Bruce Torres
Let's be alone together.
Geração perdida
11 de Outubro de 2017 às 11:56
Carson McCullers, Gore Vidal e Truman Capote. Nos anos 1950, nenhum crítico literário poderia imaginar que esses três romancistas jovens e irreverentes estariam não só passando a perna nos famosos escritores pertencentes à conhecida “geração perdida”, para usar a etiqueta inventada por Gertrude Stein em Paris, como também botando a maior banca na segunda metade do século XX. Os desconhecidos e audaciosos jovens escritores são os primeiros a pôr contra a parede os notáveis romancistas que, durante os primeiros 50 anos do século XX, transferiram a ficção da sua matriz europeia para a filial norte-americana. Destaco Ernest Hemingway, John dos Passos, John Steinbeck, Scott Fitzgerald e William Faulkner.
Caso todos esses e outros romancistas não tivessem sido precedidos pela obra de dois intelectuais norte-americanos com larga e notável experiência no Velho Mundo, talvez não tivessem sido tão elogiados pela crítica nacional e internacional. Refiro-me a dois anfíbios (se me permitem o substantivo). Ambos se sentiam bem de um lado e do outro do Atlântico e também a navegar pelo oceano. Os dois anfíbios é que possibilitam o trânsito pausado, medido e confortável da escrita ficcional da tradição europeia, incluindo a experiência chocante de James Joyce, para as inovações revolucionárias propostas a nós, americanos, pela complexa experiência social do colonialismo e pelo avanço científico e tecnológico no Novo Mundo.
Refiro-me, primeiro, ao romancista Henry James, contemporâneo do nosso Machado de Assis. Os vários prefácios que antecedem seus romances alimentaram a arte poética codificada pelo crítico Percy Lubbock no memorável A técnica da ficção, publicado em 1921 (Cultrix, 1976). Este livro, por sua vez, foi retomado e atualizado em 1961 por Wayne Booth noutro clássico, The Rhetoric of Fiction. Nos anos 1920, o jovem prosador norte-americano já tinha à mão informações seguras sobre o novo artesanato (craft) em ficção e, a partir dos anos 1960, seu herdeiro já poderia dominar algo um tanto mais luxuoso e complicado, sua retórica. De sobra, ainda em língua inglesa, pense-se na contribuição oferecida por Aspectos do romance (1927), de E.M. Forster (Globo, 1998), notável romancista britânico.
Refiro-me, em seguida, a Gertrude Stein. Instalada em Paris com sua companheira Alice B. Toklas, ela dá régua e compasso a todos os “autoexilados” (dentre eles o norte-americano Hemingway e o espanhol Picasso) com a sua admiração à escrita da imagem, julgando-a a mais poderosa das representações da modernidade. Retomo passagem da Autobiografia de Alice B. Toklas, a sair pela Companhia das Letras: “eu sinto com meus olhos [...] com meus olhos eu vejo palavras e frases”. Gertrude compõe a página com os olhos, assim como Cézanne, Picasso e Matisse compunham a tela. No convívio diário com os grandes pintores cubistas em Paris, interessou-lhe a feitura da obra artística, ou seja, a arte da composição e a ética da forma. Transpunha o saber visual para a escrita literária. Leia-se o indispensável How to write (1931).
O final 1 é número cabalístico no avanço metódico e formal do romance norte-americano pela literatura universal: 1921, Lubbock, 1931, Stein, 1961, Booth.
Caso passássemos do relato sobre a prosa de ficção para a reflexão sobre a poesia e o ensaio literário norte-americano, teria de acrescentar um terceiro anfíbio à primeira dupla. Refiro-me ao poeta londrino T. S. Eliot, nascido no berço do jazz e do blues, em Saint Louis (Missouri), e à sua presença marcante na lírica moderna e na formulação do new criticism. Falta, enfim, uma palavra altamente elogiosa ao abominável homem do fascismo italiano, Ezra Pound.
De volta a Hemingway, dos Passos, Steinbeck, Fitzgerald e Faulkner, lembro que Claude-Edmonde Magny, crítica francesa, foi quem provou no livro L’Age du Roman Américan (1948) que foram os romancistas da “geração perdida” que incorporaram à forma do romance europeu no século XVIII, tal como seria exposta por Ian Watt em The Rise of the Novel (1957), a descrição narrativa comportamental, desenvolvida à exaustão e precocemente pelo filme hollywoodiano de sucesso. Incorporação foi fomentada não só pela apropriação de personagens desconhecidos e atuais no universo artístico europeu como também pela reflexão dos escritores sobre o uso a ser feito da montagem cinematográfica no romance. Bastava seguir de perto os princípios estabelecidos por teóricos da Sétima Arte como os soviéticos Lev Kulechov (v. efeito Kulechov) e Sergei Eisenstein (Film Form & the Film Sense), e o francês André Malraux (a invenção do close-up é analisada em Esquisse d’une psychologie du cinema).
Assim sendo, a forma do romance ou do conto moderno – cujos pontos altos no século XIX foram ditados pelos canônicos Gustave Flaubert e Guy de Maupassant − perdia a composição linear proposta pelo desenvolvimento cronológico da trama, enquanto os personagens se distanciavam das sutilezas oferecidas pelo romance e a novela de análise psicológica (roman d’analyse), cujo modelo nos fora legado por Madame de La Fayette ao publicar em 1678 La princesse de Clèves.
Leia-se principalmente a obra de Faulkner. Abriam-se as comportas da ficção pequeno-burguesa para que figuras humanas aventureiras, broncas e medíocres – muitas delas miseráveis habitantes do submundo urbano ou rural, machos e brancos − entrassem ficção adentro não pela porta da introspecção, mas pela do comportamento (behaviorismo). A leitura do romance ou do conto se aproxima da resolução de um quebra-cabeça. Como resumo, cite-se cena sintomática do romance Santuário (Abril Cultural, 1980), de William Faulkner. O personagem Popeye violenta uma moça com uma espiga de milho.
