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A chama imperecível é uma releitura teológica de Tolkien do "Folego da vida".
o sopro inicial que deu vida aos homens nas histórias bíblicas.
Ela é o dom de concessão exclusiva de Eru, que dá a um ser a Vida e
a liberdade de escolha (livre arbítrio/vontade própria).
não há como dar vida a algo (seja consciente ou não) sem a ele conceder a chama imperecível.
por este motivo o criador é chamado de Eru que significa único:
ele é o único que pode conceder a vida, logo Eru Ilúvatar, ou o único criador.
E é exatamente por isto que Morgoth quer dominar Arda...
Ele queria servos e queria o dom de criar seus próprios seres para servi-lo.
mas ele não pode criar, apenas deturpar as criações originadas de Ainunlidalle, as quais eru
concedeu a chama imperecível.
deste modo ele transformou elfos e gnomos em Orcs, Ents ele fez em Trolls,
lagartos ele alterou em dragões terríveis e cruéis...
Por muito tempo ele desejou a chama imperecível para sí, mas depois de muito procurar
ele percebeu que ela não apenas estava com Eru, a chama era dele,e a chama era ele próprio.
A chama portanto também pode ser entendida como o uma releitura do teólogo
sobre o Motor Imóvel de Aristóteles, o "ρήμα" , ou réma (Verbo): O princípio originário de todas as
coisas, que foi adaptada à tradição judaico-cristã:
"No inicio era o verbo.
E o verbo estava com Deus.
E o verbo Era Deus.
Por ele todas as coisas foram feitas,
e sem ele nada do que foi feito se fez."
João 1
(Ora, Tolkien era um filósofo Cristão)
Tal também pode ser observado logo no final de Ainunlidalle, quando eru concede a chama imperecível
à existência de sua criação:
"Logo eu digo: EÄ!!! Que essas coisas existam!"
O que também configura criação pela palavra (Verbo),
descrita na origem de todas as coisas segundo a doutrina bíblica:
"E disse Deus: Haja luz; e houve luz." Gênesis 1:3
Enfim, essa questão da Chama é muito discutida e pouco conclusiva. Há uma teoria interessante (porém, com certa dose de subjetividade) onde é dito que a Chama Imperecível é algo parecido com o ar-pherion de Anaximandro, filósofo grego. O ar-pherion, segundo este filósofo, seria o constituinte de todas as coisas, algo eterno, imaterial e não acessível aos sentidos. Contraria assim grande parte dos filósofos que buscam num ou noutro elemento o elemento primordial da realidade.
A Chama Imperecível é, assim, algo eterno, tal qual Eru. Ele a envia para o centro do vazio e assim é criada Eä, a Existência. Os valar teriam o poder de moldar a Arda a partir desse princípio. Porém, os próprios ainur e eruhiri seriam feitos a partir desse elemento, da Chama. A Chama seria assim o princípio fundamental da Existência, sujeita a ser moldada por ainur e também (em menor escala) por elfos, o que se justifica a atribuição de poder sub-criativo, onde os elfos e ainur deixam parte de si em Arda, porém estão condenados a permanecer nela. Com os homens isso não justifica, pois estão destinados a deixar Arda, então sua chama constituinte não pode ficar em Arda.
Repare que, nesse ponto de vista, a criação absoluta só é permitida a Eru. Mesmo os ainur só se limitariam a utilizar a Chama, e mesmo assim de modo limitado. Melkor, sedento por criação, procura a chama através do vazio. É um ato de ignorância, pois o vazio é a não-Existência, a Chama não poderia estar lá, apenas com Eru.
Um pensamento estranho que me ocorreu é que, segundo Anaximandro, o ar-pherion ocorria com a separação dos contrários. Do ar-pherion surgia o quente o frio, o árido e o úmido, etc, e tudo isso convergiria no fim dos tempos de volta para o ar-pherion. Anaximandro achava que a vida (ou melhor, consciência) surgia em uma dessas diversas transformações, porém, para Tolkien, a consciência é algo divino, que vem a partir de Eru. A consciência não deveria estar, assim, contida na Chama que fora enviada para o centro do vazio, já que quem a tomasse e manipulasse teria o poder (ao menos latente) de criar consciência, e este não era o desejo de Eru, que resguardava tal poder para si.
