidas fora do casamento. Além de serem enviadas a serviços oferecidos pelos cantões e municípios, havia encaminhamentos para instituições religiosas ou privadas. As crianças colocadas nessa situação em residências particulares (na maioria dos casos, em fazendas) eram consideradas parte da mão de obra e, poucas vezes, como membros da família.
Depois de anos de pressões de movimentos que pediam a reparação a essas crianças, o governo suíco decidiu nesta semana apresentar um projeto de lei que prevê a compensação financeira das vítimas no valor de 300 milhões de francos (cerca de R$ 917 milhões). Em julho de 2013, o Parlamento suíço já havia aprovado uma lei permitindo a investigação científica sobre jovens e adultos acomodados em penitenciárias ou outras instituições sociais fechadas. A lei, no entanto, não contemplava nenhuma indenização para as pessoas afetadas pelas medidas.
O movimento pró-reparação defende um fundo de 500 milhões de francos, cerca de R$ 1,3 bilhão, que deveria beneficiar as pessoas afetadas, independente da condição financeira. Um fundo de emergência de cerca de 8 milhões de francos suíços, o equivalente a R$ 20 milhões, já está à disposição de vítimas em situação crítica.
Família que teve as três crianças mais velhas retiradas do convívio; a imagem, de 1946, foi tirada no cantão de Berna
Até 1981, as autoridades administrativas podiam ordenar sem a necessidade de uma decisão judicial a acomodação de jovens ou adultos em estabelecimentos fechados (incluindo penitenciárias) por tempo indeterminado, com o objetivo de promover reeducação ou educação para o trabalho. Essas decisões eram motivadas por uma gravidez fora do casamento ou mudanças frequentes de emprego, por exemplo. Não havia possibilidade de recurso contra essas medidas.
Como resultado de um movimento de reavaliação deste momento histórico, no final de 2014 uma lista com cerca de 110 mil assinaturas foi entregue às autoridades do país pedindo indenização para cerca de 15 mil vítimas de trabalho forçado e maus tratos em consequência das práticas do serviço social na Suíça.
O texto ainda pede a compensação não só para vítimas das detenções administrativas, mas também para as vítimas de adoção e esterilização forçada e para as crianças arrendadas que foram vítimas de maus tratos e abuso sexual. As cem mil assinaturas são suficientes para forçar a organização um referendo no país.
Em novembro do ano passado, foi criada uma comissão independente de pesquisadores que deverá trabalhar em conjunto com um novo programa nacional de pesquisa para esclarecer os fatos. A ideia é descobrir os detalhes da vida dos suíços que sofreram com as práticas do serviço social e o sistema do qual fizeram parte entre 1800 e 1970.
”Queremos compreender como o sistema e a administração funcionavam, e as diferenças entre homens e mulheres”, diz a historiadora Loretta Seglias, membro da comissão e uma das autoras do livro Versorgt und Vergessen, da editora Rotpunkt. O livro apresenta entrevistas com 40 vítimas que trabalharam como crianças arrendadas.
Divulgação
Cena do filme Verdingbub; obra foi baseada na história das crianças arrendadas
Entre 2009 e 2014, a exposição “Crianças Arrendadas falam” (Verdingkinder reden) circulou por vários pontos do país com imagens e depoimentos de crianças e jovens que foram obrigados a deixar as famílias em situação econômica desfavorável para viver em fazendas ou instituições sociais. Nos novos lares, crianças executavam trabalho forçado e sofriam privação de liberdade. Em 2011, foi lançado o filme Verdingbub (“Rapaz arrendado”, em tradução livre), que expõe o cotidiano de um menino arrendado. A onda de eventos sobre o tema rendeu pedidos de desculpas oficiais do governo às vítimas, sensibilizou a opinião pública e esquentou o debate sobre o tema.
