Não somos mais simples animais. Criamos conceitos como cultura, civilização, filosofia, arquitetura, engenharia, cálculo, rádio, internet. Aprendemos a usar os recursos a nossa volta para melhor nos beneficiar. Estamos acima de qualquer espécie de animal da Terra.
"Criamos"? Você criou alguma dessas coisas? Até onde sei você tem tanto mérito nessas coisas quanto o gorila que morreu - sendo assim, por que essas coisas fariam de você mais digno que o gorila? Se sua espécie criou tudo isso, também o fizeram a família, classe ou ordem (no sentido cladístico das palavras) do gorila, não vejo diferença radical nas duas situações...
A dignidade do indivíduo está no que ele é em si mesmo, e não nas potencialidades de sua espécie, ou de sua nação, ou de sua raça, ou de qualquer outro grupo ao qual ele pertença - mesmo porque essas potencialidades na maioria das vezes sequer se atualizam no indivíduo, grande parte dos homens por exemplo não tomam qualquer parte nos méritos da civilização. Quando não é o caso de sequer terem racionalidade patente. Inclua aqui, por exemplo, doentes mentais ou neurológicos graves, recém-nascidos, homens das cavernas, fãs de Ciro Gomes, etc. Não é na alta capacidade criativa e intelectual que você fundamentará a dignidade humana, ou uma maior dignidade dos homens em relação aos animais - mesmo porque seguindo os mesmos critérios você teria que aceitar homens superiores a outros.
Definir onde a dignidade reside é tarefa dificílima. Mas decerto não será feito através de conceitos pueris como "espécie superior", "raça superior", etc. Isso é, por grupismos de toda ordem. A dignidade, seja lá o que for, é uma propriedade continuamente distribuída. E esse pensamento não constitui "sintoma de nossa sociedade doente" - já existia milênios atrás, por exemplo, nas religiões orientais: muitas vezes elas não reconhecem diferença intrínseca de dignidade entre homens e animais, qualquer assimetria não é radicalmente diferente das assimetrias que encontram-se, em menor escala, em homens de países, castas, ou condições mil diferentes. No ocidente esse tipo de crença não era rara, ainda que fosse minoritária, por influência das religiões pagãs (onde o conceito de dignidade não existia satisfatoriamente, até o homem era indigno, no sentido de que estava sujeito à vontade arbitrária dos deuses) e do cristianismo.
O pensamento em favor de um olhar menos distante aos animais também é uma consequência natural do darwinismo. O gorila não é da sua espécie meramente porque não pode haver fluxo genético entre você e o gorila. Mas entre você e o gorila há um antepassado comum - se todos descendentes desse antepassado fossem repentinamente trazidos de volta à vida, todos seriam da mesma espécie, inclusive você e o gorila. E o aconteceria então? O gorila ficaria superior? Não - apenas estaria claro que não há nada de fundamentalmente diferente entre você e o gorila: entre você e o gorila haveria uma sequência de indivíduos gradualmente diferentes entre si, e você não poderia estabelecer um critério de quem é superior e quem é inferior.
Além desses argumentos racionais, a discussão repousa antes de tudo na mera empatia - não falhasse a empatia, esses argumentos não seriam necessários, como não são necessários grandes argumentos para falar que têm dignidade equivalente o pagão e o cristão, o romano e o bárbaro, o nobre e o plebeu, o homem livre o o escravo, e por aí vai, qualquer impressão de superioridade intrínseca de um em relação ao outro é uma ilusão e repousa em preconceitos socialmente adquiridos.
Será esse o caso do gorila e do homem? Coloquemos, em um experimento mental, lado a lado um homem e um gorila, e deixemos de lado quaisquer elucubrações sobre os méritos dos parentes desses indivíduos, sobre suas capacidades intelectuais, sobre sua beleza, ou sobre qualquer outra coisa que não venha ao caso... analisemos o que aqueles indivíduos são em si mesmos, sua natureza em seu sentido mais intrínseco, natureza esta que estaria ali na nossa frente, em toda sua composição material e espiritual - se estiver despido de preconceitos, dificilmente você conseguiria intuir uma diferença gritante de um em relação ao outro em matéria de dignidade. É só imaginar um E.T. tendo que fazer essa análise, e, para facilitar ainda mais, o exemplar de homem em questão tendo alguma deficiência mental, ou o E.T. analisando recém-nascidos gorilas e humanos - decerto essas condições não prejudicarão o experimento mental, já que a dignidade humana não é menor em deficientes e recém-nascidos.
Eu justificaria a morte do gorila do zoológico mais ou menos como aquilo que aconteceu em A Guerra dos Mundos: para garantir a segurança de sua filha, o personagem de Tom Cruise teve que matar um cara que estava pirando e atraindo ameaças. Ainda que o cara não seja culpado pelo perigo que causava, e ainda que ele pudesse tranquilizar-se no instante seguinte e não mais trazer perigo, o risco é muito grande e sua morte torna-se moralmente plausível. Mas repare que o argumento não envolve superioridade ou inferioridade, trata-se apenas da nossa tendência de proteger nossos parentes mais próximos.