Ao contrário do contemporâneo Norman Mailer, que dá continuidade à prosa violenta e machista da geração perdida, os jovens Carson McCullers, Gore Vidal e Truman Capote são romancistas sensíveis e sinceros que, ao negar direito de cidadania aos autores já clássicos da primeira metade do século, buscam se afirmar na cena literária por estilo e trama alternativos. Estilo e trama alternativos não encontram seu modelo de escrita nos Estados Unidos como não encontrarão seu modelo no Brasil para a nossa Clarice Lispector, que estreia nas letras em 1944. Para os americanos, a escrita alternativa vinha sendo exposta como feridas abertas na prosa de ficção por duas notáveis escritoras, a neozelandesa Katherine Mansfield e a britânica Virginia Woolf, falecidas em 1923 e 1941, respectivamente.
Por outro lado, McCullers, Vidal e Capote são contemporâneos e muito próximos dos primeiros 18 mil informantes voluntários do Dr. Alfred Kinsey, o pesquisador que, a partir de 1948, publica sucessivas obras capitais para o melhor conhecimento em dados estatísticos do comportamento sexual do norte-americano. Ironia maior. À semelhança do cineasta experimental underground Kenneth Anger, assumidamente homossexual, os três jovens romancistas – ou os narradores e os personagens dos respectivos romances, todos com fortes marcas autobiográficas – poderiam ter sido os mais atrevidos e temerários informantes do Dr. Kinsey.
O primeiro relatório Kinsey estoura que nem bomba atômica em Hiroshima. Comportamento sexual e orientação sexual (objeto dos futuros estudos de gender) entram de supetão cá na ficção e lá no tratado sociológico. Masturbação masculina e feminina, orgasmo infantil, sexo oral e anal, homossexualidade, bissexualidade etc. tornam-se café pequeno na conversa à mesa da família mais desinibida. Ganham a manchete de jornais como o New York Times.
Assinale-se que os dados estatísticos revelam que o comportamento sexual do cidadão e da cidadã norte-americanos comuns os distancia dos modelos conservadores até então dados como prevalentes na sociedade protestante daquele país. Levanta-se uma revoada interminável de questões humanas e de subsequentes problemas paralelos. Estes se expandem até as grandes conquistas do século XX, levantadas pelos revolucionários e estudantis anos 1960 e sedimentadas no século XXI durante a presidência de Barack Obama. Setenta anos mais tarde, em 2017, essas conquistas seriam negadas e seus defensores perseguidos pela insensatez governamental e legislativa do presidente Donald Trump.
Fonte: http://www.blogdacompanhia.com.br/c...irculo-do-romance-pos-guerra-Geracao-perdida4
18 de Outubro de 2017 às 13:41
Aos 23 anos de idade, Carson McCullers se apresenta como o porta-bandeira que comanda o bloco de personagens weirdoes, para usar o vocábulo da época, ou de freaks, para avançar até o tempo do rock’n’roll e das drogas e dar voz às canções de Jim Morrison e do grupo The Doors. (Lembre-se que a tradução de freak não é estranha à língua literária brasileira. Bernardo Carvalho estreia no romance com os contos reunidos em Aberrações, em 1993.) Em 1940, Carson publica o romance O coração é um caçador solitário(Antares, 1983) e, no ano seguinte, Reflexos num olho dourado (José Olympio, 2010).
No primeiro, dramatiza-se inicialmente o relacionamento entre dois surdos-mudos, John Singer e Spiros Antonapoulous, que por dez anos dividem a morada numa cidade interiorana dos Estados Unidos. A amizade entre John e Spiros é narrada com sutilezas que bordam uma relação homossexual guardada no armário. De repente, o protagonista de inesquecível nome grego começa a se comportar de maneira lunática, levando o amigo a interná-lo em hospício. Segue-se o encontro de John com uma série de personagens (adultos, adolescentes e crianças) incompreendidos pela família, desorientados profissionalmente ou simplesmente desprezados pela comunidade. Numa palavra, autênticos misfits, ou seja, pessoas que não são aceitas pelo grupo social dominante pelo comportamento errático ou pelas ideias não convencionais.
Em entrevista posterior, Carson McCullers estabelecerá o princípio básico da sua criação literária: “Sinto-me de tal modo absorvida pelos meus personagens, que as intenções deles se tornam minhas. Quando escrevo sobre um ladrão, transformo-me num; quando escrevo sobre o Capitão Penderton, transformo-me num homossexual masculino. Transformo-me nos personagens sobre os quais escrevo e abençoo o poeta latino Terêncio que disse ‘Nada do que é humano me é estranho’”. Não estaria aí o germe moderno da futura autoficção?
Talvez por vir de família com tradição nas forças armadas e na política, a estreia de Gore Vidal em 1948 se apresenta envolta em escândalo. Seu romance, The city and the pillar, causa furor por representar sem disfarces ou fantasias o jovem Jim Willard, que assume a homossexualidade e um consequente relacionamento homoafetivo com Bob, seu melhor amigo. O romance é dedicado a J.T., iniciais de James Trimble III, morto na batalha de Iwo Jima, em 1945, única pessoa que o autor – confessa Vidal, posteriormente − realmente amou. Um dos companheiros de Jim Willard, Sullivan, descreverá sucintamente o périplo da experiência gay: “Começa na escola. Você é um pouquinho diferente dos outros. Às vezes é tímido e um pouco frágil; ou talvez precoce, ou bonito demais, um atleta, apaixonado de si mesmo. Depois começa a ter sonhos eróticos com outro garoto...” – e por aí segue a história da iniciação homoerótica até que o rapaz se torna, retomando a palavra-chave de Carson McCullers, um “caçador solitário”.
