Indu
cynthia
Red Pill – O guarda-chuva da mentalidade conspiratória e o Pipeline para o Neofacismo: radicalização online e extremismo.
Michele Prado, PesquisadoraA nova (?) extrema direita embaralhou todas as cartas. Esse espectro ideológico não pode mais ser visto apenas sob o prisma da política clássica e muito menos como uma categoria de representação convencional. Trata-se de uma nebulosa, uma nuvem cósmica formada por poeiras de diferentes matizes. O que hoje se convenciona chamar de extrema direita é uma combinação de vetores muitas vezes difíceis de serem enxergados como peças de uma mesma engrenagem. São métodos de manipulação pública e de prestidigitação da informação que, em muitos casos, não permitem se identificar onde termina a realidade e tem início uma espécie de metaverso. Essa subcultura ganhou uma força tal que confunde o próprio entendimento do que é a extrema direita. São pílulas de diferentes cores dentro de um frasco opaco.
Ser escolhido para supostamente enxergar aquilo que ninguém mais vê; ser despertado de um sono profundo com uma pílula que traz a verdadeira compreensão da realidade; sair da Matrix. Essas são algumas das promessas da red pill.
No final dos anos 90, um filme distópico de grande bilheteria obteve um sucesso espetacular trazendo referências filosóficas, culturais e religiosas, ambientadas num universo futurista. De todas as referências do blockbuster Matrix, a mais duradoura na era pós-digital é a Alegoria da Caverna (O mito de Platão). Preso numa falsa realidade, na qual ele só enxergava as sombras e simulacros, o protagonista Neo recebe das mãos de Morpheus a chance de escolher se ele prefere continuar vivendo nessa dimensão paralela, inventada, ou se está pronto em escolher encarar a verdadeira realidade que estaria oculta por consequência de um grande complô de uma suposta elite dominadora de mentes e corpos de toda a população. Morpheus oferece duas pílulas a Neo: uma azul (blue pill) e uma vermelha (a red pill). Neo escolhe a pílula vermelha e ele passa a enxergar o que ninguém mais vê.
Somente anos depois do sucesso do filme Matrix, a alegoria da “pílula vermelha” se transformaria em uma metáfora política a ser utilizada como “arma” na “guerra cultural” proposta por um novo movimento online neorreacionário (NRx),1 uma comunidade online na plataforma Reddit,2
impulsionadora de um grande ecossistema digital de misoginia extrema e uma isca para capturar jovens a aderirem ao movimento online de direita radical e extrema, a Alt-Right. Ou seja: um grande guarda-chuva para teorias conspiratórias que flutuam entre antissemitismo “suave” até teorias conspiratórias com racismo explícito oriundas do supremacismo branco/nacionalismo branco e neonazismo.
Inspirado em intelectuais neofascistas como o paleolibertário da chamada Escola Austríaca, Hans-Hermann Hoppe, o historiador escocês reacionário e pró-escravidão Thomas Carlyle e o blogueiro paleoconservador americano, supremacista e nacionalista branco3 Steve Sailer, o engenheiro de software do Vale do Silício, Curtis Yarvin criou o blog Unqualified Reservations em 2007 sob o pseudônimo
Mencius Moldbug. Até 2013, quando encerrou o blog, formulou sua “filosofia política” ultrarreacionária, anti-igualitária, autoritária e aceleracionista Neo-Reactionary, ou Dark Enlightenment (Iluminismo das Trevas) que, posteriormente, seria parte das bases intelectuais do movimento extremista online Alt-Right.
Com rejeição extrema à democracia e aos ideais iluministas, a “filosofia” criada por Yarvin e aprimorada pelo aceleracionista Nick Land4 propõe uma ruptura e substituição das democracias liberais por estados autocráticos geridos por CEO’s ou monarquias, defende etnoestados e uma ordem social fortemente hierarquizada por gênero, raça e classe. Seu blog seria o primeiro a utilizar a analogia da pílula vermelha do filme Matrix como arma política e vetor na radicalização online, especialmente entre jovens rapazes brancos ansiosos com mudanças demográficas, avanços dos direitos civis de vários grupos (mulheres, negros, comunidade LGBTQIA+) e descrentes de uma futura condição econômica que revivesse o “sonho americano”.
Em 2007, no artigo5 “The Case Against Democracy: Ten Red Pills”, ainda sob o pseudônimo Mencius Moldbug, Yarvin propôs aos leitores que rejeitassem a democracia. Sugeriu que eles passassem a considerar uma visão alternativa dentro da metáfora de que a pílula azul seria a visão distorcida que a própria aceitação da democracia impõe aos indivíduos. A pílula vermelha, por sua vez, seria
a cruel, porém supostamente, verdadeira realidade. Ele listou dez antíteses entre a Blue Pill e a Red Pill que não apenas reforçam a rejeição à democracia como amenizam a periculosidade de sistemas autocráticos e sugere uma falsa simetria com modelos democráticos, como por exemplo:
“FASCISMO E COMUNISMO
• Blue Pill: Os desastres do fascismo e do comunismo demonstram a importância da democracia representativa.