Já em 2013, a então ministra da Justiça (e hoje presidente da Suíça), Simonetta Sommaruga, havia criado um grupo para propor um pacote de medidas relacionadas ao tema. A “Mesa Redonda” é presidida pelo vice-secretário de Justiça, Luzius Mader e inclui vítimas, ONGs, autoridades locais e cantonais, representantes das igrejas, de instituições sociais e da Sociedade dos Agricultores.
Para Mader, o reconhecimento público dos danos causados às vítimas deve incluir alguma compensação financeira, garantia de acesso aos documentos administrativos, uma ampla pesquisa científica sobre todas as categorias de pessoas afetadas e a divulgação dos resultados.
Meninos no campo de trabalho no internato masculino Oberbipp, no cantão de Berna, em 1940
Abusos comuns
Os abusos contra as vítimas eram comuns, já que os controles previstos não eram efetuados e as famílias e estabelecimentos ficavam em locais isolados, de modo que os maus tratos não chegavam ao conhecimento das autoridades e acabavam sem punição.
Até os anos 1970, sob a ameaça de perder benefícios sociais, mulheres tinham o direito de abortar apenas se concordassem em se submeter à esterilização. Crianças filhas de mães menores de idade ou solteiras, de prostitutas, de situação financeira desfavorável, casadas com dependentes de álcool ou de desempregadas eram encaminhadas para adoção. Ainda que uma autorização por escrito da mãe fosse necessária, muitas vezes era obtida sob pressão.
Outra categoria afetada pelas medidas sociais foi a das crianças ciganas yéniches, grupo seminômade que se movimenta na Europa. Entre 1926 e 1973, cerca de 600 foram retiradas de suas famílias, encaminhadas para adoção ou acomodadas em outras famílias, nas quais os casos de abusos e maus tratos eram comuns.
Associações de agricultores afirmam, no entanto, que nem sempre jovens sofriam maus tratos. Para Guido Fluri, organizador da iniciativa popular com as assinaturas, bastam, no entanto, as experiências negativas como a da aposentada Lisa Wengler. Ela era menina quando sofreu abusos sexuais pelo vizinho da família para a qual trabalhava. “Quando contei para a senhora que era responsável por mim, ela me disse que não iria brigar com o vizinho por causa de uma desclassificada como eu”, afirma Wengler.
“Os fazendeiros se aproveitaram do sistema”, diz Fluri, filho de uma garçonete esquizofrênica. Ele nasceu em 1966, em Olten, cantão de Solothurn, passou a infância em abrigos de menores, e, apesar da infância difícil, se tornou empresário do setor imobiliário e financiou a campanha para a coleta de assinaturas com recursos próprios.
Fonte: http://operamundi.uol.com.br/conteu...criancas+arrendadas+e+vitimas+de+abusos.shtml
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Uma infâmia no passado da Suíça
Entre meados do século XIX e 1981, mais de 300 mil crianças pobres, órfãs ou consideradas fardo econômico foram distribuídas compulsoriamente pelo Estado a famílias de agricultores, como mão-de-obra barata
Invejada pelo alto padrão de vida, baixíssimo índice de criminalidade, estabilidade política e carga tributária mais do que amigável, a Suíça tem um acerto de contas a fazer com o seu passado.
É um acerto tão urgente quanto indigesto, pois expõe ao mundo a prática de uma “engenharia social" que os atuais 8 milhões de suíços prefeririam esquecer ou desconhecer.
Trata-se da reparação devida às verdingkinder (algo como “crianças arrendadas”). A designação se refere às mais de 300 mil crianças pobres, órfãs ou consideradas fardo econômico, distribuídas compulsoriamente pelo Estado a famílias de agricultores, como mão-de-obra barata.
Essa prática começou em meados do século 19 e estendeu-se, pasme o leitor, até 1981. Historiadores estimam que ao longo desse período 5% de todas as crianças suíças foram assim retiradas de suas famílias. Dessas, cerca de 10 mil ainda são vivas — adultos em sua maioria reclusos, envergonhados, estigmatizados, com cicatrizes psicológicas e físicas da infância roubada.