A foto de Truman Capote na quarta capa das primeiras edições de Other Voices, Other Rooms (1948) é em si mais escandalosa que o romance. Um jovem baixinho, rechonchudo, evidentemente afeminado, recostado num braço do sofá, trajando colete e gravata borboleta, de olhos sedutores e direcionados para a câmara, em pose lânguida que lembra a Maia desnuda. Capote causa tanto escândalo quanto Vidal, já que é pessoa por demais conhecida nas redações da melhor imprensa nova-iorquina.
A estranha figura se tornará célebre nos Estados Unidos pelas suas apresentações divertidíssimas nos talk shows da televisão e, no mundo inteiro, graças a duas notáveis atuações por atores com físico e voz correspondentes ao dele na vida real. Lembro o ator Peter Lorre (do clássico M, o Maldito) no filme Beat the Devil (1953), dirigido por John Huston e coescrito pelo próprio Capote, e, mais recentemente, o ator Philip Seymour Hoffman no filme de 2005 que leva por título apenas o sobrenome do escritor.
Trago como argumento a imagem real e a artística de Capote para demonstrar como ele, no grupo de escritores do pós-guerra, é tão performático quanto Hemingway e Fitzgerald o foram durante e após os crazy twenties. É impossível não associar o retrato perturbador do romancista à imagem dos personagens. No caso de Truman Capote, por ter ele ganhado notoriedade em seguida aos revolucionários e midiáticos anos 1960, o acasalamento de imagens semelhantes acabou por se tornar, para retomar uma frase de que se valem os jornalistas para a nossa Rogéria, o gay da família norte-americana. A ambientação do filme Capote oscila de maneira extraordinária entre o provincianismo tolerante de cidade perdida no mapa e o mundanismo cosmopolita de Nova York.
Por outro lado, o acasalamento da imagem do autor à imagem do produto, da biografia do romancista à personalidade dos personagens do romance que ele escreve e publica monta dois pilares em meados da segunda metade do século XX. Um deles encaminha a produção literária para a política da celebridade, de que será exemplo no Brasil os primeiros autores pop dos anos 1970 (leia-se o prefácio de Roberto Drummond ao livro A morte de D.J. em Paris [Ática, 1983]) e, evidentemente, Paulo Coelho. O outro pilar sustenta as futuras políticas de identidade. Estas, no seu extremo, apelam para a autenticidade ética da escrita ficcional que, bem dosada em complexa bibliografia crítica, irá inaugurar – no interior da teoria literária – os estudos culturais (cultural studies) e consagrar, na América Hispânica, um novo gênero (genre), el testimonio. Nos estudos culturais, a teoria queer terá boa visibilidade, ao lado das teorias femininas, étnicas etc.
Fonte: http://www.blogdacompanhia.com.br/c...rculo-do-romance-pos-guerra-Weirdoes-e-freaks
25 de Outubro de 2017 às 11:09
Saul Bellow, Philip Roth, James Baldwin, Bernard Malamud e Juan Pedro Soto. Não se poderia esperar que as subjetividades dramatizadas na ficção de alto teor homoerótico não se inserissem posteriormente em conflitos sociais e econômicos na nação construída pelo genocídio indígena, a escravidão negra, a imigração dos pobres e a diáspora judaica. O cadinho do melting étnico norte-americano não aparece tão equilibrado, harmonioso e íntegro se aquecido pelo maçarico do poder nacional, estadual e municipal. Pelo contrário, a intolerância (título do famoso filme de 1916 de D.W. Griffith) é a regra geral. A sociedade norte-americana continuava governada por WASPs, anglo-saxões brancos e protestantes. No plano religioso, o católico John F. Kennedy foi a primeira exceção, assim como o foi no Brasil o protestante general Geisel. No tocante ao mundo anglo-saxão, leiam-se os belos contos de Bernard Malamud em The magic barrel (1958) que desenham, bem antes do G.W. Sebald de Os Emigrantes (1992), a vida cotidiana e pobre dos imigrantes judeus no Lower East Side de Manhattan.
Mal se abre a década de 1960, começam a pipocar por todo o território norte-americano os protestos públicos e a indignação contra a intolerância, o preconceito de cor e a discriminação social – e também contra a guerra no Vietnã. Esses movimentos sociais são devidamente reforçados nos campi universitários pelo trabalho didático do filósofo Herbert Marcuse e os discursos inflamados da jovem Angela Davis. Docentes e discentes se organizam em torno da SDS (Students for a Democratic Society) e se interessam pelas novas ideias difundidas por intelectuais europeus, como Michel Foucault e Gilles Deleuze, que surgem na Paris a se transformar revolucionariamente em maio de 1968. Os narradores e personagens dos cincos romancistas acima destacados perdem grande parte das respectivas vozes individuais. Passam a lutar pelos valores que podem resgatar comunidades discriminadas, representando-os em escrita artística que defende as políticas de identidade das minorias.
Num dos extremos do resgate de comunidade discriminada, estão os romances de Saul Bellow, futuro prêmio Nobel. A publicação em 1953 do picaresco As aventuras de Augie March já anuncia sua atitude integracionista e cosmopolita no pós-guerra, a esboçar de maneira alegre o futuro da comunidade judaica na América. A primeira frase do romance que escolho para representá-lo tornou-se de citação obrigatória: “I am an American, Chicago-born”. A cidade de Chicago não é apenas um acidente geográfico na recente diáspora dos judeus europeus; ela é antes o sinal seguro da possibilidade da integração do imigrante judeu à nação norte-americana e sua outra e consequente visibilidade mundial. Não foi difícil para a crítica comparar o romance de Bellow ao clássico da literatura norte-americana, As aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain. Inscreve-se o romance na longa lista que descreve os processos positivos da aculturação por que passam as diferentes etnias no Novo Mundo colonizado pela Europa: americanização, abrasileiramento, mexicanização etc.
No outro extremo do resgate de comunidade discriminada, está o livro de contos Adeus, Columbus (1959), que marca a estreia de Philip Roth. O humor irreverente de Roth, fundamento de suas melhores incursões na literatura, a que são mescladas deliciosas descrições confessionais e desequilibradas sobre os abismos da heterossexualidade, não perdoa o comportamento vexaminoso da classe média judaica nos Estados Unidos. O romancista inflige uma das leis não escritas do judaísmo moderno. Estava armada uma das grandes polêmicas da década e das seguintes, já que os contos de Roth – se lidos nas saliências impróprias – jorrariam água no monjolo do antissemitismo.
