Ana Lovejoy
Administrador
Após publicarem uma reportagem sobre supersalários de juízes e promotores do Paraná, repórteres do jornal "Gazeta do Povo" estão sendo processados em dezenas de cidades pelo Estado por magistrados que pedem indenização por danos morais.
As ações, em pelo menos 15 cidades, têm obrigado os cinco jornalistas que assinaram o material a viajarem por dias seguidos às audiências. Os pedidos somam R$ 1,3 milhão em indenizações.
Para o jornal, é uma tentativa de intimidação da imprensa. A Amapar (Associação dos Magistrados do Paraná) nega e diz que os juízes exerceram o seu direito.
O caso guarda semelhança com a enxurrada de ações contra a Folha em 2008, quando a então repórter especial Elvira Lobato foi processada por dezenas de fiéis da Igreja Universal por uma reportagem sobre o patrimônio da organização.
No Paraná, os juízes e dois promotores de justiça, que entraram com 36 ações individuais até aqui, reclamam de terem sido "ridicularizados" após o jornal ter afirmado que eles recebem supersalários.
A reportagem, publicada em fevereiro, compilou dados públicos para mostrar que, somados benefícios, a remuneração total de magistrados e promotores ultrapassa o teto do funcionalismo público.
A Associação dos Magistrados do Paraná declarou na época que o jornal prestava um "desserviço" e argumentou que todos os pagamentos estavam dentro da lei, já que férias, 13° e outros benefícios não se somam ao teto. O jornal argumenta que seu objetivo era "expor e debater o sentido do teto constitucional".
AÇÃO COORDENADA
Os jornalistas já sofreram uma primeira condenação, de R$ 20 mil. Na decisão, o julgador acusa a "Gazeta do Povo" de "agir de maneira descuidada" e "pejorativa".
A defesa do jornal sustenta que as petições iniciais são praticamente idênticas e fala em "ação coordenada".
Em audiência recente, um dos magistrados que recorreu à Justiça declarou, segundo gravação citada em recurso, que "muitas outras [ações] virão". "Nós nos mobilizamos e montamos um grupo", disse o juiz Walter Ligeiri Junior.
A Associação dos Magistrados do Paraná nega haver ação coordenada ou intimidação. "A imprensa deve ser livre. Mas, se abuso houver, ele deve ser reparado", defendeu a associação, em nota. Nesse caso, diz, a reportagem sugeriu que os juízes estariam praticando um ato ilícito, recebendo acima do teto.
A defesa da "Gazeta do Povo" recorreu ao STF (Supremo Tribunal Federal), argumentando que nenhum magistrado no Paraná é isento para julgar a causa, mas o pedido de suspender as ações foi negado.
A ANJ (Associação Nacional de Jornais) declarou ser "absolutamente solidária" à Gazeta do Povo e disse que o caso é "uma ofensa ao exercício do jornalismo e à liberdade de imprensa".
fonte
***
A Abraji repudia a retaliação de magistrados e promotores do Paraná ao jornal Gazeta do Povo e cinco de seus profissionais, iniciada no começo deste ano. Em reação a reportagens publicadas em fevereiro de 2016 sobre suas remunerações, juízes e promotores paranaenses moveram 36 ações judiciais por danos morais. O número deve aumentar.
Os processos foram protocolados em Juizados Especiais, o que obriga os jornalistas Chico Marés, Euclides Lucas Garcia e Rogério Galindo, além do analista de sistemas Evandro Balmant e do infografista Guilherme Storck a comparecer a todas as audiências de conciliação. Como há ações em todo o estado, os profissionais já percorreram mais de seis mil quilômetros nos últimos dois meses, atendendo a 18 intimações.
A ação foi coordenada pela Associação dos Magistrados Paranaenses (AMAPAR) e pela Associação Paranaense do Ministério Público (APMP), conforme mostra áudio do presidente da AMAPAR, Frederico Mendes Junior a um grupo de juízes. O magistrado orienta os colegas a entrar, "na medida do possível", com ações individuais, usando modelo de petição criado para esse fim.
Segundo fontes da Gazeta, em uma das audiências o juiz de Paranaguá Walter Ligeiri Junior afirmou que "a Amapar não tem absolutamente nada com isso" e que o movimento partiu de um grupo de juízes. Ligeiri Junior alertou os profissionais da Gazeta de que "depois dessa, muitas outras seguirão. São 700 juízes preparando ação".