Uma petição lançada em abril deste ano ultrapassou as 100 mil assinaturas necessárias para um referendo sobre reparação financeira aos sobreviventes. Falta agora a aprovação do Parlamento.
Ela é incerta. O Sindicato dos Agricultores e o majoritário Partido Democrata Liberal, por exemplo, sinalizaram que não vão contribuir para a instituição do fundo de 500 milhões de francos suíços (R$1,3 bilhão) recomendado por um comitê de sociólogos, historiadores e juristas.
Para os padrões suíços do século 19, quando uma criança nascia em família pobre ou desestruturada, ou se tornava órfã, a comunidade devia intervir. A solução encontrada para elas não onerarem os cofres públicos foi retirá-las de casa e repassá-las a agricultores necessitados de ajuda braçal.
Em tese as crianças aprenderiam a trabalhar em horários fora da escola e quando adultos conseguiriam sobreviver sozinhos.
De início essas verdingkinder eram leiloadas em pregões públicos e arrematadas por quem cobrasse do governo local a menor compensação pela adicional boca a alimentar. Numa segunda fase que perdurou até os anos 1930 a negociação passou a ser feita a portas fechadas.
O mapeamento completo desse capítulo da história exige o cruzamento de registros federais, cantonais e locais nem sempre existentes ou confiáveis.
“Enquanto aqui todo mundo sabe exatamente quantas vacas existem no país, já que cada uma está fichada, até hoje ninguém sabe ao certo quantas crianças foram retiradas à força de suas famílias”, declarou à BBC o guia de uma impactante exposição itinerante sobre o tema.
A mostra inaugurada em 2009 e que rodou por 12 cidades da federação assombrou quem a viu. A contundência dos depoimentos registrados e do registro fotográfico de época acordou a Suíça.
Não foi um despertar alegre para um país que se considera e é considerado civilizadíssimo, que tem um Roger Federer e abriga, entre tantas outras agências internacionais, justamente a Organização Internacional do Trabalho.
Em artigo publicado esta semana no “New York Times" o historiador e escritor Tony Wild narra a saga de sua avó Ida, baseado em documentos aos quais teve acesso recentemente. Ida e seu irmão caçula ficaram órfãos. Ela tinha 9 anos, ele 7. Foram separados e alocados a famílias de vilarejos próximos. Ali trabalharam durante oito anos.
Wild descobriu que a herança dos irmãos foi confiscada pelo Estado para pagar as famílias que os exploraram. Como diz o autor, ao colocar crianças vulneráveis à mercê de agricultores pobres e brutos, as autoridades criaram uma situação propícia ao abuso. Surras, desnutrição, abandono, doenças e abuso sexual foram corriqueiros
Houve crianças puxando sacos de trigo de cem quilos; outras só conseguiram aprender a ler depois de adultas. Por socialmente isolados na infância e na adolescência, muitos sobreviventes se auto-isolaram para o resto da vida. Os registros de suicídios ainda são incompletos. Há mulheres casadas, com filhos e netos, que escondem até mesmo o passado dos familiares por medo de também eles se tornarem socialmente discriminados.
Foram a paulatina mecanização da agricultura e a conquista feminina do direito ao voto em 1971 que fizeram definhar essa engenharia social perversa.
Talvez uma das últimas vítimas a ser arrebanhada foi o hoje artista plástico Christian M., de 42 anos. No ano não tão arcaico de 1979 a mãe de Christian se divorciara, o Estado interveio e confiscou seus dois filhos para trabalhar na lavoura. Cinco anos depois, em 1985, ele foi internado numa instituição. Estava com 14 anos de idade, exaurido física e psicologicamente, e com polioartrite.
Ao pesquisar seu fichário de 700 páginas descobriu que também seus pais haviam pago 900 francos suíços mensais à família postiça para garantir sua educação e conforto.
Uma década atrás o parlamento de Berna vetou a primeira tentativa de compensação para vítimas da esterilização adotada paralelamente. (O Estado também prendeu ou despachou para centros de reeducação mães solteiras e jovens considerados degenerados. Abortos forçados, esterilizações e castrações químicas fizeram parte da política social).