Roth se defende em ensaio de 1963, “Writing about Jews”, hoje na coleção Reading myself and others. Defende-se dizendo que sua intenção era a de explorar um conflito interno, que oscila entre o apelo à solidariedade judia e o desejo de se abrir à discussão e ao questionamento dos valores e da ética da classe média judaico-americana, prisioneira da sua própria insegurança, já que coagulada em fins puramente hedonistas em tempos de assimilação cultural comprometedora e ascensão social e financeira.
Vencedores ou vencidos, pouco importa, já que a estreia na literatura de Bellow e de Roth é marcada pela polêmica, sim, mas também pelo sucesso de crítica e de venda dos livros. James Baldwin se situa num extremo de mais difícil compreensão em época de políticas de identidade, já que, sendo negro e homossexual, torna-se receoso da sua aceitação como romancista e passa a ancorar sua escrita nos velhos mestres americanos às voltas com o autoexílio na Europa, como Henry James e Ernest Hemingway. Ao contrário de Truman Capote, que faz questão de emprestar sua biografia ao romance que publica, James Baldwin quis sair pela tangente. Negro e homossexual, trop c’est trop, teria dito Blaise Cendrars.
Em recente prefácio para a reedição de Giovanni’s room, o irlandês Colm Tóibín nos informa que, em 1948, aos 24 anos, Baldwin vai viver na França, onde conhece o suíço Lucien Happersberger, de quem se enamora. Quatro anos mais tarde, em 1952, já morando na Suíça, termina e publica seu primeiro romance, Go and tell it on the Mountain, cuja ação tem lugar no bairro de Harlem e dramatiza, evidentemente, experiências humanas na famosa comunidade afro-americana em Manhattan.
No ano seguinte, Baldwin volta a morar na França e escreve o livro em que poderia ter associado a questão gay à política de identidade negra. Grande surpresa aguarda o famoso editor Alfred Knopf. Espera de Baldwin um segundo romance sobre a vida cotidiana dos afro-americanos no Harlem, chega-lhe às mãos o manuscrito de Giovanni’s room, cuja ação se passa na Europa. Todos os personagens são brancos, com destaque para o louro David e o italiano Giovanni. Knopf recusa publicar o livro. Escreve Baldwin que os editores lhe disseram que, na condição de escritor negro, ele não deveria alienar os leitores já conquistados. Em seguida, o romancista transcreve a fala dos editores: “O novo livro irá arruinar sua carreira [...] e nós não o publicaremos; é um favor que fazemos a você”. Nenhuma editora o edita em 1953. O romance só será publicado por outra editora, a Dial Press, em 1956.
Baldwin se justifica: “Evidentemente, eu não poderia possivelmente ter que lidar – não naquele momento da minha vida – com outro grande peso, ‘o problema negro’. A perspectiva sexual e moral já era coisa difícil de ser trabalhada. Não poderia ter manejado as duas proposições no mesmo livro. Não havia lugar para o problema negro [num romance homossexual].”
Como escritor latino que procura destacar-se na elite literária norte-americana, o porto-riquenho Pedro Juan Soto sobrevive na obscuridade dos romances publicados. Sem dúvida, de todos os escritores mencionados, é o que menos se preocupa com a assimilação cultural, com a aculturação do porto-riquenho. Pelo contrário. Ao inventar seus romances, denuncia de todas as formas possíveis os engodos que a situação latina em território norte-americano – a se expressar em língua diferente da nacional, o inglês – suporta e padece. Um dos seus livros de contos, Spiks (1956), atinge diretamente o vocabulário do norte-americano comum no que ele tem de pior – a designação discriminatória e ofensiva para os membros duma comunidade pobre. Em geral, as políticas de identidade questionam precisamente esse abuso linguístico dos poderosos, como é o caso do vocábulo nigger, verdadeiro tabu, nunca a ser pronunciado por quem não for afro-americano. (Lembre-se do escândalo que Quentin Tarantino causou recentemente com o filme Django livre.) Seu outro romance, Usmail (1959), retoma a sigla U.S. Mail (Correios norte-americanos) e é também o nome próprio que uma jovem mãe porto-riquenha, seduzida por norte-americano, dá ao filho. Nele preserva a esperança. Talvez algum dia lhe chegue às mãos a desejada e definitiva carta de amor pelo U.S. Mail.
O escritor e ensaísta John Barth, colega e amigo meu quando ensinei literatura francesa na State University of New York, em Buffalo, é quem pontua em 1967 o romance norte-americano pós-guerra por um chocante e fascinante ensaio, “The literature of exhaustion”, publicado na revista The Atlantic. A ideia básica de Barth é a de retomar ao pé da letra a lição dada por Jorge Luis Borges, Samuel Beckett e Italo Calvino. A produção literária moderna tinha exaurido as suas possibilidades de inovar e não há motivo para desespero. Seu ensaio não se enquadra, portanto, na série infinita de trabalhos sobre a morte da literatura. Criação e leitura passam a se confundir para o escritor que busca a virtuosidade na sua arte. Anos depois de ter escrito o ensaio, Barth confessa que, para ele, “o virtuosismo é uma virtude, e o que os artistas sentem sobre o estado do mundo e o estado da sua arte é menos importante do que o que eles conseguem fazer com esse sentimento”.
Entraríamos, então, no campo da pós-modernidade. Em 1981, eu estaria publicando o romance Em liberdade, um diário falso de Graciliano Ramos, escrito no momento em que ele deixa a prisão nos anos 1930. Em seguida, em 1985, Stella Manhattan.