• Red Pill: O fascismo e o comunismo são mais bem compreendidos como formas de democracia. A diferença entre democracia unipartidária e multipartidária é como a diferença entre um tumor maligno e um benigno.”
A pílula vermelha viria se tornar a dose diária de reacionarismo frente ao suposto “politicamente correto” que, segundo Yarvin em uma das suas mais famosas teorias conspiratórias cerne de sua “filosofia política NRx”, era imposto pela “Catedral”. Tomando emprestado ideias de Pareto e de James Burnham sobre “elites gerenciais”, Mencius Moldbug fazia uma sobreposição de conceitos com as teorias conspiratórias antissemitas mais antigas do imaginário da extrema direita transnacional, como o Marxismo Cultural e Nova Ordem Mundial. Afirmava que o mundo era governado por um suposto complô de elites
burocráticas que controlavam Estados e as populações e atuavam de forma a substituir o poder espiritual da Igreja Católica sobre o poder temporal.
A “Catedral” seria um complexo de instituições burocráticas estatais, a grande mídia e as universidades e seria também uma espécie de nova religião do progressismo liberal. Tomar a Red Pill, significaria, portanto, parar de ser enganado pela Catedral e enxergar a “verdadeira realidade”: uma visão de mundo extrema e reacionária.
Além de conceitos neofascistas, ultrarreacionários, as pílulas vermelhas de Moldbug introduziram no debate público em meios digitais muitas teses pseudocientíficas que eufemizavam o Darwinismo Social e o Racismo Científico com nomes suaves como “biodiversidade humana”, tese do supremacista branco S. Sailer, amplamente disseminada nos ecossistemas digitais do movimento do poder branco (White Power): “A ‘biodiversidade humana’ foi mobilizada como um movimento para catalogar e criar ideias hereditárias sobre diferenças raciais e distribuí-las como ‘pílulas vermelhas’ para transformar o discurso online” (Panofisky, Dasgupta, Iturriaga. 2021).7
Longe de ser um blog marginal, como deveria ser algo desse teor, Moldbug encontrou em bilionários pós- -libertários um apoio8 que persiste até hoje: Peter Thiel, um megainvestidor germano-americano fundador do Paypal dentre outras startups é um parceiro de longa data do neorreacionário Curtis Yarvin cuja parceria9 é cada vez mais ativa.
Introduzir à conta-gotas, em forma de pílulas, visões alternativas da realidade e tropos que sustentavam a defesa de uma ordem social hierarquizada racialmente e por gênero era um dos principais objetivos da filosofia reacionária do Iluminismo das Trevas; era colocar em prática a metapolítica na era pós-digital. E encontrar seu público-alvo não seria difícil: jovens homens brancos raivosos, frustrados e recheados de ansiedades.
Anos antes do início do blog de Mencius Moldbug, eles já estavam se reunindo em espaços digitais, formando o embrião do que viria se tornar um grande conglomerado frouxo de sites, blogs, plataformas de imagens (chans) e fóruns nos quais esses indivíduos despejam seus temores e reivindicações – eventualmente legítimas –, rancores, ódio e uma gigantesca vitimização autopercebida, formando terreno fértil para a germinação e disseminação de teorias conspiratórias excludentes, racistas, misóginas e antissemitas, algumas com alto potencial para violência: a manosfera. É na manosfera, um ecossistema digital de misoginia extrema, que a TRP (The Red Pill) se transforma em uma ideologia extremista.
MULHERES NÃO ENTRAM
O termo “manosfera” (esfera digital + homem) apareceu pela primeira vez em um blog no final da década de 2000 (em 2009) e se referia ao grande conjunto de comunidades online de interesses e queixas masculinas. Desde seu início, o antifeminismo radical seria o elo de ligação das mais variadas subcorrentes que formam o universo da manosfera. Apesar de algumas diferenças entre essas subculturas, e algumas contradições explícitas, a ideia de que a ordem social liberal do pós-guerra é misândrica (que tem ódio dos homens) e que vivemos em uma suposta “ditadura ginocêntrica”10 (o conceito de que todas as leis e visões de mundo dão preferência às visões e queixas femininas) é ponto pacífico em todas elas.
Ainda nos anos 60, longe da era digital e como contrarreação à segunda onda do feminismo, surgiu o movimento denominado MRAs – Men’s Rights Activists (Ativistas dos Direitos dos Homens) – entre estudantes universitários. Inicialmente, não eram antagônicos ao feminismo e defendiam que o sistema de supremacia masculina que permeou a sociedade em várias eras era também prejudicial aos homens.