Surpreende que os magistrados e promotores ignorem a jurisprudência sobre essa forma de assédio judicial. Em 2008, a Igreja Universal do Reino de Deus aplicou a mesma tática de intimidação da imprensa, orientando fiéis de todo o país a mover ações contra a jornalista Elvira Lobato e a Folha de S.Paulo, frente à publicação de reportagem sobre empresas ligadas ao bispo Edir Macedo. À época, as mais de 90 ações judiciais por danos morais não prosperaram e em alguns casos houve condenação da Universal e de fiéis por litigância de má-fé, ou seja, abertura de processo para obter resultado ilegal ou apenas para prejudicar outra parte.
Parecem desconhecer, ainda, as regras de transparência estabelecidas por seus próprios órgãos de controle. Segundo o Art. 6º, inciso VII, item d) da Resolução 215/2015 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a remuneração de juízes deve ser divulgada, por ser informação de interesse público. O mesmo se aplica aos vencimentos dos promotores, de acordo com o Art. 7º, inciso VII da Resolução 89/2012 do Conselho Nacional do Ministério Público.
Para a Abraji, os processos na Justiça não buscam a reparação de eventuais danos provocados pelas reportagens, mas intimidar o trabalho da imprensa e, por isso, são um atentado à democracia. A Abraji espera que as ações sejam julgadas improcedentes e a retaliação à Gazeta do Povo e a seus profissionais não continue. É inaceitável que magistrados e promotores coloquem o corporativismo acima de direitos fundamentais como a liberdade de expressão e o acesso a informações de interesse público.
Diretoria da Abraji, 6 de junho de 2016
***
Desculpa, mas vai ter que ter TEXTÃO.
Nos últimos dois meses, eu, o Rogerio, o Euclides, o Evandro, o Guilherme e a Gazeta do Povo estamos sendo alvo de uma das piores perseguições a jornalistas e ao jornalismo que já presenciamos. Não digo a pior porque já vi colegas meus sofrerem ameaças às suas vidas – não por acaso os melhores jornalistas daqui da paróquia. Mas a opressão das engrenagens do Judiciário brasileiro sobre as nossas vidas pessoais tem sido brutal, e a cada dia que passa fica mais difícil lidar com isso.
Em fevereiro, nós publicamos uma série de matérias sobre a desproporcional remuneração de magistrados e membros do MP estadual. Analisamos os vencimentos anuais das categorias e verificamos que, somando o salário base com auxílios, indenizações e um retroativo que, logicamente, não faz qualquer sentido, a média de rendimentos anuais deles ultrapassa em 20% o teto – o salário de um procurador e de um desembargador, à época, R$ 30.471. Aliás, os deputados já fizeram o favor de aumentar isso, sem qualquer contrapartida em relação ao bom projeto de lei que limita a concessão desses benefícios esdrúxulos.
Todo o material passou, a priori e a posteriori, por um processo rigorosíssimo de checagem. Não tem um número ou uma palavra que não seja 100%, comprovadamente verdadeira. Absolutamente nada que possa ser questionado do ponto de vista legal. Colocarei nos comentários os links para as tais reportagens e para a coluna do Rogerio, para quem quiser conferir.
Apesar disso, um grupo de juízes decidiu nos processar. Até aí, nada de mal – é parte do jogo. O problema é que o interesse deles pouco tinha a ver com ser ressarcido pelos supostos “danos morais”. Essa história se trata, sim, de uma tentativa vergonhosa de constrangimento e cerceamento da liberdade de expressão e de imprensa.
Esse grupo de juízes decidiu apresentar mais de 30 ações individuais, todas idênticas, no Juizado Especial, pedindo o teto de pequenas causas (40 salários mínimos). No Juizado Especial, nós somos obrigados a comparecer pessoalmente a todas as audiências de conciliação – mesmo que todos saibam de antemão que não haverá acordo. Ou seja: nos últimos dois meses, nós viajamos o Paraná inteiro para participar de audiências sem qualquer propósito, sem contar as tardes que tivemos que passar nos juizados aqui de Curitiba e da RMC. Sem poder trabalhar, sem poder tocar nossas vidas.
Não é uma estratégia nova; uma repórter da Folha de S. Paulo teve que participar de mais de cem audiências, nesse mesmo esquema, porque fiéis da Universal ficaram “ofendidos” com reportagem sobre picaretagens cometidas pela cúpula da igreja. O Congresso em Foco teve que suspender os trabalhos de reportagens por semanas por estratégia similar de funcionários do Senado. Mas a novidade, aqui, é que representantes da própria Justiça estão deturpando os instrumentos do Poder Judiciário para tentar calar a imprensa e constranger jornalistas.