Fonte: http://www.blogdacompanhia.com.br/c...do-romance-pos-guerra-Politicas-de-identidade
11 de Outubro de 2017 às 11:56
Carson McCullers, Gore Vidal e Truman Capote. Nos anos 1950, nenhum crítico literário poderia imaginar que esses três romancistas jovens e irreverentes estariam não só passando a perna nos famosos escritores pertencentes à conhecida “geração perdida”, para usar a etiqueta inventada por Gertrude Stein em Paris, como também botando a maior banca na segunda metade do século XX. Os desconhecidos e audaciosos jovens escritores são os primeiros a pôr contra a parede os notáveis romancistas que, durante os primeiros 50 anos do século XX, transferiram a ficção da sua matriz europeia para a filial norte-americana. Destaco Ernest Hemingway, John dos Passos, John Steinbeck, Scott Fitzgerald e William Faulkner.
Caso todos esses e outros romancistas não tivessem sido precedidos pela obra de dois intelectuais norte-americanos com larga e notável experiência no Velho Mundo, talvez não tivessem sido tão elogiados pela crítica nacional e internacional. Refiro-me a dois anfíbios (se me permitem o substantivo). Ambos se sentiam bem de um lado e do outro do Atlântico e também a navegar pelo oceano. Os dois anfíbios é que possibilitam o trânsito pausado, medido e confortável da escrita ficcional da tradição europeia, incluindo a experiência chocante de James Joyce, para as inovações revolucionárias propostas a nós, americanos, pela complexa experiência social do colonialismo e pelo avanço científico e tecnológico no Novo Mundo.
Refiro-me, primeiro, ao romancista Henry James, contemporâneo do nosso Machado de Assis. Os vários prefácios que antecedem seus romances alimentaram a arte poética codificada pelo crítico Percy Lubbock no memorável A técnica da ficção, publicado em 1921 (Cultrix, 1976). Este livro, por sua vez, foi retomado e atualizado em 1961 por Wayne Booth noutro clássico, The Rhetoric of Fiction. Nos anos 1920, o jovem prosador norte-americano já tinha à mão informações seguras sobre o novo artesanato (craft) em ficção e, a partir dos anos 1960, seu herdeiro já poderia dominar algo um tanto mais luxuoso e complicado, sua retórica. De sobra, ainda em língua inglesa, pense-se na contribuição oferecida por Aspectos do romance (1927), de E.M. Forster (Globo, 1998), notável romancista britânico.
Refiro-me, em seguida, a Gertrude Stein. Instalada em Paris com sua companheira Alice B. Toklas, ela dá régua e compasso a todos os “autoexilados” (dentre eles o norte-americano Hemingway e o espanhol Picasso) com a sua admiração à escrita da imagem, julgando-a a mais poderosa das representações da modernidade. Retomo passagem da Autobiografia de Alice B. Toklas, a sair pela Companhia das Letras: “eu sinto com meus olhos [...] com meus olhos eu vejo palavras e frases”. Gertrude compõe a página com os olhos, assim como Cézanne, Picasso e Matisse compunham a tela. No convívio diário com os grandes pintores cubistas em Paris, interessou-lhe a feitura da obra artística, ou seja, a arte da composição e a ética da forma. Transpunha o saber visual para a escrita literária. Leia-se o indispensável How to write (1931).
O final 1 é número cabalístico no avanço metódico e formal do romance norte-americano pela literatura universal: 1921, Lubbock, 1931, Stein, 1961, Booth.
Caso passássemos do relato sobre a prosa de ficção para a reflexão sobre a poesia e o ensaio literário norte-americano, teria de acrescentar um terceiro anfíbio à primeira dupla. Refiro-me ao poeta londrino T. S. Eliot, nascido no berço do jazz e do blues, em Saint Louis (Missouri), e à sua presença marcante na lírica moderna e na formulação do new criticism. Falta, enfim, uma palavra altamente elogiosa ao abominável homem do fascismo italiano, Ezra Pound.
De volta a Hemingway, dos Passos, Steinbeck, Fitzgerald e Faulkner, lembro que Claude-Edmonde Magny, crítica francesa, foi quem provou no livro L’Age du Roman Américan (1948) que foram os romancistas da “geração perdida” que incorporaram à forma do romance europeu no século XVIII, tal como seria exposta por Ian Watt em The Rise of the Novel (1957), a descrição narrativa comportamental, desenvolvida à exaustão e precocemente pelo filme hollywoodiano de sucesso. Incorporação foi fomentada não só pela apropriação de personagens desconhecidos e atuais no universo artístico europeu como também pela reflexão dos escritores sobre o uso a ser feito da montagem cinematográfica no romance. Bastava seguir de perto os princípios estabelecidos por teóricos da Sétima Arte como os soviéticos Lev Kulechov (v. efeito Kulechov) e Sergei Eisenstein (Film Form & the Film Sense), e o francês André Malraux (a invenção do close-up é analisada em Esquisse d’une psychologie du cinema).
Assim sendo, a forma do romance ou do conto moderno – cujos pontos altos no século XIX foram ditados pelos canônicos Gustave Flaubert e Guy de Maupassant − perdia a composição linear proposta pelo desenvolvimento cronológico da trama, enquanto os personagens se distanciavam das sutilezas oferecidas pelo romance e a novela de análise psicológica (roman d’analyse), cujo modelo nos fora legado por Madame de La Fayette ao publicar em 1678 La princesse de Clèves.
Leia-se principalmente a obra de Faulkner. Abriam-se as comportas da ficção pequeno-burguesa para que figuras humanas aventureiras, broncas e medíocres – muitas delas miseráveis habitantes do submundo urbano ou rural, machos e brancos − entrassem ficção adentro não pela porta da introspecção, mas pela do comportamento (behaviorismo). A leitura do romance ou do conto se aproxima da resolução de um quebra-cabeça. Como resumo, cite-se cena sintomática do romance Santuário (Abril Cultural, 1980), de William Faulkner. O personagem Popeye violenta uma moça com uma espiga de milho.