Porém, ao mesmo tempo, indicavam que os avanços nos direitos civis de grupos historicamente alijados da sociedade (pessoas não brancas e mulheres) causavam perturbação na ordem social a que estavam adaptados e os colocava numa posição de impotência, precisando (em sua lógica) de defesa contra esses avanços e novos arranjos sociais. Não por acaso, demograficamente, os primeiros movimentos dos “Ativistas dos direitos dos Homens” reuniam, majoritariamente, homens de meia idade, classe média e brancos.
Antes da infinidade de métodos de manipulação da opinião pública que esta era pós-digital proporciona e que a far-right utiliza com eficácia, os ativistas dos direitos dos homens traziam não insultos misóginos, memes e assédios online coordenados, mas tópicos que conferiam certa legitimidade às suas demandas: direitos de família, serviço militar obrigatório e alienação parental; os homens lideram índices de serem vítimas de violência e suicídio, por exemplo (alguns permanecem ainda hoje como tema central nas reivindicações dos MRAs).
Com a internet e a reunião em espaços online, aos poucos, essas demandas somaram-se às teorias conspiratórias e desinformação deliberada (pequenos conteúdos verdadeiros colocados num amplo conjunto de informações mentirosas e/ou maliciosas). Os MRAs foram os primeiros a utilizar a internet como campo de amplificação de suas ideias. Em 2009, profissionalizaram a manosfera, criando um conglomerado lucrativo com o site A Voice Of Man de Paul Elam, que reunia desde programas de rádio até loja na qual vendiam camisetas e acessórios (The Red Pill Shop).
No universo online, falsas alegações de estupro, alienação parental e lei de proteção às mulheres relativas à violência de gênero doméstica se tornaram as principais narrativas entre os ativistas dos direitos dos homens. Logo, outros sites e subcomunidades online surgiriam, galvanizando o antifeminismo radical, imersos no guarda-chuva de teorias conspiratórias da Red Pill: “Return of Kings”, “Sluthate.com” e “Men’s Rights” estão entre aqueles com maior tráfego online.
A ideia de que “tomar pílula vermelha” lhes garantiriam um despertar para uma “realidade” a respeito da ordem social liberal-democrática do pós-guerra trouxe agregadas teses conspiracionistas de que os avanços civilizatórios seriam uma artimanha de globalistas liberais (um tropo antissemita) para implementarem e fazer a manutenção de uma suposta “ditadura ginocêntrica” que emascularia homens e destruiria famílias tradicionais.
Paralelamente ao conspiracionismo, os MRAs encontraram no “culto à tradição”11 a nostalgia reacionária necessária para galvanizar novos adeptos ao movimento: “um retorno a um passado de masculinidade pré-moderna e tribalismo homossocial” (Marwick, Lewis, 2019).12 Artigos com alusão ao Império Romano e homens guerreiros e imagens com corpos masculinos hipermusculosos se tornariam frequentes no ecossistema digital da manosfera.
Se, por um lado, esses espaços online de queixas atraíam homens que haviam vivido alguma frustração amorosa, separação litigiosa e/ou acusações de estupros (falsos ou verdadeiros), por outro lado atraíam também jovens homens que buscavam na reafirmação ultramasculinista a solução para suas ansiedades no mundo moderno. Logo entrariam num túnel de radicalização que transformaria o pensador fascista Julius Evola (e seus vários livros de revolta contra o mundo moderno e glorificação da supremacia masculina) em ídolo.
OS PICK-UP ARTISTS (PUAs) E O SEXUAL MARKET VALUE (SMV)
Com a comunidade digital “PUAs”, a misoginia extrema na manosfera avança mais alguns passos. As mulheres agora não passam de objetos sexuais, são retratadas como presas, e os homens devem conhecer as “regras do jogo de sedução” para capturar (e descartar) as presas após a cópula. Criou-se uma indústria milionária de cursos e workshops na qual ensinam técnicas de sedução a jovens e uma escala para categorizar quanto aquele “objeto” vale no mercado sexual. É na subcultura online PUA que teses pseudocientíficas de biologia evolutiva e psicologia evolutiva se sobrepõem a teorias conspiratórias para dar legitimidade aos conceitos de misoginia extrema que circulam na manosfera.
