VEJA - Não há no Brasil uma desconfiança recíproca entre o Estado e os intelectuais?
MERQUIOR - É impressionante o número de intelectuais brasileiros que está dentro do Estado e faz de conta que não vê. O que está dando pretexto a tanta retórica ideológica sobre essa questão é apenas uma concepção vulgar de Estado, que só vê seu ramo executivo. Ora, essa não é uma concepção correta, nem jurídica, nem historicamente, nem para o Direito, nem para as ciências sociais. O Estado não é só o governo. Fica muito engraçado ver tantos intelectuais encastelados em posições universitárias, comportando-se como vestais críticas do poder do Estado. Estão fazendo tudo isso dentro do Estado e não sabem.
VEJA - O senhor antipatiza com a sociedade civil?
MERQUIOR - Antipatizo com o mito da sociedade civil, que me parece ter duas origens. Uma, brota da esquerda. Até 1970, certamente durante todos os anos 60. O pensamento marxista ou marxistizante na América Latina, preso ao conceito leninista de imperialismo, que era uma espécie de projeção da luta de classes para a política internacional, fez o resgate ideológico do Estado.
VEJA - Resgate ideológico?
MERQUIOR - Isso mesmo. Pela tradição marxista, o Estado sempre foi sinônimo do mal, de instrumento de opressão. Mas, de repente, através da transposição de que eu falava, os marxistas, tomados de fervor nacionalista, passaram a ver o Estado como denominador comum das classes contra a opressão internacional. Isso foi na era leninista. Agora, os marxistas brasileiros estão em plena era de devoção ao pensador italiano Antonio Gramsci, o que num certo sentido implica a volta às matrizes marxistas que sempre viram no Estado um instrumento de opressão. Essa é a origem esquerdista do mito da sociedade civil.
VEJA - Existe a origem direitista?
MERQUIOR - Claro. Os neoliberais brasileiros - que, aliás, andam precisando de correção semântica, pois na verdade são paleoliberais - juntaram-se à esquerda nessa festa de rejeição do Estado. Porque num país como o nosso o Estado é, ou pelo menos deve ser, um promotor de progresso, do equilíbrio social. Mas os paleoliberais rejeitam essa função do Estado e por isso se juntaram aos gramscianos na criação do mito da sociedade civil, chamada a resolver os problemas brasileiros sem a interferência do Estado ou contra ela. Isso é uma bobagem.
VEJA - Mas rendeu muito debate.
MERQUIOR - Uma das características defeituosas do nosso debate intelectual - quando ele ocorre, pois a outra característica é que ele é muito subdesenvolvido e raramente ocorre - é a tendência à imediata ideologização. Os problemas são sempre apresentados de maneira abstrata, principista e apriorista. Portanto, o coeficiente de análise empírica, de exame concreto de realidades verificáveis, é muito pequeno. O inglês Oscar Wilde dizia que os patrões falam de coisas e os criados de pessoas. No debate político e intelectual brasileiro, há muito pouca gente falando de coisas ou pessoas. Fala-se de noções abstratas.
VEJA - Com que resultado?
MERQUIOR - O resultado, em outras palavras, é que se restaurou no Brasil o estilo escolástico de debate. Uma das melhores definições de escolástica como estilo retórico diz que ela era uma maneira precisa de falar de coisas vagas. Para ver como isso funciona na prática, basta acompanhar a discussão sobre democracia: quase ninguém discute os mecanismos reais de representação. E o resultado é que o debate, político e intelectual, ficou muito chato no Brasil, pois a discussão sobre coisas concretas é sempre muito mais remuneradora que a discussão sobre princípios.
VEJA - Qual seria o remédio?
MERQUIOR - Pessoalmente, há muitos anos eu me espanto com a irresponsabilidade de alguns intelectuais que tendem a minimizar, em nome de uma vesga modernice, o problema do ensino básico, da alfabetização, de dotar as pessoas com o instrumental mínimo do pensamento articulado, que é a capacidade de falar e escrever corretamente. Fala-se mal, escreve-se mal, pensa-se mal no Brasil.
VEJA - Quem escreve mal?
MERQUIOR - Os cientistas sociais, os críticos literários, os políticos e, enfim, mas não por último, os escritores.
[...]
VEJA - Como é o intelectual brasileiro?
MERQUIOR - No Brasil, há uma intelectualidade, mas não uma intelligentsia. A diferença entre uma coisa e outra é a mesma que distingue o gênero da espécie. A intelligentsia é um tipo de intelectualidade, um tipo cujo modelo histórico foram os intelectuais da Europa oriental no século passado, sobretudo no império czarista. O que a caracteriza é a separação em que os intelectuais vivem em relação à sociedade. São párias, até pela situação de sua renda e seu status. Os intelectuais brasileiros mais radicais não são párias de nossa sociedade, nem pela renda nem pelo status. Se disserem que são, eu respondo com uma gargalhada. Eles se beneficiaram do progresso econômico, subiram socialmente nos últimos anos como o resto da classe média. Por isso, têm uma retórica muito radical. Fingem que são uma intelligentsia. Mas, na prática, se comportam como um setor do salariado, têm impulsos corporativistas.