Mas como a Chama, sendo o ar-pherion, deveria conter sempre os opostos, era necessária uma primeira cisão da Chama, uma cisão entre consciência e inconsciência. Após essa cisão, a parte "inconsciente" do ar-pherion ficava destinada ao uso dos ainur e da criação do mundo, e a consciência ficava resguardado a Eru. E é aqui que pode entrar Tom Bombadil: ele seria a parte consciente do ar-pherion, sendo assim uma manifestação da Chama Imperecível.
É interessante lembrar que para Tolkien a questão do casamento e da dualidade masculino e feminino era algo “naturalmente sagrado” (vide spoiler). Quem não se casasse tinha “destinos estranhos” (Frodo, Legolas, Gimli, etc), ou mesmo Finwë, que casara duas vezes, encaixaria-se aqui. Então é natural e esperado que o ar-pherion consciente se dividisse em masculino e feminino, resultando em Tom e Fruta. A natureza feminina e masculina era algo, segundo Tolkien, imutável, natural e inerente a consciência, e sendo a cisão inicial do ar-pherion um acontecimento natural, seria também natural que a consciência, numa segunda cisão, assumisse esse aspecto (de dois seres, um masculino e outro feminino), e não permanecesse num aspecto assexuado, por exemplo.
† Os eldar sustentavam que, à parte dos casos de doença e da destruição de seus corpos eles podiam, no decorrer de seus anos, exercitar e aproveitar todos os variados talentos de sua raça, de habilidade ou de tradição, embora em ordem e graus diferentes. Com tais mudanças de "modo mental" ou inwisti, sua lámatyávë também podia mudar. Mas tais mudanças ou progressões eram na verdade vistas principalmente entre os néri, pois as nissi, ainda que alcançassem a maturidade mais cedo, permaneciam então mais estáveis e menos desejosas por mudanças. [De acordo com os eldar, a única "marca" de qualquer pessoa que não estava sujeita a mudança era a diferença de sexo. Pois isto eles acreditavam pertencer não somente ao corpo (hröa), mas também à mente (indo) igualmente: isto é, à pessoa como um todo. Esta pessoa ou indivíduo, eles freqüentemente chamavam essë (que é "nome"), mas ela também era chamada erdë, ou "singularidade". Aqueles que retornavam de Mandos, entretanto, após a morte de seu primeiro corpo, retornavam sempre ao mesmo nome e ao mesmo sexo como anteriormente]. Leis e Costumes dos Eldar
E daí que viria todo o poder de Tom, e também de Fruta: sendo a cisão do ar-pherion de toda a Arda Inicial, cada um teria, concentrado em si, uma quantidade de Chama correspondente a metade de toda a Arda "moldada". Também explicaria-se seu comportamento natural e ideal, já que o ar-pherion é, em última instância, a natureza.
Duvido que Tolkien tenha pensando em tudo isso, mas é uma teoria interessante.
(...). É claro que se eu tiro o ar-pherion de uma teoria atéia onde ele e só ele origina e subtende um universo cíclico, para colocá-lo numa teoria junto a um Deus onipotente num universo aparentemente não-cíclico, haverá adaptações. Mas essas adaptações, essas diferenças, são esperadas, não é demérito algum - nunca afirmara que a Chama é o ar-pherion, e sim algo parecido com este. É uma analogia.
(...) Para mim a criação no sentido mais íntimo é a Chama e não Eru, e os ainur só moldam essa criação (no caso da Chama enviada para o Vazio). Eru seria a vontade que mantêm (ou que ao menos origina externamente a si) a Chama da existência. E o seu pensamento é a força motora que move a Chama e constrói obras a partir dela (o mesmo que os ainur fazem em menor escala). Na verdade ambos confundem-se.
Ora, isso não contraria o fato de Eru criar a partir do Nada. No início* havia só Eru. A Chama fazia parte de Eru e era inconfundível a ele. Com a criação ele coloca "um pouco de chama" para fora de si (eis a criação) e depois dá forma a criação (como os ainur**). Em Eru a Chama é infinita - funciona como um poder criativo infinito. Na prática e na teoria tudo funciona como se Eru criasse tudo do Nada, afinal a Chama, antes da criação, é uma com ele, e continua uma com ele tal qual antes, embora dê matéria a criação (ela não é finita - pode perder mas continua infinita). Algo como o Espírito Santo na trindade (novamente, apenas uma analogia).