As mulheres seriam biologicamente inferiores, e seu valor sexual de mercado estaria conectado a uma série de fatores como idade (quanto mais jovem, maior o SMV), aparência física, status, vida sexual pregressa (mulheres virgens teriam um SMV maior) e personalidade submissa aos homens. A suposta hipergamia inerente às mulheres, a ideia de que fatores biológicos impulsionam mulheres a procurarem parceiros superiores e essas buscas incessantes as tornam essencialmente não monogâmicas, serve como justificativa para afirmações de que todas as mulheres são frívolas, superficiais, traem seus parceiros sempre que houver possibilidade e não servem para nada além do que “acasalamento” e procriação. Este último fator é também uma das principais ansiedades de movimentos e grupos do supremacismo branco, que disseminam a crença de que brancos estão sendo substituídos por pessoas não brancas (negros, imigrantes, judeus) e ter o maior número de filhos (crianças brancas) em casamentos não inter-raciais deve ser uma prioridade.
Na subcultura online dos “artistas da sedução”, incentivos ao estupro não são incomuns. A mulher, subjugada, só teria uma função (copular), e sua suposta inferioridade biológica e intelectual não permitiria que recusassem investidas dos “machos alpha”, ou – no dialeto da manosfera – os “chads”. Ao mesmo tempo, as reações de mulheres (feministas ou não), em relação à apologia do estupro presente nesse ecossistema, são encaradas como pânico moral produzido por feministas e globalistas liberais. Assim como a apologia ao estupro é corriqueira, a aceitação da pedofilia também aparece com frequência, pois quanto mais jovem, maior a probabilidade de serem virgens e, portanto, com um alto SMV e, por isso, não veem problemas em relacionamentos sexuais com menores de 18 (em casos extremos, menores de 14 anos).
O assédio online e gaslight (manipulação psicológica na qual o agressor investe em criar na vítima dúvidas a respeito de sua sanidade mental e seu senso crítico individual) também são ensinados nos workshops, vídeos e cursos de PUAs para quebrar o espírito das mulheres e subjugá-las.
MEN GOING THEIR OWN WAY (HOMENS SEGUINDO SEU PRÓPRIO CAMINHO)
A subcultura online MGTOW é aquela que emerge diretamente da ideologia Red Pill dentro do ecossistema digital da manosfera. A pílula vermelha e todas as teorias conspiratórias da far-right que estão sob seu guarda- -chuva supostamente comprovariam a existência de uma sociedade baseada no ginocentrismo e misandria. Toda ordem social do mundo ocidental seria manipulada para ser prejudicial aos homens, e a saída, por isso, seria abster- -se completamente de relacionamento com mulheres e “seguir seu próprio caminho”, concentrando-se em autoaperfeiçoamento estético, financeiro e psicológico.
Assim como os PUAs, os MGTOWs também criaram uma indústria milionária que oferece livros, cursos, treinos físicos e coachs que ensinam a não mais desejar mulheres, pois elas seriam as causadoras do mal no mundo. Em muitos aspectos, remete à imagem de que a mulher é um arquétipo da tentação bíblica: na figura de Eva, ela seria a responsável por levar o homem ao declínio e perdição.
O movimento MGTOW, “homens seguindo seus próprios caminhos”, surge como uma dissidência anticoletivista em reação às duas principais subculturas citadas anteriormente: os ativistas dos direitos dos homens (que focam na atuação política e coletivista, tentando amplificar suas pautas no debate público para então haver modificação de leis que garantiram modestos avanços nos direitos civis das mulheres) e os treinadores dos jogos de sedução (PUAs).
Para os MGTOWs, a ação política é perda de tempo: são as mulheres que dominam o mundo e citam as regras, e o coletivismo é uma ilusão. E, em relação aos PUAs, a própria dedicação ao jogo da sedução para conquistar mulheres supostamente revelaria que esses homens são completamente dependentes da aprovação feminina e estariam, portanto, dominados pelo “sistema” (Zuckerberg, 2018).13
Para a maior parte dos membros dessa subcultura, ser MGTOW é uma filosofia de vida, e não movimento político. São vários os depoimentos (que servem como iscas para angariar novos adeptos) de homens que revelam uma frustração afetiva anterior, um relacionamento rompido e que resultou em perdas financeiras para eles.
Não por acaso, os principais influenciadores MGTOWs dedicam grande parte dos conteúdos – que produzem em diversas plataformas – a fornecer dicas de aplicações financeiras (criptomoedas é o investimento mais sugerido) e na sugestão de evitar o casamento e/ou qualquer tipo de relacionamento a longo prazo com mulheres, pois a relação afetiva com mulheres seria um suposto investimento sem retorno e com chances grandes de prejuízo. Outra fixação entre os MGTOWs é a suposta incidência de denúncias falsas de estupros.
A introdução de um grau elevado de misantropia (além da misoginia extrema e do pensamento conspiratório agregado à crença na “pílula vermelha”) situa o movimento dos homens seguindo seu próprio caminho, com maior potencial de extremismo violento, ideologicamente motivado, do que os outros movimentos da manosfera, perdendo apenas para os Incels (celibatários involuntários).