Ao contrário do contemporâneo Norman Mailer, que dá continuidade à prosa violenta e machista da geração perdida, os jovens Carson McCullers, Gore Vidal e Truman Capote são romancistas sensíveis e sinceros que, ao negar direito de cidadania aos autores já clássicos da primeira metade do século, buscam se afirmar na cena literária por estilo e trama alternativos. Estilo e trama alternativos não encontram seu modelo de escrita nos Estados Unidos como não encontrarão seu modelo no Brasil para a nossa Clarice Lispector, que estreia nas letras em 1944. Para os americanos, a escrita alternativa vinha sendo exposta como feridas abertas na prosa de ficção por duas notáveis escritoras, a neozelandesa Katherine Mansfield e a britânica Virginia Woolf, falecidas em 1923 e 1941, respectivamente.
Por outro lado, McCullers, Vidal e Capote são contemporâneos e muito próximos dos primeiros 18 mil informantes voluntários do Dr. Alfred Kinsey, o pesquisador que, a partir de 1948, publica sucessivas obras capitais para o melhor conhecimento em dados estatísticos do comportamento sexual do norte-americano. Ironia maior. À semelhança do cineasta experimental underground Kenneth Anger, assumidamente homossexual, os três jovens romancistas – ou os narradores e os personagens dos respectivos romances, todos com fortes marcas autobiográficas – poderiam ter sido os mais atrevidos e temerários informantes do Dr. Kinsey.
O primeiro relatório Kinsey estoura que nem bomba atômica em Hiroshima. Comportamento sexual e orientação sexual (objeto dos futuros estudos de gender) entram de supetão cá na ficção e lá no tratado sociológico. Masturbação masculina e feminina, orgasmo infantil, sexo oral e anal, homossexualidade, bissexualidade etc. tornam-se café pequeno na conversa à mesa da família mais desinibida. Ganham a manchete de jornais como o New York Times.
Assinale-se que os dados estatísticos revelam que o comportamento sexual do cidadão e da cidadã norte-americanos comuns os distancia dos modelos conservadores até então dados como prevalentes na sociedade protestante daquele país. Levanta-se uma revoada interminável de questões humanas e de subsequentes problemas paralelos. Estes se expandem até as grandes conquistas do século XX, levantadas pelos revolucionários e estudantis anos 1960 e sedimentadas no século XXI durante a presidência de Barack Obama. Setenta anos mais tarde, em 2017, essas conquistas seriam negadas e seus defensores perseguidos pela insensatez governamental e legislativa do presidente Donald Trump.
Fonte: http://www.blogdacompanhia.com.br/c...irculo-do-romance-pos-guerra-Geracao-perdida4
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Weirdoes e freaks18 de Outubro de 2017 às 13:41
Aos 23 anos de idade, Carson McCullers se apresenta como o porta-bandeira que comanda o bloco de personagens weirdoes, para usar o vocábulo da época, ou de freaks, para avançar até o tempo do rock’n’roll e das drogas e dar voz às canções de Jim Morrison e do grupo The Doors. (Lembre-se que a tradução de freak não é estranha à língua literária brasileira. Bernardo Carvalho estreia no romance com os contos reunidos em Aberrações, em 1993.) Em 1940, Carson publica o romance O coração é um caçador solitário(Antares, 1983) e, no ano seguinte, Reflexos num olho dourado (José Olympio, 2010).
No primeiro, dramatiza-se inicialmente o relacionamento entre dois surdos-mudos, John Singer e Spiros Antonapoulous, que por dez anos dividem a morada numa cidade interiorana dos Estados Unidos. A amizade entre John e Spiros é narrada com sutilezas que bordam uma relação homossexual guardada no armário. De repente, o protagonista de inesquecível nome grego começa a se comportar de maneira lunática, levando o amigo a interná-lo em hospício. Segue-se o encontro de John com uma série de personagens (adultos, adolescentes e crianças) incompreendidos pela família, desorientados profissionalmente ou simplesmente desprezados pela comunidade. Numa palavra, autênticos misfits, ou seja, pessoas que não são aceitas pelo grupo social dominante pelo comportamento errático ou pelas ideias não convencionais.
Em entrevista posterior, Carson McCullers estabelecerá o princípio básico da sua criação literária: “Sinto-me de tal modo absorvida pelos meus personagens, que as intenções deles se tornam minhas. Quando escrevo sobre um ladrão, transformo-me num; quando escrevo sobre o Capitão Penderton, transformo-me num homossexual masculino. Transformo-me nos personagens sobre os quais escrevo e abençoo o poeta latino Terêncio que disse ‘Nada do que é humano me é estranho’”. Não estaria aí o germe moderno da futura autoficção?
Talvez por vir de família com tradição nas forças armadas e na política, a estreia de Gore Vidal em 1948 se apresenta envolta em escândalo. Seu romance, The city and the pillar, causa furor por representar sem disfarces ou fantasias o jovem Jim Willard, que assume a homossexualidade e um consequente relacionamento homoafetivo com Bob, seu melhor amigo. O romance é dedicado a J.T., iniciais de James Trimble III, morto na batalha de Iwo Jima, em 1945, única pessoa que o autor – confessa Vidal, posteriormente − realmente amou. Um dos companheiros de Jim Willard, Sullivan, descreverá sucintamente o périplo da experiência gay: “Começa na escola. Você é um pouquinho diferente dos outros. Às vezes é tímido e um pouco frágil; ou talvez precoce, ou bonito demais, um atleta, apaixonado de si mesmo. Depois começa a ter sonhos eróticos com outro garoto...” – e por aí segue a história da iniciação homoerótica até que o rapaz se torna, retomando a palavra-chave de Carson McCullers, um “caçador solitário”.

A foto de Truman Capote na quarta capa das primeiras edições de Other Voices, Other Rooms (1948) é em si mais escandalosa que o romance. Um jovem baixinho, rechonchudo, evidentemente afeminado, recostado num braço do sofá, trajando colete e gravata borboleta, de olhos sedutores e direcionados para a câmara, em pose lânguida que lembra a Maia desnuda. Capote causa tanto escândalo quanto Vidal, já que é pessoa por demais conhecida nas redações da melhor imprensa nova-iorquina.