Mais sobre essa história você pode ler clicando no link para essa matéria que a Estelita escreveu. O que eu queria falar mesmo era sobre o efeito dessa desgraça toda nas nossas vidas profissionais e pessoais.
No lado profissional, nós nos tornamos praticamente inúteis nos últimos dois meses. A gente não tem tempo para apurar qualquer coisa com profundidade, e até deixamos passar bons furos de reportagem porque simplesmente não tínhamos como executá-los. Além disso, isso sobrecarregou o trabalho de outros colegas. A redação ficou desfalcada de boa parte da equipe de política quando Michel Temer tomava posse como presidente – enquanto nós matávamos tempo em um hotel em União da Vitória, esperando mais uma de dezenas de audiências. É uma sensação de impotência insuportável.
Mas na vida pessoal é que o calo tem apertado. Parece besteira, mas passar dias e mais dias preso em uma van exaure o espírito e o corpo de qualquer um. Seu sono fica desregulado. No próximo domingo, por exemplo, vamos ter que sair de Curitiba às 4 da manhã. É mais uma noite que será meio dormida – o que é pior que uma noite não dormida. Suas pernas doem. A comida de posto de gasolina te dá uma azia interminável. O Rogerio ainda conseguiu aproveitar para ler Guerra e Paz e Ulisses, mas eu não consigo ler em veículos em movimento sem ficar nauseado. O tédio fica insuportável. Tem horas que você só quer pular da janela da van.
Para mim, a rotina tem sido isso. Mas sou solteiro, vivo sozinho, não tenho outras pessoas para cuidar. Acho que estou com a situação mais tranquila entre todos da van. A Ana, mulher do Euclides, está grávida de oito meses. Vai que o moleque inventa de vir ao mundo enquanto a gente está entre Candói e Nova Laranjeiras, o que ele vai fazer? O que ela vai fazer? Mesmo sem considerar isso, quantas noites uma mulher no auge da gravidez teve que passar sozinha por causa do ego dolorido de algum juiz de Assaí ou Cascavel? E o filho do Rogerio, que tem 2 anos e mal vê o pai há dois meses? Como explicar para ele essa rotina maluca? Um pai que, do dia para noite, não dorme mais em casa na maior parte do tempo?
Mas o que realmente me incomoda é encarar esses juízes. Ver pessoas que nitidamente não leram a matéria, mas nos chamam de mentirosos (mesmo que a própria ação que eles apresentaram deixe claro que não há qualquer erro de natureza factual). Ver gente dizer que ganha uma “porcaria de salário” (o mais baixo é de, se não me engano, R$ 23 mil). Ver gente tentando ensinar jornalistas como fazer jornalismo (denuncie, mas denuncie os outros). É humilhante, é degradante. Geralmente, tento ficar calado, até porque eu sou um cara esquentado e tenho dificuldades em controlar o que eu digo. Mas em umas duas ocasiões não aguentei e tive que ser contido pelos colegas e pelos advogados. É uma ladainha insuportável, que virou nossa rotina.
Diante de tudo isso, não tem como a gente não se perguntar, nos momentos mais difíceis, se valeu a pena fazer essa matéria e ter que passar por tudo isso. A gente não ganhou nada além de dor de cabeça, de aporrinhação, de humilhação. Se desse para voltar no tempo, a gente faria essa matéria de novo?
Sim, eu faria essa matéria de novo, do mesmo jeito. Mesmo que eu tivesse (ou tenha) que ficar vagando pelo Paraná por mais dois anos. Eu nunca estive tão cansado, tão irritado, tão indignado, minha perna dói, minha úlcera tem me atacado como nunca, mas eu não estou triste. Pelo contrário, eu me sinto feliz, me sinto realizado, sinto que estou fazendo algo importante da minha vida.
Se a gente está passando por tudo isso, é porque a gente fez um puta trabalho. É como se fosse um prêmio ao contrário. Todo esse périplo é como um recibo da relevância do nosso trabalho, uma prova viva de que o que a gente faz tem, sim, importância para a nossa comunidade. A gente só está sendo perseguido por que a gente cutucou uma ferida que tinha que ser cutucada. E o Euclides vai contar para o filho dele, o Rogerio vai contar para o filho dele, e eu, se um dia tiver filhos, vou contar para eles o que a gente fez. E eles vão achar massa pra caralho.