A sobreposição com a Alt-Right é mais presente, destacando-se ações coordenadas de assédio de gênero online (gendertrolling) como o GamerGate e a ampla influência de movimentos e grupos extremistas misóginos e chauvinistas como os Proud Boys, além de notórios neonazistas que viram nessa subcultura online um caminho aberto para cooptação de jovens aos conceitos da supremacia e nacionalismo branco, como por exemplo o neonazista Andrew Anglin e seu site dedicado ao nacionalismo branco, The Daily Stormer.
Anglin, em entrevistas,14 já admitido que o site neonazista teria sido projetado especialmente para cooptar jovens e crianças ao seu sistema de crenças extremistas. Segundo ele, o site permitiria que esses jovens pudessem pular o processo de “redpilling” e assim abraçariam crenças15 do supremacismo/nacionalismo branco com mais rapidez. Com esse foco, parte relevante dos conteúdos no The Daily Stormer agrupavam tropos de misoginia extrema da manosfera (MRAs, PUAs, MGTOWs e Incels) com teorias conspiratórias antissemitas, afirmando, por exemplo, que o feminismo seria um complô de “cabalas judaicas” para a destruição da família tradicional (leia-se brancas) e que o comportamento de extrema misoginia seria apenas uma reação legítima.
BLACK PILL – INCELS, OS CELIBATÁRIOS INVOLUNTÁRIOS
Entre as subculturas online da manosfera, possivelmente a mais conhecida do grande público seja a IncelDOM. Além do termo Incel ser utilizado de forma pejorativa na maior parte das vezes (e em várias, de forma equivocada, pois nem todo misógino extremo é um Incel), há um longo histórico de extremismo violento ideologicamente motivado e atentados terroristas que trazem marcadores da subcultura Incel.
Ao contrário do que muitos imaginam, a subcultura online Incel não começou com jovens rapazes frustrados em suas vidas afetivas, mas com uma mulher em 1997. A jovem Alana criou um projeto online denominado “The involuntary celibate movement” (movimento dos celibatários involuntários) com o objetivo de reunir pessoas que gostariam − mas não tinham ainda − relações afetivas e/ou sexuais. Conversar sobre timidez, compartilhar experiências e diminuir a sensação de solidão eram os tópicos mais frequentes no blog. Mas em pouco tempo o projeto foi invadido por conteúdos de misoginia extrema e uma amálgama de crenças extremistas, teorias conspiratórias, teses pseudocientíficas de determinismo biológico e um profundo niilismo e misantropia.
Para os jovens Incels, as mulheres não somente seriam a causa de sua perdição e sofrimento como as principais responsáveis pelo celibato involuntário dos menos favorecidos estética e geneticamente. A radicalização para o racismo explícito e xenofobia também é frequente: quando os Incels veem mulheres se relacionando com negros e/ou imigrantes, o senso de autovitimização aumenta, pois consideram que foram preteridos em detrimento a homens que eles acreditam serem inferiores.
De forma paradoxal, entre os Incels há tanto uma tendência à autovitimização quanto também traço de personalidade narcisista: consideram que o mundo não lhes dá o valor que merecem, e a pílula vermelha, Red Pill, em seu sistema de crenças, também seria uma ilusão, pois não forneceria acesso desses homens supostamente inferiores às mulheres; então optam pela chamada Black Pill, a pílula negra, a ideia de que aceitam o status de inferiores que nunca ascenderão na hierarquia masculina (se tornariam um CHAD, o indivíduo atraente e que não encontra dificuldades para se relacionar afetivamente) e de que sua situação é imutável; dessa forma, a ideação suicida é recorrente entre incelDOMs, assim como a automutilação também é incentivada entre eles próprios.
Na incelsfera, as mulheres são sempre caracterizadas como repulsivas, subumanas e/ou maquiavélicas e há a crença de que sistemas políticos autocráticos com hierarquias (de gênero e raciais) bem definidas seriam melhores do que a democracia liberal, pois dessa forma as mulheres não teriam a possibilidade de não os escolherem como parceiros. No extremo da radicalização, os Incels passam a desenvolver um imenso desprezo por todos os seres humanos, não apenas por mulheres. De homens atraentes a imigrantes, judeus, LGBTQIA++, pessoas não brancas, todos seriam inimigos e desprezíveis, e a “glória” seria alcançada quando houvesse atos de vingança, provocando o maior número de vítimas fatais possível. O extremismo violento ideologicamente motivado seria, na cosmovisão dos Incels, o ato supremo de purificação. Virariam “Sanctos”.
SUBCULTURAS ONLINE LETAIS
A supremacia masculina (algumas vezes em polinização cruzada com outras ideologias extremistas) foi vetor em vários episódios de terrorismo doméstico de extrema direita e extremismo violento ideologicamente motivado tanto em outros países quanto no Brasil. Embora esses crimes não sejam categorizados aqui no Brasil como os centros de pesquisa e contraextremismo estrangeiros classificam, as pegadas digitais de atiradores em massa em ambiente escolar no país comprovam a relação entre a misoginia extrema, extremismo de extrema direita e esses atentados.