"A vontade de DEUS-PAI reflete-se no comando de DEUS-FILHO que por sua vez complementa-se na ação do DEUS-ESPÍRITO". [Wikipédia, artigo "Espírito Santo]
Quem age é, de fato, a Chama, quem muda é a Chama. A Vontade de Eru e seu Pensamento/Comando (assumindo que em Eru confunde-se com a Primeira e Segunda Pessoa da Trindade) originam a mudança.
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E quanto a "inspirar com a Chama", eu particularmente vejo isso como uma forma poética de dar existência, de tirar os fëar do mundo da mente de Eru para colocá-los fora de sua mente - seria algo como "dar a existência". Todo o Ainulindalë é escrito de forma poética e não deve ser levado ao pé da letra. Ora, se a inspiração é distinta a criação, quando (após a criação) ela ocorreu? E o que significaria?
Em 2008, havia escrito essa "teoria" acima sobre a matéria de Arda, basicamente conjecturando que, no trecho em que Eru envia a Chama Imperecível ao Vazio e com isso cria o mundo, estaria implícito que Eru teria posto no Vazio uma espécie de substância sem qualquer propriedade particular, similar ao aperion de Anaximandro de Mileto, e que dessa substância surgiriam, posteriormente, diversas propriedades da matéria.
Logo, eu [Eru] digo: Eä! Que essas coisas Existam! E mandarei para o meio do Vazio a Chama Imperecível; e ela estará no coração do Mundo, e o Mundo Existirá; e aqueles de vocês que quiserem, poderão descer e entrar nele. - E, de repente, os Ainur viram ao longe uma luz, como se fosse uma nuvem com um coração vivo de chamas; e souberam que não era apenas uma visão, mas Ilúvatar havia criado algo novo: Eä, o Mundo que É. (Ainulindalë , O Silmarillion)
No trecho acima o aperion estaria indiferenciado ou embutido no conceito de Chama, ainda que a Chama não fosse apenas mera matéria, mas também seria alguma espécie de divindade (o que fica claro, por exemplo, quando Gandalf diz que é servo do Fogo Secreto). Daí que também seria conveniente, portanto, uma comparação entre Chama Imperecível e o Espírito Santo.
A analogia com o aperion foi baseada sobretudo meramente por vieses pessoais (era um filósofo de que eu gostava bastante), somados, talvez, a trecho em que os ainur entram em Arda e encontram tudo "sem forma".
Mas quando os Valar entraram em Eä, a princípio ficaram assustados e desnorteados, pois era como se nada ainda estivesse feito daquilo que haviam contemplado na Visão; tudo estava a ponto de começar, ainda sem forma, e a escuridão era total. Pois a Grande Música não havia sido senão a expansão e o florescer do pensamento nas Mansões Eternas, sendo a Visão apenas um prenúncio; mas agora eles haviam entrado no início dos Tempos, e perceberam que o Mundo havia sido apenas prefigurado e prenunciado; e que eles deveriam concretizá-la. Assim teve início sua enorme labuta em espaços imensos e inexplorados, e em eras incontáveis e esquecidas, até que nas Profundezas do Tempo e no meio das vastas mansões de Eä, veio a surgir à hora e o lugar em que foi criada a habitação dos Filhos de Ilúvatar. E, nessa obra, a parte principal coube a Manwë, Aulë e Ulmo; mas Melkor também estava ali desde o início e interferia em tudo o que era feito, transformando-o, se conseguisse, de modo que satisfizesse seus próprios desejos e objetivos; e ele acendia enormes fogueiras.
Alguém poderia tentar comparar com o trecho bíblico...
No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra era sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. (Gênesis 1:1-2)
...mas repare que no trecho bíblico o mundo inicial já tem certa estrutura: há céu e terra, há abismo e há águas. Dessa forma, a "terra sem forma" bíblica parece algo menos radical do que a completa ausência de forma que consta em O Silmarillion e que consta na cosmologia de Anaximandro. Vale também citar o Ambarkanta de Tolkien, texto mais antigo, em que Terra também parece, como na Bíblia, ter já certa estrutura mínima quando os Valar chegam nela.[1][2]
Seja como for, deixei de lado essas ideias, por acreditar que a mera analogia "Chama Imperecível = Espírito Santo" explicava bem a maioria dos trechos e que, portanto, a analogia com o aperion não seria tão frutífera assim. Há um trecho bíblico inclusive que fala, com respeito a Deus, "porque nele vivemos, e nos movemos, e somos", o que poderia ajudar a justificar a Chama como uma certa presença divina que daria suporte ao mundo. Assim, o papel da Chama não precisaria ser necessariamente material, tornando o conceito de aperion (embora viável) dispensável para explicar a Chama como o "coração do Mundo".