Esse orgulho de ter feito um trabalho sério, honesto, relevante, bem feito e de absoluto interesse público é algo que juiz nenhum vai tirar da gente. Que eles durmam com isso.
Francisco de Souza
As ações, em pelo menos 15 cidades, têm obrigado os cinco jornalistas que assinaram o material a viajarem por dias seguidos às audiências. Os pedidos somam R$ 1,3 milhão em indenizações.
Para o jornal, é uma tentativa de intimidação da imprensa. A Amapar (Associação dos Magistrados do Paraná) nega e diz que os juízes exerceram o seu direito.
O caso guarda semelhança com a enxurrada de ações contra a Folha em 2008, quando a então repórter especial Elvira Lobato foi processada por dezenas de fiéis da Igreja Universal por uma reportagem sobre o patrimônio da organização.
No Paraná, os juízes e dois promotores de justiça, que entraram com 36 ações individuais até aqui, reclamam de terem sido "ridicularizados" após o jornal ter afirmado que eles recebem supersalários.
A reportagem, publicada em fevereiro, compilou dados públicos para mostrar que, somados benefícios, a remuneração total de magistrados e promotores ultrapassa o teto do funcionalismo público.
A Associação dos Magistrados do Paraná declarou na época que o jornal prestava um "desserviço" e argumentou que todos os pagamentos estavam dentro da lei, já que férias, 13° e outros benefícios não se somam ao teto. O jornal argumenta que seu objetivo era "expor e debater o sentido do teto constitucional".
AÇÃO COORDENADA
Os jornalistas já sofreram uma primeira condenação, de R$ 20 mil. Na decisão, o julgador acusa a "Gazeta do Povo" de "agir de maneira descuidada" e "pejorativa".
A defesa do jornal sustenta que as petições iniciais são praticamente idênticas e fala em "ação coordenada".
Em audiência recente, um dos magistrados que recorreu à Justiça declarou, segundo gravação citada em recurso, que "muitas outras [ações] virão". "Nós nos mobilizamos e montamos um grupo", disse o juiz Walter Ligeiri Junior.
A Associação dos Magistrados do Paraná nega haver ação coordenada ou intimidação. "A imprensa deve ser livre. Mas, se abuso houver, ele deve ser reparado", defendeu a associação, em nota. Nesse caso, diz, a reportagem sugeriu que os juízes estariam praticando um ato ilícito, recebendo acima do teto.
A defesa da "Gazeta do Povo" recorreu ao STF (Supremo Tribunal Federal), argumentando que nenhum magistrado no Paraná é isento para julgar a causa, mas o pedido de suspender as ações foi negado.
A ANJ (Associação Nacional de Jornais) declarou ser "absolutamente solidária" à Gazeta do Povo e disse que o caso é "uma ofensa ao exercício do jornalismo e à liberdade de imprensa".
fonte
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A Abraji repudia a retaliação de magistrados e promotores do Paraná ao jornal Gazeta do Povo e cinco de seus profissionais, iniciada no começo deste ano. Em reação a reportagens publicadas em fevereiro de 2016 sobre suas remunerações, juízes e promotores paranaenses moveram 36 ações judiciais por danos morais. O número deve aumentar.
Os processos foram protocolados em Juizados Especiais, o que obriga os jornalistas Chico Marés, Euclides Lucas Garcia e Rogério Galindo, além do analista de sistemas Evandro Balmant e do infografista Guilherme Storck a comparecer a todas as audiências de conciliação. Como há ações em todo o estado, os profissionais já percorreram mais de seis mil quilômetros nos últimos dois meses, atendendo a 18 intimações.
A ação foi coordenada pela Associação dos Magistrados Paranaenses (AMAPAR) e pela Associação Paranaense do Ministério Público (APMP), conforme mostra áudio do presidente da AMAPAR, Frederico Mendes Junior a um grupo de juízes. O magistrado orienta os colegas a entrar, "na medida do possível", com ações individuais, usando modelo de petição criado para esse fim.
Segundo fontes da Gazeta, em uma das audiências o juiz de Paranaguá Walter Ligeiri Junior afirmou que "a Amapar não tem absolutamente nada com isso" e que o movimento partiu de um grupo de juízes. Ligeiri Junior alertou os profissionais da Gazeta de que "depois dessa, muitas outras seguirão. São 700 juízes preparando ação".