A estranha figura se tornará célebre nos Estados Unidos pelas suas apresentações divertidíssimas nos talk shows da televisão e, no mundo inteiro, graças a duas notáveis atuações por atores com físico e voz correspondentes ao dele na vida real. Lembro o ator Peter Lorre (do clássico M, o Maldito) no filme Beat the Devil (1953), dirigido por John Huston e coescrito pelo próprio Capote, e, mais recentemente, o ator Philip Seymour Hoffman no filme de 2005 que leva por título apenas o sobrenome do escritor.
Trago como argumento a imagem real e a artística de Capote para demonstrar como ele, no grupo de escritores do pós-guerra, é tão performático quanto Hemingway e Fitzgerald o foram durante e após os crazy twenties. É impossível não associar o retrato perturbador do romancista à imagem dos personagens. No caso de Truman Capote, por ter ele ganhado notoriedade em seguida aos revolucionários e midiáticos anos 1960, o acasalamento de imagens semelhantes acabou por se tornar, para retomar uma frase de que se valem os jornalistas para a nossa Rogéria, o gay da família norte-americana. A ambientação do filme Capote oscila de maneira extraordinária entre o provincianismo tolerante de cidade perdida no mapa e o mundanismo cosmopolita de Nova York.
Por outro lado, o acasalamento da imagem do autor à imagem do produto, da biografia do romancista à personalidade dos personagens do romance que ele escreve e publica monta dois pilares em meados da segunda metade do século XX. Um deles encaminha a produção literária para a política da celebridade, de que será exemplo no Brasil os primeiros autores pop dos anos 1970 (leia-se o prefácio de Roberto Drummond ao livro A morte de D.J. em Paris [Ática, 1983]) e, evidentemente, Paulo Coelho. O outro pilar sustenta as futuras políticas de identidade. Estas, no seu extremo, apelam para a autenticidade ética da escrita ficcional que, bem dosada em complexa bibliografia crítica, irá inaugurar – no interior da teoria literária – os estudos culturais (cultural studies) e consagrar, na América Hispânica, um novo gênero (genre), el testimonio. Nos estudos culturais, a teoria queer terá boa visibilidade, ao lado das teorias femininas, étnicas etc.
Fonte: http://www.blogdacompanhia.com.br/c...rculo-do-romance-pos-guerra-Weirdoes-e-freaks
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Políticas de identidade25 de Outubro de 2017 às 11:09
Saul Bellow, Philip Roth, James Baldwin, Bernard Malamud e Juan Pedro Soto. Não se poderia esperar que as subjetividades dramatizadas na ficção de alto teor homoerótico não se inserissem posteriormente em conflitos sociais e econômicos na nação construída pelo genocídio indígena, a escravidão negra, a imigração dos pobres e a diáspora judaica. O cadinho do melting étnico norte-americano não aparece tão equilibrado, harmonioso e íntegro se aquecido pelo maçarico do poder nacional, estadual e municipal. Pelo contrário, a intolerância (título do famoso filme de 1916 de D.W. Griffith) é a regra geral. A sociedade norte-americana continuava governada por WASPs, anglo-saxões brancos e protestantes. No plano religioso, o católico John F. Kennedy foi a primeira exceção, assim como o foi no Brasil o protestante general Geisel. No tocante ao mundo anglo-saxão, leiam-se os belos contos de Bernard Malamud em The magic barrel (1958) que desenham, bem antes do G.W. Sebald de Os Emigrantes (1992), a vida cotidiana e pobre dos imigrantes judeus no Lower East Side de Manhattan.
Mal se abre a década de 1960, começam a pipocar por todo o território norte-americano os protestos públicos e a indignação contra a intolerância, o preconceito de cor e a discriminação social – e também contra a guerra no Vietnã. Esses movimentos sociais são devidamente reforçados nos campi universitários pelo trabalho didático do filósofo Herbert Marcuse e os discursos inflamados da jovem Angela Davis. Docentes e discentes se organizam em torno da SDS (Students for a Democratic Society) e se interessam pelas novas ideias difundidas por intelectuais europeus, como Michel Foucault e Gilles Deleuze, que surgem na Paris a se transformar revolucionariamente em maio de 1968. Os narradores e personagens dos cincos romancistas acima destacados perdem grande parte das respectivas vozes individuais. Passam a lutar pelos valores que podem resgatar comunidades discriminadas, representando-os em escrita artística que defende as políticas de identidade das minorias.
Num dos extremos do resgate de comunidade discriminada, estão os romances de Saul Bellow, futuro prêmio Nobel. A publicação em 1953 do picaresco As aventuras de Augie March já anuncia sua atitude integracionista e cosmopolita no pós-guerra, a esboçar de maneira alegre o futuro da comunidade judaica na América. A primeira frase do romance que escolho para representá-lo tornou-se de citação obrigatória: “I am an American, Chicago-born”. A cidade de Chicago não é apenas um acidente geográfico na recente diáspora dos judeus europeus; ela é antes o sinal seguro da possibilidade da integração do imigrante judeu à nação norte-americana e sua outra e consequente visibilidade mundial. Não foi difícil para a crítica comparar o romance de Bellow ao clássico da literatura norte-americana, As aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain. Inscreve-se o romance na longa lista que descreve os processos positivos da aculturação por que passam as diferentes etnias no Novo Mundo colonizado pela Europa: americanização, abrasileiramento, mexicanização etc.
No outro extremo do resgate de comunidade discriminada, está o livro de contos Adeus, Columbus (1959), que marca a estreia de Philip Roth. O humor irreverente de Roth, fundamento de suas melhores incursões na literatura, a que são mescladas deliciosas descrições confessionais e desequilibradas sobre os abismos da heterossexualidade, não perdoa o comportamento vexaminoso da classe média judaica nos Estados Unidos. O romancista inflige uma das leis não escritas do judaísmo moderno. Estava armada uma das grandes polêmicas da década e das seguintes, já que os contos de Roth – se lidos nas saliências impróprias – jorrariam água no monjolo do antissemitismo.