Entretanto, em um punhado de textos de A Natureza da Terra Média (vide abaixo na aba de spoilers), Tolkien acaba estabelecendo, sim, algo bem similar ao aperion: uma substância sem qualquer propriedade de nome erma. A partir de erma, surgem os nassi (materiais), formados por únehtar (átomos), que mais tarde permitem o surgimento dos arkantiër (Padrões Maiores, as diferentes "espécies" de seres vivos, concebidas através de formas ideais e atemporais que eventualmente se fazem presentes na matéria, primeiramente por obra dos Valar, e a partir daí por reprodução biológica). E é previsto que esse processo se reverteria no final dos tempos: os arkantiër desapareceriam de toda matéria, em seguida os nassi, e tudo voltaria a ser meramente erma.
Diga-se de passagem, esta é uma ótima surpresa do livro, já que, de todos os detalhes que Tolkien se propunha a estabelecer, não havia, ainda, alguma espécie de filosofia da matéria ou de filosofia da natureza (por exemplo, não sabíamos até então se o mundo de Tolkien era formado por átomos)...
Carl Hostetter, o editor de A Natureza, vê não só nos arkantiër, mas na própria erma, uma influência da metafísica aristotélico-tomista. Mas não me parece ser o caso: nem Aristóteles acreditava numa substância primordial que teria existido no passado, e nem Tomás de Aquino, mas sim Agostinho.[3] Quer dizer, no cristianismo, a ideia de algo como a erma não parece bem estabelecida. Até porque, como disse, não é algo que transparece claramente no Gênesis.
Teria Tolkien sido influenciado por Agostinho nessa questão? Talvez. Mas penso que a influência maior seja a ciência moderna mesmo, até pela menção a átomos, como também a certo "fim dos tempos" em termos de complexidade material, o que lembra teorias como Big Bang e Big Crunch (matéria disforme no início e fim dos tempos), morte térmica do universo, etc. O que não é estranho já que sabemos que Tolkien tendia, em textos tardios, a criar maior consonância entre sua cosmologia ficcional e a ciência de sua época, para conferir maior realismo aos contos.
Isso posto, remeter a Anaximandro já não soa tão infrutífero, já que ele antecipou, com seu aperion, muitos conceitos que seriam consonantes com conceitos da física moderna, como energia, evolução cosmológica, evolução da vida, certa ciclicidade na medida que tudo parte e tudo retorna à forma indeterminada de aperion, etc. E tudo isso Tolkien acabou também abraçando, ao tentar adotar uma cosmogonia mais realista cientificamente (ainda que, na evolução da vida, só lance mão apenas de uma "pitada" científica).
Aliás, o conceito de aperion provavelmente é um precursor do conceito agostiniano de matéria sem forma no início dos tempos, isso passando por filósofos intermediários (influenciados por Anaximandro) um tanto quanto teístas como Anaxágoras e Platão, que fazem uma mente ou uma figura demiúrgica construir o mundo através da manipulação de uma matéria inicialmente sem forma, como também passando por neoplatônicos que influenciaram Agostinho. E, anteriormente a Anaximandro, poderíamos lembrar do Caos, deus primordial que dá origem a todos os demais deuses na cosmogonia grega de Hesíodo. Mas, ainda assim, a semelhança com Anaximandro é, arriscaria dizer, maior, porque ele é o mais próximo de uma visão cientificamente moderna que influenciou Tolkien nesses escritos. Por exemplo, só em Anaximandro há a previsão de que o aperion/erma voltará a seu estado mais simples em determinado momento no futuro, como Tolkien prevê. Só em Anaximandro a matéria é, no seu início, extremamente simples mas, ao mesmo tempo, contém em si mesma a potencialidade para a complexidade, através de "leis" físicas ao invés de imposição arbitrária vinda de fora (por meio de um ser pessoal que manipularia a matéria, inspirado por ideias imateriais).