Surpreende que os magistrados e promotores ignorem a jurisprudência sobre essa forma de assédio judicial. Em 2008, a Igreja Universal do Reino de Deus aplicou a mesma tática de intimidação da imprensa, orientando fiéis de todo o país a mover ações contra a jornalista Elvira Lobato e a Folha de S.Paulo, frente à publicação de reportagem sobre empresas ligadas ao bispo Edir Macedo. À época, as mais de 90 ações judiciais por danos morais não prosperaram e em alguns casos houve condenação da Universal e de fiéis por litigância de má-fé, ou seja, abertura de processo para obter resultado ilegal ou apenas para prejudicar outra parte.
Parecem desconhecer, ainda, as regras de transparência estabelecidas por seus próprios órgãos de controle. Segundo o Art. 6º, inciso VII, item d) da Resolução 215/2015 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a remuneração de juízes deve ser divulgada, por ser informação de interesse público. O mesmo se aplica aos vencimentos dos promotores, de acordo com o Art. 7º, inciso VII da Resolução 89/2012 do Conselho Nacional do Ministério Público.
Para a Abraji, os processos na Justiça não buscam a reparação de eventuais danos provocados pelas reportagens, mas intimidar o trabalho da imprensa e, por isso, são um atentado à democracia. A Abraji espera que as ações sejam julgadas improcedentes e a retaliação à Gazeta do Povo e a seus profissionais não continue. É inaceitável que magistrados e promotores coloquem o corporativismo acima de direitos fundamentais como a liberdade de expressão e o acesso a informações de interesse público.
Diretoria da Abraji, 6 de junho de 2016
***
Desculpa, mas vai ter que ter TEXTÃO.
Nos últimos dois meses, eu, o Rogerio, o Euclides, o Evandro, o Guilherme e a Gazeta do Povo estamos sendo alvo de uma das piores perseguições a jornalistas e ao jornalismo que já presenciamos. Não digo a pior porque já vi colegas meus sofrerem ameaças às suas vidas – não por acaso os melhores jornalistas daqui da paróquia. Mas a opressão das engrenagens do Judiciário brasileiro sobre as nossas vidas pessoais tem sido brutal, e a cada dia que passa fica mais difícil lidar com isso.
Em fevereiro, nós publicamos uma série de matérias sobre a desproporcional remuneração de magistrados e membros do MP estadual. Analisamos os vencimentos anuais das categorias e verificamos que, somando o salário base com auxílios, indenizações e um retroativo que, logicamente, não faz qualquer sentido, a média de rendimentos anuais deles ultrapassa em 20% o teto – o salário de um procurador e de um desembargador, à época, R$ 30.471. Aliás, os deputados já fizeram o favor de aumentar isso, sem qualquer contrapartida em relação ao bom projeto de lei que limita a concessão desses benefícios esdrúxulos.
Todo o material passou, a priori e a posteriori, por um processo rigorosíssimo de checagem. Não tem um número ou uma palavra que não seja 100%, comprovadamente verdadeira. Absolutamente nada que possa ser questionado do ponto de vista legal. Colocarei nos comentários os links para as tais reportagens e para a coluna do Rogerio, para quem quiser conferir.
Apesar disso, um grupo de juízes decidiu nos processar. Até aí, nada de mal – é parte do jogo. O problema é que o interesse deles pouco tinha a ver com ser ressarcido pelos supostos “danos morais”. Essa história se trata, sim, de uma tentativa vergonhosa de constrangimento e cerceamento da liberdade de expressão e de imprensa.
Esse grupo de juízes decidiu apresentar mais de 30 ações individuais, todas idênticas, no Juizado Especial, pedindo o teto de pequenas causas (40 salários mínimos). No Juizado Especial, nós somos obrigados a comparecer pessoalmente a todas as audiências de conciliação – mesmo que todos saibam de antemão que não haverá acordo. Ou seja: nos últimos dois meses, nós viajamos o Paraná inteiro para participar de audiências sem qualquer propósito, sem contar as tardes que tivemos que passar nos juizados aqui de Curitiba e da RMC. Sem poder trabalhar, sem poder tocar nossas vidas.
Não é uma estratégia nova; uma repórter da Folha de S. Paulo teve que participar de mais de cem audiências, nesse mesmo esquema, porque fiéis da Universal ficaram “ofendidos” com reportagem sobre picaretagens cometidas pela cúpula da igreja. O Congresso em Foco teve que suspender os trabalhos de reportagens por semanas por estratégia similar de funcionários do Senado. Mas a novidade, aqui, é que representantes da própria Justiça estão deturpando os instrumentos do Poder Judiciário para tentar calar a imprensa e constranger jornalistas.