Mas o silêncio oficial sobre os verdingkinder só foi rompido em 2013, através do tão aguardado pedido de desculpas públicas. “Não poderíamos continuar a desviar o olhar, uma vez que foi exatamente isso que fizemos por tempo demais”, discursou a ministra da Justiça, Simonetta Sommaruga. Proclamou aquela data de “o dia da confissão e um chamamento contra a supressão e o esquecimento”. Uma lei que prevê a “reabilitação” de internados à força também foi aprovada.
Ainda falta muito, a começar pela compensação material. “Não foram apenas as autoridades e agricultores individuais que falharam. Foi uma atitude de toda a sociedade suíça, e ela precisa ser reexaminada”. Palavras sábias da advogada Jacqueline Fehr, do Partido Social Democrata.
Dorrit Harazim é jornalista
Fonte: http://oglobo.globo.com/opiniao/uma-infamia-no-passado-da-suica-14566231#ixzz3PGaFY9Nz
Heloísa Broggiato | Viena - 17/01/2015 - 06h00
Até meados do século XX, crianças suíças eram enviadas a casas de particulares por razões econômicas ou morais
Atualizada às 12h40
A rigidez moral deixou uma ferida aberta na vida da suíça Rosalie Müller. Aos 17 anos, ela engravidou do namorado, que era casado e pai de um filho. Em 1963, deu à luz um menino e trabalhou na cozinha de um abrigo para pagar as despesas do parto. Meses depois, o garoto foi encaminhado para adoção, sem a permissão dela. “Nunca tive qualquer notícia sobre o paradeiro de meu filho”, conta.
Já a infância de Walter Emmisberger foi entrecortada por maus tratos. Ele nasceu em uma prisão, em Tobel, na Suíça, em 1956, e foi levado a um abrigo de crianças, onde ficou por seis anos. Depois, foi entregue a uma família que o deixava preso em um porão escuro com frequência, até que decidiram entregá-lo a uma instituição religiosa.
Fotos: Divulgação/Paul Senn, FFV, Kunstmuseum Bern, Dep. GKS
Foto da exposição Verdingkinder reden: crianças em um reformatório na região de Sonnenberg, em 1944
Depois de ser abusado sexualmente pelo pastor, passou a frequentar uma clínica psiquiátrica. “Achavam que eu era um menino muito difícil para educar”, conta Emmisberger. A partir dos 11 anos, começou a ser tratado com uma série de medicamentos, nem todos identificados pelo nome. “Na escola, as professoras nunca desconfiaram que eu tremia e ficava apático por causa dos efeitos colaterais dos remédios.”
As histórias de Müller e Emmisberger convergem em um ponto: até meados do século XX, crianças e jovens suíços eram “acomodados” em casas de particulares ou em estabelecimentos fechados por razões econômicas ou morais. As medidas de restrição eram tomadas tanto por autoridades locais como por organizações privadas. As vítimas afetadas vinham de famílias pobres, eram órfãs ou nascidas fora do casamento. Além de serem enviadas a serviços oferecidos pelos cantões e municípios, havia encaminhamentos para instituições religiosas ou privadas. As crianças colocadas nessa situação em residências particulares (na maioria dos casos, em fazendas) eram consideradas parte da mão de obra e, poucas vezes, como membros da família.
Depois de anos de pressões de movimentos que pediam a reparação a essas crianças, o governo suíco decidiu nesta semana apresentar um projeto de lei que prevê a compensação financeira das vítimas no valor de 300 milhões de francos (cerca de R$ 917 milhões). Em julho de 2013, o Parlamento suíço já havia aprovado uma lei permitindo a investigação científica sobre jovens e adultos acomodados em penitenciárias ou outras instituições sociais fechadas. A lei, no entanto, não contemplava nenhuma indenização para as pessoas afetadas pelas medidas.