Isso é, diferentemente dos seres vivos, cuja metafísica tolkienriana é tomista-aristotélica e um tanto quanto criacionista,(*) a metafísica da matéria inanimada parece um realismo/materialismo usual: a matéria meramente existe desde o começo dos tempos, com todas suas potencialidades. Quer dizer, por um lado, com respeito à vida, os Valar estabelecem "artisticamente," na matéria, os arkantiër (sendo que em certo sentido os arkantiër estariam no "mundo das ideias", inclusive todos eles refletiram um único Ermenië, "Grande Padrão", que proveria do próprio Tema de Eru). Por outro lado, com respeito à matéria em seus aspectos inanimados, incluindo seus eventuais materiais e átomos, não temos aqui uma criação dos Valar através de liberdade criativa proveniente de uma faculdade artística demiúrgica... mas sim a mera manipulação da matéria por parte dos Valar. Isso é, a matéria é conhecida e manipulada por eles de maneira similar a que elfos e homens também manejam a matéria: conhecendo, respeitando e explorando suas propriedades pré-estabelecidas, mas sem criar ou estabelecer (dentro do Tempo), eles próprios, essas propriedades, que só são conhecidas, majoritariamente, a posteriori (isso sem prejuízo do fato de que tal conhecimento venha a ser completo). Digo "dentro do Tempo" porque havia certa consonância entre a matéria e o propósito da matéria conforme prenunciado na canção dos Ainur, portanto Eru deve ter criado a erma de forma que ela já fosse palatável às contribuições dos Ainur segundo aquilo que foi cantado no Ainulindalë.
Em termos mais simples, os Ainur seriam os earth scientists do mundo de Tolkien: geofísicos, oceanográficos, meteorólogos, cientistas da atmosfera, etc. Seriam também os astrônomos. Mas Eru seria o físico e o químico. Inclusive isso é consonante com a surpresa de Ulmo com os fenômenos da chuva e da geada, fenômenos físicos relativamente simples, que são atribuídos à influência de Melkor sobre as águas (e ótima metáfora do fato de que da influência demoníaca Deus consegue tirar coisas inesperadamente boas). Também dá para remeter a biologia em seus aspectos essenciais (biologia molecular, celular, genética, etc.) diretamente a Eru e ao seu Ermenië, e os Valar seriam engenheiros biológicos (ou zoólogos, botânicos, etc.) vislumbrando e realizando seu Projeto - mas, justamente por terem apenas um vislumbre, acabariam tendo certa liberdade criativa "demiúrgica" ao estabelecer os arkantiër/"espécies", similar a certa liberdade possuída por engenheiros e artistas.
Os Valar tinham poder para dotar as coisas que projetavam com vida corpórea; mas não podiam criar coisas com mentes ou espíritos independentes: isto é, não podiam criar coisas de igual ordem, mas apenas as de ordem inferior. A verdade definitiva é que eles não chegavam a “criar” de fato nem mesmo a vida corpórea, a qual procedia de Eru. Mas tinham dado assistência ao desígnio geral de Eä e, separadamente, em diferentes graus e modos, à produção, a partir da erma (ou substância primordial), de coisas de muitos tipos. A ideia da vida e do crescimento veio de Eru, mas os Valar, sob a autoridade Dele, imaginaram as formas e feições das coisas viventes. Quando Eru deu ser a esse desígnio, de modo geral e particular, e ele se tornou Eä, desenrolando-se no Tempo, Ele pôs em marcha a vida e o crescimento, ou aqueles processos que, no devido tempo, levariam a isso. Mas, quando permitiu aos Valar que descessem e adentrassem o Tempo, para dar sequência, em Eä (ou na realidade), às coisas que haviam projetado em pensamento, então, quando vistos no Tempo, pareciam criar coisas as quais estavam vivas. De fato, considera-se que, estando eles próprios dentro do Tempo, experimentaram a criação como uma coisa nova, diferindo pouco, nessa experiência, salvo no grau de poder e arte, dos criadores ou artistas entre os Encarnados. Nem eles nem os Encarnados poderiam fazer coisas intrinsecamente novas; não poderiam “criar” à maneira de Eru, mas apenas fazer coisas a partir do que já existia, a erma, ou suas variações e combinações posteriores. (A Natureza da Terra-Média, capítulo "Poderes dos Valar")
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O “impulso primordial”, do qual o desdobramento total é o Grande Padrão (Erkantië), tendo vida contínua. Essa vida não terá a mesma extensão que o Conto de Arda; pois, tal como Arda começou com a Erma (“substância primordial”) e depois com os nassi (“materiais”), antes da entrada das coisas viventes, assim também, sem dúvida, o Grande Padrão terminará antes, deixando os nassi, e eles serão reduzidos à Erma, até que o Conto termine tal como começou. Porém, enquanto continua, o Erkantië é inquebrantável e incessante. Muitos pontos de seu crescimento podem cessar e não proceder adiante: isso se dá quando uma coisa vivente perece antes de ter produzido algum rebento ou sucessor. Mas o todo não cessará até que chegue o tempo no qual todas as coisas viventes que então ainda sobrevivem não venham mais a produzir rebentos viventes.