VEJA - O senhor quer dizer que os intelectuais são muito ciosos de seus interesses de classe?
MERQUIOR - Basta ver a prática da excomunhão em meios universitários, como se cassam mandatos intelectuais no Brasil. O AI-5 intelectual nunca foi revogado. É a classe se organizando em corporação. É típica a maneira como se reage no país à polêmica. Quando um intelectual no Brasil se sente incomodado por um crítico, ele não contra-ataca as idéias do crítico, ataca o próprio crítico. Foi o que aconteceu comigo, na polêmica com a professora Marilena Lefort...
VEJA - Quem?
MERQUIOR - Aliás, Marilena Chauí, que em seu último livro psicografou trechos inteiros do francês Claude Lefort. Quando eu denunciei isso em artigo, as pessoas que vieram em defesa da Marilena procuraram desqualificar minha pessoa, a pretexto de que eu trabalho para o governo. Eu me refiro a Maria Sylvia Carvalho Franco, conhecida patrulheira ideológica paulista. Há exceções, felizmente. Eu também critiquei Carlos Nelson Coutinho, porque não me convenceu sua tentativa de provar que leninismo e democracia são compatíveis. Ele entendeu que se tratava de uma discussão de idéias. Respondeu com seus contra-argumentos marxistas. Quando isso acontece, há polêmica. Do contrário, o que se tem é um bom exemplo do clero intelectual agindo como seita. É uma das características de toda seita é o puritanismo, a intransigência no plano da conduta e o dogmatismo.
VEJA - Aonde esse comportamento pode levar?
MERQUIOR - Está levando a uma grafocracia. Criticam-se muito as várias cracias, mas não a grafocracia, termo cunhado pelo marxista austríaco Karl Renner, depois da II Guerra, para designar essa vocação moderna do intelectual para exercer o poder através do que ensina ou escreve. O mal da grafocracia é que, com ela, o humanismo deixa de ser um movimento intelectual para se transformar numa ideologia, no sentido marxista da palavra, isto é, um sistema que reflete os interesses de uma camada intelectual que se comporta como clero.
VEJA - O filósofo Claude Lévi-Strauss, depois de ensinar na USP, escreveu que no Brasil todos querem ser eruditos, mas não têm a vocação nem o mérito. O senhor se considera um erudito?
MERQUIOR - Como categoria neutra, sem dar à palavra conotações de bem ou mal, admito que em alguns trabalhos realizei um certo esforço de erudição. Mas a minha preocupação com a erudição é instrumental, quero equipar-me com ela para tratar de determinados problemas. Mas essa conversa do erudito que leu o último livro é uma bobagem. Ninguém leu o último livro. Essa época acabou na Renascença, quando as grandes bibliotecas tinham 500 volumes. A minha tem 7 000 volumes e não tem o último livro. Por outro lado, a erudição também vai ganhando um ar pejorativo serve para descartar certas idéias, um certo tipo de pensamento a pretexto de que "são coisas de erudito". A insinuação é de que existe outro saber, por graça infusa, que dispensa seus iluminados do trabalho de serem eruditos. Basta estar na posição "correta". Eu gostaria de saber quem dá esse atestado de dispensa.
VEJA - Entre a esquerda e a direita, onde é que o senhor fica?
MERQUIOR - Alguém definiu admiravelmente bem as pessoas de minha posição ideológica. Foi o polonês Leszek Kolakowski, num texto que é uma pérola - "Como ser conservador, liberal e socialista". No fundo da visão conservadora, existe um elemento muito positivo, que consiste em acreditar que nem todos os males humanos têm causas sociais, sendo portanto elimináveis através de mudanças sociais. Do lado liberal, a idéia básica, também verdadeira, é que a finalidade do Estado é dar segurança, sem esclerosar a sociedade com um sistema demasiado refratário à iniciativa individual. Enfim, o socialismo tem de válida a idéia de que o pessimismo antropológico, por trás da posição conservadora, não deve ter o poder absolutista de evitar as reformas sociais citadas pelo reformismo esclarecido.
VEJA - Trocando em miúdos...
MERQUIOR - ...Eu me sinto um pouco um iluminista. Tenho confiança no progresso, acredito no progresso pela racionalidade. Essa crença já foi característica dos socialistas, mas hoje os socialistas mais sofisticados abandonaram seu compromisso histórico com o evolucionismo, direita e esquerda ficaram muito parecidas nesse aspecto: o repúdio aos tempos modernos. Adorno, que se proclamava neomarxista, chamou nossa época de satânica. No século XVIII, quem acreditava no progresso eram os filósofos. Atualmente, intelectual que acredita no progresso é coisa rara. Hoje em dia, quem acredita no progresso, felizmente, são as massas.
Fonte:
http://veja.abril.com.br/especiais/35_anos/ent_merquior.html