O movimento pró-reparação defende um fundo de 500 milhões de francos, cerca de R$ 1,3 bilhão, que deveria beneficiar as pessoas afetadas, independente da condição financeira. Um fundo de emergência de cerca de 8 milhões de francos suíços, o equivalente a R$ 20 milhões, já está à disposição de vítimas em situação crítica.
Família que teve as três crianças mais velhas retiradas do convívio; a imagem, de 1946, foi tirada no cantão de Berna
Até 1981, as autoridades administrativas podiam ordenar sem a necessidade de uma decisão judicial a acomodação de jovens ou adultos em estabelecimentos fechados (incluindo penitenciárias) por tempo indeterminado, com o objetivo de promover reeducação ou educação para o trabalho. Essas decisões eram motivadas por uma gravidez fora do casamento ou mudanças frequentes de emprego, por exemplo. Não havia possibilidade de recurso contra essas medidas.
Como resultado de um movimento de reavaliação deste momento histórico, no final de 2014 uma lista com cerca de 110 mil assinaturas foi entregue às autoridades do país pedindo indenização para cerca de 15 mil vítimas de trabalho forçado e maus tratos em consequência das práticas do serviço social na Suíça.
O texto ainda pede a compensação não só para vítimas das detenções administrativas, mas também para as vítimas de adoção e esterilização forçada e para as crianças arrendadas que foram vítimas de maus tratos e abuso sexual. As cem mil assinaturas são suficientes para forçar a organização um referendo no país.
Em novembro do ano passado, foi criada uma comissão independente de pesquisadores que deverá trabalhar em conjunto com um novo programa nacional de pesquisa para esclarecer os fatos. A ideia é descobrir os detalhes da vida dos suíços que sofreram com as práticas do serviço social e o sistema do qual fizeram parte entre 1800 e 1970.
”Queremos compreender como o sistema e a administração funcionavam, e as diferenças entre homens e mulheres”, diz a historiadora Loretta Seglias, membro da comissão e uma das autoras do livro Versorgt und Vergessen, da editora Rotpunkt. O livro apresenta entrevistas com 40 vítimas que trabalharam como crianças arrendadas.
Divulgação
Cena do filme Verdingbub; obra foi baseada na história das crianças arrendadas
Entre 2009 e 2014, a exposição “Crianças Arrendadas falam” (Verdingkinder reden) circulou por vários pontos do país com imagens e depoimentos de crianças e jovens que foram obrigados a deixar as famílias em situação econômica desfavorável para viver em fazendas ou instituições sociais. Nos novos lares, crianças executavam trabalho forçado e sofriam privação de liberdade. Em 2011, foi lançado o filme Verdingbub (“Rapaz arrendado”, em tradução livre), que expõe o cotidiano de um menino arrendado. A onda de eventos sobre o tema rendeu pedidos de desculpas oficiais do governo às vítimas, sensibilizou a opinião pública e esquentou o debate sobre o tema.
Já em 2013, a então ministra da Justiça (e hoje presidente da Suíça), Simonetta Sommaruga, havia criado um grupo para propor um pacote de medidas relacionadas ao tema. A “Mesa Redonda” é presidida pelo vice-secretário de Justiça, Luzius Mader e inclui vítimas, ONGs, autoridades locais e cantonais, representantes das igrejas, de instituições sociais e da Sociedade dos Agricultores.
Para Mader, o reconhecimento público dos danos causados às vítimas deve incluir alguma compensação financeira, garantia de acesso aos documentos administrativos, uma ampla pesquisa científica sobre todas as categorias de pessoas afetadas e a divulgação dos resultados.
Meninos no campo de trabalho no internato masculino Oberbipp, no cantão de Berna, em 1940
Abusos comuns
Os abusos contra as vítimas eram comuns, já que os controles previstos não eram efetuados e as famílias e estabelecimentos ficavam em locais isolados, de modo que os maus tratos não chegavam ao conhecimento das autoridades e acabavam sem punição.