(...)
Pois está claro, naquele saber que recebemos dos Valar, que eles puseram em marcha o desenrolar de diversos padrões viventes em muitos pontos diferentes do Ainulindalë e, portanto, isso se repetiu em Eä. Dentro de Eä, temos, então, não um único Ermenië ou Grande Padrão, mas certo número de Padrões Maiores ou mais antigos (Arkantiër). (A Natureza da Terra-Média, capítulo "O Impulso Primordial")
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(...) Alguns dos mestres-do-saber afirmam que a substância de Arda (ou, de fato, de toda Eä) era, no princípio, uma só coisa, a erma; mas nunca, desde o princípio, permaneceu ela a mesma e igual, semelhante e equivalente, em todos os tempos e lugares. No princípio da criação, essa substância primordial, ou erma, se tornou variada e dividida em muitos materiais secundários, ou nassi, os quais têm dentro de si mesmos vários padrões, pelos quais diferem um do outro internamente, e externamente têm diferentes virtudes e efeitos. Até onde, portanto, os nassi separados mantêm seus padrões característicos por dentro, todas as frações do mesmo nassë são equivalentes e indistinguíveis e, com relação a formas mais elevadas, pode-se dizer que são “as mesmas”. Mas os Valar, através de quem ou por quem essas variações foram efetuadas como o primeiro passo da produção das riquezas de Eä, e que, portanto, têm pleno conhecimento dos nassi e de suas combinações, relatam que há minúsculas variações de padrão dentro de cada nassë. Elas são muito raras (e suas origens ou propósitos os Valar não revelaram); porém, pode acontecer assim que, ao comparar a quantidade de um nassë com outra quantidade igual do mesmo nassë, os que são sutis em engenho podem descobrir que uma das quantidades contém únehtar (as menores quantidades possíveis nas quais o padrão interior que o distingue de outros nassi é exibido) que variam um pouco em relação à norma. Ou ambas as quantidades podem conter as únehtar variantes, mas em proporções diferentes. Em tais casos, as duas quantidades não serão precisamente equivalentes; embora se possa considerar que a diferença entre elas é tão incalculavelmente pequena que suas virtudes enquanto materiais para a criação de incorporações de padrões viventes são indistinguíveis. (A Natureza da Terra-Média, nota 469 do capítulo "Reencarnação Élfica")
(*) Sobre a evolução biológica, aqui o editor Carl Hostetter também força um pouco a barra, dessa vez ao falar de "evolucionismo teísta" para um processo que é essencialmente criacionista...
Já aviso que esse post vai ser quilométrico, e pior: cheio de jargão filosófico escolástico do tipo mais maçante e hermético que existe, mas não tem jeito.
Interessante vocês estarem falando de Chama e do 'A Natureza da Terra-média', porque eu li, notei essa efervescência escolástica desses escritos tardios de Tolkien e fiz uns posts no Instagram. Vou trazê-los cá:
Tolkien muito louco no platonismo. E com uma pitada de física atomística.
Falando sério agora, se analisarmos bem os nassi, como padrões materiais (não apenas no sentido de participarem da materialidade 'erma' indivisa, sendo, portanto, materiais, mas como padrões de desenvolvimento da matéria terciária, os entes individuais) não são ideias platônicas. Não são eidos propriamente. Esse papel corresponde aos arkantier, padrões inteligíveis e divinos (provenientes de Eru), que dirigem o desenvolvimento da erma e sua especialização, nassi, em formas unas, substanciais. Assim, os arkantier são as formas platônicas, e os nassi, o componente material mais abstrato, uma espécie de forma material, em sentido aristotélico. Falando nele, isso é aristotelismo puro.
