"Criamos"? Você criou alguma dessas coisas? Até onde sei você tem tanto mérito nessas coisas quanto o gorila que morreu - sendo assim, por que essas coisas fariam de você mais digno que o gorila? Se sua espécie criou tudo isso, também o fizeram a família, classe ou ordem (no sentido cladístico das palavras) do gorila, não vejo diferença radical nas duas situações...
A dignidade do indivíduo está no que ele é em si mesmo, e não nas potencialidades de sua espécie, ou de sua nação, ou de sua raça, ou de qualquer outro grupo ao qual ele pertença - mesmo porque essas potencialidades na maioria das vezes sequer se atualizam no indivíduo, grande parte dos homens por exemplo não tomam qualquer parte nos méritos da civilização. Quando não é o caso de sequer terem racionalidade patente. Inclua aqui, por exemplo, doentes mentais ou neurológicos graves, recém-nascidos, homens das cavernas, fãs de Ciro Gomes, etc. Não é na alta capacidade criativa e intelectual que você fundamentará a dignidade humana, ou uma maior dignidade dos homens em relação aos animais - mesmo porque seguindo os mesmos critérios você teria que aceitar homens superiores a outros.
Definir onde a dignidade reside é tarefa dificílima. Mas decerto não será feito através de conceitos pueris como "espécie superior", "raça superior", etc. Isso é, por grupismos de toda ordem. A dignidade, seja lá o que for, é uma propriedade continuamente distribuída. E esse pensamento não constitui "sintoma de nossa sociedade doente" - já existia milênios atrás, por exemplo, nas religiões orientais: muitas vezes elas não reconhecem diferença intrínseca de dignidade entre homens e animais, qualquer assimetria não é radicalmente diferente das assimetrias que encontram-se, em menor escala, em homens de países, castas, ou condições mil diferentes. No ocidente esse tipo de crença não era rara, ainda que fosse minoritária, por influência das religiões pagãs (onde o conceito de dignidade não existia satisfatoriamente, até o homem era indigno, no sentido de que estava sujeito à vontade arbitrária dos deuses) e do cristianismo.
O pensamento em favor de um olhar menos distante aos animais também é uma consequência natural do darwinismo. O gorila não é da sua espécie meramente porque não pode haver fluxo genético entre você e o gorila. Mas entre você e o gorila há um antepassado comum - se todos descendentes desse antepassado fossem repentinamente trazidos de volta à vida, todos seriam da mesma espécie, inclusive você e o gorila. E o aconteceria então? O gorila ficaria superior? Não - apenas estaria claro que não há nada de fundamentalmente diferente entre você e o gorila: entre você e o gorila haveria uma sequência de indivíduos gradualmente diferentes entre si, e você não poderia estabelecer um critério de quem é superior e quem é inferior.
Além desses argumentos racionais, a discussão repousa antes de tudo na mera empatia - não falhasse a empatia, esses argumentos não seriam necessários, como não são necessários grandes argumentos para falar que têm dignidade equivalente o pagão e o cristão, o romano e o bárbaro, o nobre e o plebeu, o homem livre o o escravo, e por aí vai, qualquer impressão de superioridade intrínseca de um em relação ao outro é uma ilusão e repousa em preconceitos socialmente adquiridos.
Será esse o caso do gorila e do homem? Coloquemos, em um experimento mental, lado a lado um homem e um gorila, e deixemos de lado quaisquer elucubrações sobre os méritos dos parentes desses indivíduos, sobre suas capacidades intelectuais, sobre sua beleza, ou sobre qualquer outra coisa que não venha ao caso... analisemos o que aqueles indivíduos são em si mesmos, sua natureza em seu sentido mais intrínseco, natureza esta que estaria ali na nossa frente, em toda sua composição material e espiritual - se estiver despido de preconceitos, dificilmente você conseguiria intuir uma diferença gritante de um em relação ao outro em matéria de dignidade. É só imaginar um E.T. tendo que fazer essa análise, e, para facilitar ainda mais, o exemplar de homem em questão tendo alguma deficiência mental, ou o E.T. analisando recém-nascidos gorilas e humanos - decerto essas condições não prejudicarão o experimento mental, já que a dignidade humana não é menor em deficientes e recém-nascidos.
Eu justificaria a morte do gorila do zoológico mais ou menos como aquilo que aconteceu em A Guerra dos Mundos: para garantir a segurança de sua filha, o personagem de Tom Cruise teve que matar um cara que estava pirando e atraindo ameaças. Ainda que o cara não seja culpado pelo perigo que causava, e ainda que ele pudesse tranquilizar-se no instante seguinte e não mais trazer perigo, o risco é muito grande e sua morte torna-se moralmente plausível. Mas repare que o argumento não envolve superioridade ou inferioridade, trata-se apenas da nossa tendência de proteger nossos parentes mais próximos.