Até os anos 1970, sob a ameaça de perder benefícios sociais, mulheres tinham o direito de abortar apenas se concordassem em se submeter à esterilização. Crianças filhas de mães menores de idade ou solteiras, de prostitutas, de situação financeira desfavorável, casadas com dependentes de álcool ou de desempregadas eram encaminhadas para adoção. Ainda que uma autorização por escrito da mãe fosse necessária, muitas vezes era obtida sob pressão.
Outra categoria afetada pelas medidas sociais foi a das crianças ciganas yéniches, grupo seminômade que se movimenta na Europa. Entre 1926 e 1973, cerca de 600 foram retiradas de suas famílias, encaminhadas para adoção ou acomodadas em outras famílias, nas quais os casos de abusos e maus tratos eram comuns.
Associações de agricultores afirmam, no entanto, que nem sempre jovens sofriam maus tratos. Para Guido Fluri, organizador da iniciativa popular com as assinaturas, bastam, no entanto, as experiências negativas como a da aposentada Lisa Wengler. Ela era menina quando sofreu abusos sexuais pelo vizinho da família para a qual trabalhava. “Quando contei para a senhora que era responsável por mim, ela me disse que não iria brigar com o vizinho por causa de uma desclassificada como eu”, afirma Wengler.
“Os fazendeiros se aproveitaram do sistema”, diz Fluri, filho de uma garçonete esquizofrênica. Ele nasceu em 1966, em Olten, cantão de Solothurn, passou a infância em abrigos de menores, e, apesar da infância difícil, se tornou empresário do setor imobiliário e financiou a campanha para a coleta de assinaturas com recursos próprios.
Fonte: http://operamundi.uol.com.br/conteu...criancas+arrendadas+e+vitimas+de+abusos.shtml
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Uma infâmia no passado da Suíça
Entre meados do século XIX e 1981, mais de 300 mil crianças pobres, órfãs ou consideradas fardo econômico foram distribuídas compulsoriamente pelo Estado a famílias de agricultores, como mão-de-obra barata
Invejada pelo alto padrão de vida, baixíssimo índice de criminalidade, estabilidade política e carga tributária mais do que amigável, a Suíça tem um acerto de contas a fazer com o seu passado.
É um acerto tão urgente quanto indigesto, pois expõe ao mundo a prática de uma “engenharia social" que os atuais 8 milhões de suíços prefeririam esquecer ou desconhecer.
Trata-se da reparação devida às verdingkinder (algo como “crianças arrendadas”). A designação se refere às mais de 300 mil crianças pobres, órfãs ou consideradas fardo econômico, distribuídas compulsoriamente pelo Estado a famílias de agricultores, como mão-de-obra barata.
Essa prática começou em meados do século 19 e estendeu-se, pasme o leitor, até 1981. Historiadores estimam que ao longo desse período 5% de todas as crianças suíças foram assim retiradas de suas famílias. Dessas, cerca de 10 mil ainda são vivas — adultos em sua maioria reclusos, envergonhados, estigmatizados, com cicatrizes psicológicas e físicas da infância roubada.
Uma petição lançada em abril deste ano ultrapassou as 100 mil assinaturas necessárias para um referendo sobre reparação financeira aos sobreviventes. Falta agora a aprovação do Parlamento.
Ela é incerta. O Sindicato dos Agricultores e o majoritário Partido Democrata Liberal, por exemplo, sinalizaram que não vão contribuir para a instituição do fundo de 500 milhões de francos suíços (R$1,3 bilhão) recomendado por um comitê de sociólogos, historiadores e juristas.
Para os padrões suíços do século 19, quando uma criança nascia em família pobre ou desestruturada, ou se tornava órfã, a comunidade devia intervir. A solução encontrada para elas não onerarem os cofres públicos foi retirá-las de casa e repassá-las a agricultores necessitados de ajuda braçal.
Em tese as crianças aprenderiam a trabalhar em horários fora da escola e quando adultos conseguiriam sobreviver sozinhos.
De início essas verdingkinder eram leiloadas em pregões públicos e arrematadas por quem cobrasse do governo local a menor compensação pela adicional boca a alimentar. Numa segunda fase que perdurou até os anos 1930 a negociação passou a ser feita a portas fechadas.
