Fúria da cidade
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Cena de "O Homem que Matou Dom Quixote" Imagem: Amazon Studios
História do pretenso cavaleiro que combatia moinhos de vento imaginado gigantes, "Dom Quixote" (1605), do espanhol Miguel de Cervantes, é um dos maiores clássicos de literatura mundial e já rendeu dezenas de adaptações para a TV e cinema. A próxima estreia no dia 6 de junho: "O Homem que Matou Dom Quixote", filme ao qual o britânico Terry Gilliam (ex- Monty Python) vinha se debruçando há mais de 20 anos.
A releitura moderna, estrelada por Jonathan Pryce (Dom Quixote) e Adam Driver (Toby ou Sancho Pança), chega cercada de críticas e desconfiança --além de prognósticos pouco animadores de bilheteria. Não é a primeira vez.
Apesar das boas produções já lançadas, incluindo a aclamada versão soviética de 1957, dirigida por Grigoriy Kozintsev, e o telefilme de 2000 do diretor Peter Yates, indicado a vários prêmios, críticos e admiradores de Cervantes costumam convergir em um ponto.
Não existe uma adaptação definitiva --ou algo que se aproxime disso-- da saga do fidalgo espanhol, leitor voraz de romances de cavalaria, que um dia cede ao devaneio e passa a acreditar que ele mesmo havia se tornado um cavaleiro.
Para tentar entender por que isso acontece, o UOL ouviu a professora de literatura espanhola da USP Maria Augusta Vieira, uma das maiores especialistas brasileiras na obra de Cervantes, e chegou a quatro tópicos que ajudam a explicar as dificuldades de uma transposição sempre delicada.
Formato importa
Uma das características definidoras de "Dom Quixote" não está exatamente na história que o livro conta, mas na forma em que ela é contada. Segundo estudiosos da obra, existe um tipo de conexão pessoa entre o texto e o leitor, algo problemático de ser reproduzido via artifícios do audiovisual.
A possibilidade de utilização da voz de um narrador ajuda, mas não muito. "Essa conexão é impossível de se transparecer na tela ou em outras adaptações. Existem boas versões, mas elas costumam ser mais episódicas, focando nas aventuras e os desacertos da história", entende Maria Augusta.
"A obra original indaga o leitor, levanta questões e nos faz mergulhar profundamente na problemática dos personagens. É assim que o livro funciona e não poderia ser de outra maneira. O que interessa está além do que é contato, está na forma, e isso acaba empobrecendo muitas reproduções."
Francisco Reiguera na pele de Dom Quixote, no filme inacabado do lendário Orson Welles Imagem: Reprodução
Obra com vários pontos de vista
Outra dificuldade que as séries e filmes precisam superar: a fragmentação narrativa do livro, que é contado a partir de diversos pontos de vista diferentes, cada qual com sua psicologia. A voz que conduz e interpreta os fatos também é múltipla.
"Existe uma integração complexa de vozes na obra, o que é difícil de reproduzir fora do universo das letras. Às vezes a história é narrada por um árabe, às vezes por um tradutor, às vezes por um narrador não muito determinado", salienta a professora.
"A visão do personagem Dom Quixote sobre os fatos é uma. A do autor é a outra. A do Sancho Pança, uma terceira, mais ligada à realidade. Isso também acontece com outros personagens. É um emaranhado de visões sobre o que está se desenvolvendo que é típico da literatura e dificulta adaptações."
Cena de "Don Kikhot" (1957), adaptação soviética do romance de Cervantes Imagem: Reprodução
Narrativa longa e lenta
Calcado no humor e na inversão de expectativas de Quixote (o "onírico") e Sancho (o "real"), o romance original é composto por 126 capítulos divididos em duas partes. São mais de mil páginas de história.
Os acontecimentos transcorrem em compasso lento, em tempo pouco cinematográfico. Em tempos de histórias rápidas e cortes secos, um filme precisaria de muito mais do que duas ou três horas para mergulhar a fundo nos personagens.
"Esse definitivamente é um problema. Mas é possível selecionar passagens de forma interessante. Isso pode ser feito numa série, por exemplo. O diretor espanhol Manuel Gutiérrez Aragón fez um excelente trabalho com o filme 'El Caballero Don Quijote' [2002], que tem ótimas atuações é bem resolvido na reconstrução da Mancha [região espanhola descrita no livro]. Mas ainda assim algo se perde na conversa com o leitor."
Cena do telefilme "Dom Quixote" (2000), dirigido por Peter Yates Imagem: Reprodução
Violência nas entrelinhas
"Dom Quixote" é uma obra multifacetada, protagonizada por homem de meia-idade à procura do amor que cede à loucura e se torna violento. No entendimento de alguns estudiosos, o personagem vê na fúria contra inimigos imaginários uma forma de transformação social, em contraposição ao diálogo. Em tempos de radicalismo e acirramento política, essa é uma alegoria que precisaria ser transformada.
É preciso frisar, no entanto, que romance escrito no século 17 é, também, uma paródia dos romances de cavalaria. "Dom Quixote continua forte e atual. Fala de um desejo que está além da capacidade de quem deseja, e o autor questiona tudo isso com inteligência", afirma a professora.
"Ele indaga, por exemplo, a leitura e a forma como você interpreta o mundo a partir dela. A imaginação como um componente central. Isso tem tudo a ver com a contemporaneidade."
Sancho Pança e Dom Quixote, dois dos personagens mais celebrados da literatura mundial Imagem: Hulton Archive / Getty Images
https://entretenimento.uol.com.br/n...-adaptar-dom-quixote-para-a-tv-e-o-cinema.htm
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Essa é uma discussão interessante. Já vi mais adaptações de teatro do que de cinema e em todas tinham diferentes abordagens. É de fato uma obra que não é fácil de ser adaptada.