Em 2011 (Realengo − Rio de Janeiro − Escola Tasso de Oliveira) um extremista violento de 23 anos cometeu um atentado na escola deixando 12 vítimas fatais (idades entre 13 e 15 anos) – a maior parte, meninas. O atirador frequentava chan de misoginia extrema e se inspirou em outro atentado de extremismo violento ideologicamente motivado que também exibia a supremacia masculina como influência do ato, o massacre na escola Columbine (EUA).
Em 2019 (Suzano – São Paulo − Escola Raul Brasil), dois extremistas violentos,17 e 25 anos, promoveram um massacre com 10 vítimas fatais e 11 feridos. Também se inspiravam em Columbine e frequentava um chan nocivo, o dogolachan, no qual receberam instruções online e anunciaram o massacre. Um dos extremistas é cultuado hoje em subculturas online extremistas como os fandoms de atiradores em massa e terroristas: a TCC – True Crime Community.
A TCCtwt, comunidade de crimes reais, é uma subcultura online de extremismo violento que reúne desde neofascistas e neonazistas declarados a Incels, com membros na faixa etária que abrange dos 10 aos 22 anos (segundo informações dos próprios usuários) e se hospedam tanto na deep web quanto na superfície da internet (atualmente, o Discord é a plataforma com o maior número de subculturas tcc).
Nessa subcultura, massacres, assassinatos em massa em ambiente escolar, terrorismo doméstico e episódios de extremismo violentos ideologicamente motivados são glorificados, disseminam vídeos com edições dos morticínios; trocam instruções para execução de massacres; promovem ideação suicida; incentivam automutilação; compartilham PDFs e outros conteúdos com antissemitismo e racismo extremo; disseminam o revisionismo histórico e manifestos terroristas supremacistas e radicalizam os usuários em uma profunda misantropia.
Entre 2021 e 2022, no Brasil, ao menos quatro atentados de extremismo violento com motivações ideológicas foram executados por jovens radicalizados nessa subcultura online letal, que apresenta crenças híbridas (extremismo violento composto) entre misoginia extrema, supremacismo branco e antissemitismo violento:
2021 – Saudades (Santa Catarina) – O extremista violento de 18 anos invadiu uma creche e assassinou cinco pessoas com o uso de uma katana (espada samurai), sendo três das vítimas fatais bebês com idades entre 1 e 2 anos. Ele planejou o atentado por 10 meses, era usurário de subculturas online extremistas, apresentava traços de misoginia extrema Incel. A investigação não tipificou como crime de ódio.
2022 – Vitória (Espírito Santo) – O extremista violento, 18 anos, munido de facas, bombas caseiras, três bestas, munição, flechas e coquetel molotov, tentou executar um massacre, mas foi imobilizado. Não houve vítimas fatais. O jovem era membro da subcultura digital extremista TCCtwt, premeditou o atentado e se comunicava online com outro jovem que promoveu atentado tempos depois numa escola do interior da Bahia. Quando foi imobilizado, fez referências a outro terrorista em massa: Timur (Rússia);
2022 – Barreiras (Bahia) – O adolescente extremista violento de 14 anos planejou o atentado na subcultura online TCCtwt no discord. Matou uma aluna cadeirante que não conseguiu fugir e utilizou como armas: revólver, adagas, facão e nail bomb (bomba de pregos). O atirador anunciou o atentado no Twitter 4 horas antes e, seguindo métodos de outros terroristas de extrema direita estrangeiros, publicou um manifesto digital inspirado em manifestos de outros terroristas, sendo as principais referências utilizadas os manifestos dos terroristas Tarrant (Nova Zelândia), Breivik (Noruega), Cruisis (EUA) e Unabomber – Ted Kaczynski (EUA). Apresenta traços de personalidade narcísica, tropos Incels de supremacia masculina e supremacismo étnico. O manifesto dedica uma dezena de páginas para apologia ao nazismo, e o extremista admite ter se radicalizado online.
2022 – Aracruz (Espírito Santo) – Extremista violento de 16 anos realizou um massacre em duas escolas. Vitimou fatalmente quatro pessoas e feriu gravemente outras 12. Todas as vítimas fatais foram mulheres, inclusive a maior parte dos feridos. O atirador portava símbolos de reforço estético recorrentes na subcultura online letal TCCtwt (skull mask, símbolo nazista na braçadeira e vestuário militar). Um “altar” foi publicado para ele em servidor do discord dessa subcultura horas depois do massacre. Alguns comentários nesse mesmo servidor indicaram que ele havia mencionado o planejamento a outros usuários. Investigação em curso.