Para Aristóteles o ente, como coisa individual que existe pode ser substancial, não necessitando de nada para existir, ou acidental, como um atributo. Um ente substancial, ou substância, é um ser uno composto de matéria e forma, porém, diferente de Platão, a forma não é um padrão universal no qual a matéria participa, mas uma inerência substancial de uma essência própria em uma quantidade ou porção limitada de matéria. Devo estar falando muita besteira aqui, já que faz anos que parei de estudar isso, mas o que o texto de Tolkien parece indicar é que se trata mesmo de uma metafísica aristotélico-tomista a do legendarium. Trocando em miúdos, os nassi são como a matéria formal, organizada e estruturada, embora em um contexto mais geral e teleológico, e os arkantier, formas universais, já mais próximas das ideias platônicas. Ambos são formas, padrões de desenvolvimento da substância, mas os primeiros apresentam uma natureza de identidade própria e única da substância material, enquanto o último se refere à participação da substância em formas abstratas.
Mas existe um fator interessante aqui. Falarei mais no próximo post.
Eu fiz uma salada aqui porque pedi ajuda do Chat GPT, mas em Aristóteles não existe matéria formal. A matéria é o princípio de indeterminação do Ser, o seu aspecto ininteligível, a porção do Ser que não conseguimos distinguir entre uma massa, uma quantidade indefinida de coisas. O princípio de determinação da coisa, o que a determina e a torna inteligível, é a forma. Assim uma forma substancial é basicamente como chamamos uma substância integral que, para Aristóteles, era composta de matéria e forma, ou seja, uma massa mais ou menos determinada de concretude e brutalidade física, que se torna passível de apreensão pelo intelecto a partir de sua forma.
Por isso, bastaria dizer que o princípio de individuação é sim a matéria, como diz Aristóteles e será repetido por Santo Tomás de Aquino. Como assim? É que individuação e determinidade são coisas diferentes.
Vamos dar um exemplo:
Aragorn é um homem.
Aragorn, como todo ente substancial, é um composto de matéria e forma. A matéria é sua fisicalidade orgânica, material, os elementos de seu corpo que são tangíveis, interna e externamente. Sua forma, segundo a maioria dos escolásticos medievais, é a alma, é aquilo que o determina, distingue. Aragorn não é Frodo, nem Galadriel. A alma que vivifica seu corpo, lhe dá personalidade, ideias próprias, meios de expressão, trejeitos, memória, intelecto, entendimento, essa alma ou espírito é o que o torna Aragorn.
E homem? Homem não é um composto de matéria e forma, portanto, para Aristóteles, não é uma substância, uma união de matéria e forma. Isso é fácil de entender. Nenhum de nós vê uma entidade 'homem' andando por aí, nem jamais vimos. Eu não sei se esse homem se refere a Frodo ou Aragorn, ele não possui nada objetivo, materialmente falando, com o qual podemos ter uma relação física, material, sensorial. Não tocamos no ente abstrato 'homem', não lhe sentimos o cheiro, não falamos com ele, nem ninguém se lembra de tê-lo visto. Mas ninguém nega que exista. Ele não é Frodo nem Aragorn: é ambos e nenhum, porque o conceito de homem abarca toda a humanidade, qualquer ente individual concreto da raça humana, qualquer elemento substancial do gênero humano pertence a esse 'homem'. É um conceito, um universal.
Olhando por esse exemplo, fica mais claro entender que embora a forma determine para o nosso intelecto o que significa o conceito de homem, da mesma maneira que determina para nós que Aragorn é um ser substancial próprio que não é Frodo nem Galadriel, só a forma não nos dá a dimensão existencial, concreta, que só existe na substância. Por quê? Porque sem meus sentidos poderem discernir a voz, a pele, a aparência visual do ente em questão ele não é um indivíduo, é apenas uma ideia.