Mais sobre essa história você pode ler clicando no link para essa matéria que a Estelita escreveu. O que eu queria falar mesmo era sobre o efeito dessa desgraça toda nas nossas vidas profissionais e pessoais.
No lado profissional, nós nos tornamos praticamente inúteis nos últimos dois meses. A gente não tem tempo para apurar qualquer coisa com profundidade, e até deixamos passar bons furos de reportagem porque simplesmente não tínhamos como executá-los. Além disso, isso sobrecarregou o trabalho de outros colegas. A redação ficou desfalcada de boa parte da equipe de política quando Michel Temer tomava posse como presidente – enquanto nós matávamos tempo em um hotel em União da Vitória, esperando mais uma de dezenas de audiências. É uma sensação de impotência insuportável.
Mas na vida pessoal é que o calo tem apertado. Parece besteira, mas passar dias e mais dias preso em uma van exaure o espírito e o corpo de qualquer um. Seu sono fica desregulado. No próximo domingo, por exemplo, vamos ter que sair de Curitiba às 4 da manhã. É mais uma noite que será meio dormida – o que é pior que uma noite não dormida. Suas pernas doem. A comida de posto de gasolina te dá uma azia interminável. O Rogerio ainda conseguiu aproveitar para ler Guerra e Paz e Ulisses, mas eu não consigo ler em veículos em movimento sem ficar nauseado. O tédio fica insuportável. Tem horas que você só quer pular da janela da van.
Para mim, a rotina tem sido isso. Mas sou solteiro, vivo sozinho, não tenho outras pessoas para cuidar. Acho que estou com a situação mais tranquila entre todos da van. A Ana, mulher do Euclides, está grávida de oito meses. Vai que o moleque inventa de vir ao mundo enquanto a gente está entre Candói e Nova Laranjeiras, o que ele vai fazer? O que ela vai fazer? Mesmo sem considerar isso, quantas noites uma mulher no auge da gravidez teve que passar sozinha por causa do ego dolorido de algum juiz de Assaí ou Cascavel? E o filho do Rogerio, que tem 2 anos e mal vê o pai há dois meses? Como explicar para ele essa rotina maluca? Um pai que, do dia para noite, não dorme mais em casa na maior parte do tempo?
Mas o que realmente me incomoda é encarar esses juízes. Ver pessoas que nitidamente não leram a matéria, mas nos chamam de mentirosos (mesmo que a própria ação que eles apresentaram deixe claro que não há qualquer erro de natureza factual). Ver gente dizer que ganha uma “porcaria de salário” (o mais baixo é de, se não me engano, R$ 23 mil). Ver gente tentando ensinar jornalistas como fazer jornalismo (denuncie, mas denuncie os outros). É humilhante, é degradante. Geralmente, tento ficar calado, até porque eu sou um cara esquentado e tenho dificuldades em controlar o que eu digo. Mas em umas duas ocasiões não aguentei e tive que ser contido pelos colegas e pelos advogados. É uma ladainha insuportável, que virou nossa rotina.
Diante de tudo isso, não tem como a gente não se perguntar, nos momentos mais difíceis, se valeu a pena fazer essa matéria e ter que passar por tudo isso. A gente não ganhou nada além de dor de cabeça, de aporrinhação, de humilhação. Se desse para voltar no tempo, a gente faria essa matéria de novo?
Sim, eu faria essa matéria de novo, do mesmo jeito. Mesmo que eu tivesse (ou tenha) que ficar vagando pelo Paraná por mais dois anos. Eu nunca estive tão cansado, tão irritado, tão indignado, minha perna dói, minha úlcera tem me atacado como nunca, mas eu não estou triste. Pelo contrário, eu me sinto feliz, me sinto realizado, sinto que estou fazendo algo importante da minha vida.
Se a gente está passando por tudo isso, é porque a gente fez um puta trabalho. É como se fosse um prêmio ao contrário. Todo esse périplo é como um recibo da relevância do nosso trabalho, uma prova viva de que o que a gente faz tem, sim, importância para a nossa comunidade. A gente só está sendo perseguido por que a gente cutucou uma ferida que tinha que ser cutucada. E o Euclides vai contar para o filho dele, o Rogerio vai contar para o filho dele, e eu, se um dia tiver filhos, vou contar para eles o que a gente fez. E eles vão achar massa pra caralho.
Esse orgulho de ter feito um trabalho sério, honesto, relevante, bem feito e de absoluto interesse público é algo que juiz nenhum vai tirar da gente. Que eles durmam com isso.
Francisco de Souza