O mapeamento completo desse capítulo da história exige o cruzamento de registros federais, cantonais e locais nem sempre existentes ou confiáveis.
“Enquanto aqui todo mundo sabe exatamente quantas vacas existem no país, já que cada uma está fichada, até hoje ninguém sabe ao certo quantas crianças foram retiradas à força de suas famílias”, declarou à BBC o guia de uma impactante exposição itinerante sobre o tema.
A mostra inaugurada em 2009 e que rodou por 12 cidades da federação assombrou quem a viu. A contundência dos depoimentos registrados e do registro fotográfico de época acordou a Suíça.
Não foi um despertar alegre para um país que se considera e é considerado civilizadíssimo, que tem um Roger Federer e abriga, entre tantas outras agências internacionais, justamente a Organização Internacional do Trabalho.
Em artigo publicado esta semana no “New York Times" o historiador e escritor Tony Wild narra a saga de sua avó Ida, baseado em documentos aos quais teve acesso recentemente. Ida e seu irmão caçula ficaram órfãos. Ela tinha 9 anos, ele 7. Foram separados e alocados a famílias de vilarejos próximos. Ali trabalharam durante oito anos.
Wild descobriu que a herança dos irmãos foi confiscada pelo Estado para pagar as famílias que os exploraram. Como diz o autor, ao colocar crianças vulneráveis à mercê de agricultores pobres e brutos, as autoridades criaram uma situação propícia ao abuso. Surras, desnutrição, abandono, doenças e abuso sexual foram corriqueiros
Houve crianças puxando sacos de trigo de cem quilos; outras só conseguiram aprender a ler depois de adultas. Por socialmente isolados na infância e na adolescência, muitos sobreviventes se auto-isolaram para o resto da vida. Os registros de suicídios ainda são incompletos. Há mulheres casadas, com filhos e netos, que escondem até mesmo o passado dos familiares por medo de também eles se tornarem socialmente discriminados.
Foram a paulatina mecanização da agricultura e a conquista feminina do direito ao voto em 1971 que fizeram definhar essa engenharia social perversa.
Talvez uma das últimas vítimas a ser arrebanhada foi o hoje artista plástico Christian M., de 42 anos. No ano não tão arcaico de 1979 a mãe de Christian se divorciara, o Estado interveio e confiscou seus dois filhos para trabalhar na lavoura. Cinco anos depois, em 1985, ele foi internado numa instituição. Estava com 14 anos de idade, exaurido física e psicologicamente, e com polioartrite.
Ao pesquisar seu fichário de 700 páginas descobriu que também seus pais haviam pago 900 francos suíços mensais à família postiça para garantir sua educação e conforto.
Uma década atrás o parlamento de Berna vetou a primeira tentativa de compensação para vítimas da esterilização adotada paralelamente. (O Estado também prendeu ou despachou para centros de reeducação mães solteiras e jovens considerados degenerados. Abortos forçados, esterilizações e castrações químicas fizeram parte da política social).
Mas o silêncio oficial sobre os verdingkinder só foi rompido em 2013, através do tão aguardado pedido de desculpas públicas. “Não poderíamos continuar a desviar o olhar, uma vez que foi exatamente isso que fizemos por tempo demais”, discursou a ministra da Justiça, Simonetta Sommaruga. Proclamou aquela data de “o dia da confissão e um chamamento contra a supressão e o esquecimento”. Uma lei que prevê a “reabilitação” de internados à força também foi aprovada.
Ainda falta muito, a começar pela compensação material. “Não foram apenas as autoridades e agricultores individuais que falharam. Foi uma atitude de toda a sociedade suíça, e ela precisa ser reexaminada”. Palavras sábias da advogada Jacqueline Fehr, do Partido Social Democrata.
Dorrit Harazim é jornalista
Fonte: http://oglobo.globo.com/opiniao/uma-infamia-no-passado-da-suica-14566231#ixzz3PGaFY9Nz