RADICALIZAÇÃO ONLINE E EXTREMISMO
Alguns dados de monitoramento do extremismo no Brasil indicam um aumento16 exponencial no número de células de movimentos e grupos de extrema direita; episódios de extremismo violento ideologicamente motivados e terrorismo doméstico de extrema direita já são realidade no país, e movimentos extremistas híbridos e conspiracionistas ganham força em manifestações públicas e ações contra a ordem democrática.
Todos esses fatores precisam ser entendidos a partir de uma abordagem da radicalização online (os meios digitais encurtaram o processo de radicalização para entre 13/18 meses) e contraextremismo. Relatório17 divulgado no Reino Unido pelo Ministério da Justiça indicou que, entre 2019/2021, 92% dos condenados por terrorismo doméstico e/ou extremismo violento ideologicamente motivados foram radicalizados online, e um em cada seis condenados por terrorismo tem abaixo de 18 anos de idade.
Uma abordagem de prevenção da radicalização online e combate ao extremismo de forma multissetorial, que inclua não apenas políticas públicas governamentais, mas também a sociedade civil, é urgente. A “ideologia” red pill apresenta um funil de radicalização inequívoco e atua como uma grande tenda para a mentalidade conspiratória e radicalização em crenças extremistas. Entender a sobreposição de grupos e movimentos supremacistas que aparentemente são distintos e sem um ethos essencialmente político é um dos caminhos para que se possa realizar uma abordagem de contraextremismo eficaz.
É autora do livro “Tempestade ideológica – Bolsonarismo: A Alt-Right e o Populismo I-Liberal No Brasil” [email protected]
NOTAS DE RODAPÉ
1. O movimento Neorreacionário, Neo-reactionary, foi criado na primeira década dos anos 2000 pelo engenheiro de software e blogueiro Curtis Yarvin sob o pseudônimo Mencius Moldbug. Seria, mais adiante, uma das inspirações de Steve Bannon e da Alt-Right.
2. O subredit “The Red Pill” (TRP) foi fundado em 2012, supostamente por um membro do Partido Republicano (EUA), Robert Fischer.
3. Steve Sailer é o criador da tese pseudocientífica e amplamente refutada da “Biodiversidade Humana”, uma tese que defende a superioridade racial de brancos, porém, com o evidente racismo científico e neoeugenia eufemizados.
4. Nick Land é um filósofo racista e teórico libertário inglês que aprimorou algumas ideias de Mencius Moldbug na formulação do Iluminismo Das Trevas. Tem relações com grupos neonazistas extremamente violentos e considerados grupos terroristas por alguns países, como o grupo neonazista aceleracionista OA9 – Ordem dos Nove Ângulos.
5. The Case Against Democracy – Ten Red Pills – Disponível em https://. unqualified-reservations.org/2007/04/case-against-democracy-ten-red-pills/
6. The Case Against Democracy – Ten Red Pills – Disponível em https://. unqualified-reservations.org/2007/04/case-against-democracy-ten-red-pills/
7. Panofsky, A; Dasgupta, K; Iturriaga, N. How White nationalists mobilize genetics: From genetic ancestry and human biodiversity to counterscience and metapolitics. Am J Phys Anthropol. 2021 Jun;175(2):387-398. doi: 10.1002/ ajpa.24150. Epub 2020 Sep 28. PMID: 32986847.
8. Why Peter Thiel Wants to Topple Gawker and Elect Donald Trump? – Disponível em https://nymag.com/intelligencer/2016/06/peter-thiel.html
9. Inside the new right: Where Peter Thiel is placing his biggest bets? – Disponível em https://.vanityfair.com/news/2022/0...-where-peter-thielis-placing-his-biggest-bets
10. Um dos blogs ligados à corrente da direita radical “Paleolibertarianismo” reverbera a ideia falsa da “ditadura ginocêntrica” com frequência: A ditadura ginocêntrica ocidental – disponível em https://rothbardbrasil.com/a-ditadura- -ginocentrica-ocidental/
11. Dois dos influenciadores da manosfera que utilizam o culto à tradição são Jack Donovan e Daryush “Roosh” Valizadeh, criador do blog ”Return Of Kings”.