Roth se defende em ensaio de 1963, “Writing about Jews”, hoje na coleção Reading myself and others. Defende-se dizendo que sua intenção era a de explorar um conflito interno, que oscila entre o apelo à solidariedade judia e o desejo de se abrir à discussão e ao questionamento dos valores e da ética da classe média judaico-americana, prisioneira da sua própria insegurança, já que coagulada em fins puramente hedonistas em tempos de assimilação cultural comprometedora e ascensão social e financeira.
Vencedores ou vencidos, pouco importa, já que a estreia na literatura de Bellow e de Roth é marcada pela polêmica, sim, mas também pelo sucesso de crítica e de venda dos livros. James Baldwin se situa num extremo de mais difícil compreensão em época de políticas de identidade, já que, sendo negro e homossexual, torna-se receoso da sua aceitação como romancista e passa a ancorar sua escrita nos velhos mestres americanos às voltas com o autoexílio na Europa, como Henry James e Ernest Hemingway. Ao contrário de Truman Capote, que faz questão de emprestar sua biografia ao romance que publica, James Baldwin quis sair pela tangente. Negro e homossexual, trop c’est trop, teria dito Blaise Cendrars.
Em recente prefácio para a reedição de Giovanni’s room, o irlandês Colm Tóibín nos informa que, em 1948, aos 24 anos, Baldwin vai viver na França, onde conhece o suíço Lucien Happersberger, de quem se enamora. Quatro anos mais tarde, em 1952, já morando na Suíça, termina e publica seu primeiro romance, Go and tell it on the Mountain, cuja ação tem lugar no bairro de Harlem e dramatiza, evidentemente, experiências humanas na famosa comunidade afro-americana em Manhattan.
No ano seguinte, Baldwin volta a morar na França e escreve o livro em que poderia ter associado a questão gay à política de identidade negra. Grande surpresa aguarda o famoso editor Alfred Knopf. Espera de Baldwin um segundo romance sobre a vida cotidiana dos afro-americanos no Harlem, chega-lhe às mãos o manuscrito de Giovanni’s room, cuja ação se passa na Europa. Todos os personagens são brancos, com destaque para o louro David e o italiano Giovanni. Knopf recusa publicar o livro. Escreve Baldwin que os editores lhe disseram que, na condição de escritor negro, ele não deveria alienar os leitores já conquistados. Em seguida, o romancista transcreve a fala dos editores: “O novo livro irá arruinar sua carreira [...] e nós não o publicaremos; é um favor que fazemos a você”. Nenhuma editora o edita em 1953. O romance só será publicado por outra editora, a Dial Press, em 1956.
Baldwin se justifica: “Evidentemente, eu não poderia possivelmente ter que lidar – não naquele momento da minha vida – com outro grande peso, ‘o problema negro’. A perspectiva sexual e moral já era coisa difícil de ser trabalhada. Não poderia ter manejado as duas proposições no mesmo livro. Não havia lugar para o problema negro [num romance homossexual].”
Como escritor latino que procura destacar-se na elite literária norte-americana, o porto-riquenho Pedro Juan Soto sobrevive na obscuridade dos romances publicados. Sem dúvida, de todos os escritores mencionados, é o que menos se preocupa com a assimilação cultural, com a aculturação do porto-riquenho. Pelo contrário. Ao inventar seus romances, denuncia de todas as formas possíveis os engodos que a situação latina em território norte-americano – a se expressar em língua diferente da nacional, o inglês – suporta e padece. Um dos seus livros de contos, Spiks (1956), atinge diretamente o vocabulário do norte-americano comum no que ele tem de pior – a designação discriminatória e ofensiva para os membros duma comunidade pobre. Em geral, as políticas de identidade questionam precisamente esse abuso linguístico dos poderosos, como é o caso do vocábulo nigger, verdadeiro tabu, nunca a ser pronunciado por quem não for afro-americano. (Lembre-se do escândalo que Quentin Tarantino causou recentemente com o filme Django livre.) Seu outro romance, Usmail (1959), retoma a sigla U.S. Mail (Correios norte-americanos) e é também o nome próprio que uma jovem mãe porto-riquenha, seduzida por norte-americano, dá ao filho. Nele preserva a esperança. Talvez algum dia lhe chegue às mãos a desejada e definitiva carta de amor pelo U.S. Mail.
O escritor e ensaísta John Barth, colega e amigo meu quando ensinei literatura francesa na State University of New York, em Buffalo, é quem pontua em 1967 o romance norte-americano pós-guerra por um chocante e fascinante ensaio, “The literature of exhaustion”, publicado na revista The Atlantic. A ideia básica de Barth é a de retomar ao pé da letra a lição dada por Jorge Luis Borges, Samuel Beckett e Italo Calvino. A produção literária moderna tinha exaurido as suas possibilidades de inovar e não há motivo para desespero. Seu ensaio não se enquadra, portanto, na série infinita de trabalhos sobre a morte da literatura. Criação e leitura passam a se confundir para o escritor que busca a virtuosidade na sua arte. Anos depois de ter escrito o ensaio, Barth confessa que, para ele, “o virtuosismo é uma virtude, e o que os artistas sentem sobre o estado do mundo e o estado da sua arte é menos importante do que o que eles conseguem fazer com esse sentimento”.
Entraríamos, então, no campo da pós-modernidade. Em 1981, eu estaria publicando o romance Em liberdade, um diário falso de Graciliano Ramos, escrito no momento em que ele deixa a prisão nos anos 1930. Em seguida, em 1985, Stella Manhattan.
Fonte: http://www.blogdacompanhia.com.br/c...do-romance-pos-guerra-Politicas-de-identidade