12. Marwick, Rebecca; Lewis, Alice – Media Manipulation and Desinformation Society – Data & Society , 2019.
13. Zuckeberg, Donna – Not All Dead White Men – Havard United Press, 2018; Report State of Hate 2019 – Hope Not Hate; Preston, K.: Halpin, M., Maguire, F – The Black Pill: New Technology and the Male Supremacy of Involuntarily Celibate Men – Men and Masculinities 2021, Vol. 24(5) 823-841
14. “Andrew Anglin brags about ’indocrinating’ children into nazi ideology“ Disponível em: https://.splcenter.org/hatewatch/20...s-about-indoctrinating-children-nazi-ideology
15. “How the alt-right’s sexism lures men into white supremacy” – Disponível em https://.vox.com/culture/2016/12/14/13576192/alt-right-sexism-recruitment
16. Grupos neonazistas crescem 270% em 3 anos – disponível em https://g1.globo.com/fantastico/not...nline-transborde-para-ataques-violentos.ghtml
17. Most convicted terrorists radicalised online, finds MoJ-backed study – Disponível em https://.theguardian.com/uk-news/20...dicalised-online-finds-study?CMP=share_btn_tw
Fonte: https://inteligencia.insightnet.com...neofacismo-radicalizacao-online-e-extremismo/
"Redpillado": como 'Matrix' inspira grupos machistas e a extrema-direita.
Na terça-feira (16), Ernesto Araújo, ex-ministro das Relações Exteriores, definiu-se como "redpillado" num evento conservador em Santa Catarina. A fala em que critica o governo de que fez parte — "colocaram uma pílula azul no café do presidente", "azularam completamente" — refere-se à franquia de filmes "Matrix" e incorpora a leitura de mundo de certos grupos misóginos surgidos na internet nos últimos anos. Hoje, pílulas vermelhas e azuis fazem parte do vocabulário da direita e da extrema-direita em todo o mundo.
Em seu ambiente virtual de origem, as "pílulas vermelhas" vêm empacotadas com improváveis piadas de tiozão do pavê e dicas de meditação. Isso acontece diariamente em grupos exclusivos para homens, em aplicativos como WhatsApp e Telegram. Ninguém me contou, eu vi. Passei dez dias lendo mensagens, ouvindo áudios, vendo vídeos e recebendo memes em dois grupos de WhatsApp e dois de Telegram — um deles com mais de 1.700 participantes. Minha entrada se deu por meio de um link de convite encontrado numa busca simples do Google por termos como "MGTOW" e "red pill", que identificam grupos masculinistas. As confrarias em que me infiltrei foram as que se mantêm em atividade, com mensagens em português. Em outras até consegui entrar, mas não havia usuários ou ninguém se manifestava.
Matrix como inspiração machista "Red pill" é termo onipresente em grupos masculinistas. No filme, o protagonista Neo (vivido por Keanu Reeves) ganha duas pílulas e tem de escolher qual tomar: a azul, que lhe permite seguir vivendo em um mundo de ilusões; ou a vermelha, para adquirir consciência sobre a realidade que o cerca. No vocabulário masculinista, os "red pills" seriam homens que se opõem ao "sistema que favorece as mulheres", por terem alcançado um conhecimento privilegiado sobre isso. Já os "blue pills" continuariam vivendo em ilusão e, portanto, seriam usados pelas mulheres. Há ainda uma categoria que não existe no filme: os "black pills", homens que concordam com red pill e acham que já não podem mudar nada no "sistema", assumindo uma postura mais niilista. Entre pílulas de várias cores, um detalhe irônico: as duas diretoras de "Matrix", as irmãs Wachowski, são mulheres trans. Uma delas, Lilly, chegou a confrontar figuras públicas como Ivanka Trump, Elon Musk e até Abraham Weintraub pelo uso do termo "red pill" em apologia à extrema-direita.
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Já tem algum tempo que ouço esse termo na internet, mas pensei ser referente a cultura dos xovens. Coisas da época do cringe, quem se lembra disso? E, também, por alguma razão eu associava a palavra a algum meme com o medicamento Advil.
Mas nunca passou pela minha cabeça que seria uma onda machista e misógina de incels 2.0.
Brincadeiras a parte, esse movimento, como tantos outros, (Incel, Integralistas, etc), surge de um buraco em nossa cultura, que precisa ser preenchido, e em geral usam o ódio para tal.
Surpreso? não.
Mas o que me surpreende mais e mais, é o uso de elementos de caráter progressistas, para a bandeira conservadora.
Usar a quebra da Matrix (mundo comum em que vivemos, recheado de conservadorismo e desigualdades ), para então ascender a um estado evoluído de comportamento (conservador) e pensamento, é no mínimo controverso.
Em tempo, eu não vejo a Matrix, seja o filme, ou o próprio livro do Gibson como um limiar da politica social.
Apesar do livro abordar bem um futuro cyberpunk muitas vezes visto em Blade Runner, ou Altered Carborn
Até entendo a ânsias do jovem redpillado, como mostrado no documentário Red Pill (2016), desemprego, violência, a pressão que o machismo exerce sobre o próprio homem. Meu problema é como essa demanda é mostrada.
Nunca em caráter informativo, apenas como um vitimisimo e justificativa para esses grupos buscarem grupos extremistas.