A questão paradoxal aqui é que nosso intelecto não possui a capacidade de individuar os entes, porque ele se direciona ao seu objeto próprio, que é a forma presente na substância. Ou seja, ainda que o conhecimento se inicie com a apreensão sensível da matéria especializada que ali compõe o ente substancial, esse conhecimento sensível, apreendido pelo intelecto agente, é retrabalhado (sense-data) em uma síntese perfeita, que é justamente o que chamamos 'forma'. Nesse momento, o objeto apreendido já não guarda qualquer semelhança com o objeto real, é um ente de razão que usamos inclusive para intuir sobre os universais.
Traduzindo: conhecendo Aragorn pessoalmente, formo uma imagem mental separada no intelecto, o enquadro no conceito universal de 'homem'. Se eu não conheço Aragorn, mas conheço o universal 'homem', basta que uma descrição dele que se aproxime a um conceito médio de 'homem' que a cópula já se faz naturalmente, pois nesse aspecto universal, a forma-Aragorn é convertível na forma universal 'homem'.
Em termos tolkienianos, nassi não é nenhuma 'forma material', mas simplesmente matéria. Mas não qualquer matéria, inerte, indiferenciada, mas aquela matéria específica, aquela quantidade determinada de matéria que compõe as substâncias. Ou seja, ele não está falando de forma, mas ao associar nassi a um princípio material específico que organiza o Ser e suas gradações no interior da substância, não é de matéria pura que ele está falando. Então, eu não errei tanto ao falar de 'matéria formal', é realmente uma matéria diferente, específica, mais formalizada e raptada do caos amorfo da matéria indiferenciada.
Já os arkantier, e nisso eu acertei, são universais no sentido aristotélico-tomista, ou seja, categorias universais de entendimento que utilizamos para agrupar, classificar, sistematizar as substâncias.
Esse é um glossário de termos e temas metafísicos no mesmo livro, 'A natureza da Terra-média', com umas explicações genéricas, mas razoavelmente boas.
Mas quero falar de outra coisa agora.
Por que Tolkien mudou o conceito aristotélico de de matéria formal no nassi para se tornar um elemento material mais geral, e de variância, fazendo referência inclusive a átomos? Sabemos que a partir do final dos anos 50, após a publicação do Senhor dos Anéis, ele parece ter iniciado um abandono gradual dos aspectos mais míticos em função de uma abordagem científica. Foi assim que substituiu, ao que parece, o nascimento mítico do Sol e da Lua, a partir de frutos das Árvores mortas, por uma ideia de coevidade dos astros à formação de Eä, o Mundo. Cientificamente acurado. Da mesma forma, procurou trabalhar ideias biológicas de crescimento, fertilidade, bem como demografia élficos, desde seu despertar em Cuivienen até a volta dos noldor para Beleriand, para tornar mais credível sua população. Outro motivo foi estender os anos das eras do mundo para dar uma vazão mais científica aos milênios de desenvolvimento dos hominídeos, humanos e élficos, como dita a boa ciência histórica natural e a paleontologia. Até mesmo circunstâncias geológicas, quando da discussão da forma de Ambar, o Mundo, como morada dos seres vivos, foram retrabalhadas, não ficando claro se a Terra nasceu mesmo plana e foi arredondada com a queda de Númenor, como consta do Akallabeth, ou se essa retirada de Aman dos Círculos do Mundo nunca alterou uma esfericidade que sempre existiu. Isso para não falar das transformações geológicas decorrentes das Guerras contra Utumno e da Ira, além de outras, mais primitivas, decorrentes das lutas dos Valar para corrigir as deformidades causadas por Melkor.
Esse parece ser o caso aqui, essa ideia mais desenvolvida em torno dos nassi como uma materialidade formal atuando como uma lei de desenvolvimento biológico e histórico lembra muito as tentativas de harmonizar o tomismo com as modernas teorias científicas da evolução.
Não tenha nada a acrescentar aqui, exceto que é realmente uma virada de chave. Tomista nenhum vai concordar com o atomismo, exceto alguns muito modernos. Como conciliar o atomismo com o tomismo? O tomista mais tradicional vai negar o atomismo se baseando na premissa segundo a qual eles não são realmente á-tomos, ou seja, indivisíveis, mas são infinitamente indivisíveis exatamente como postulava Aristóteles: a matéria é infinitamente indivisível.
Podemos enxergar os átomos como elementos constituintes da matéria geral, impessoal, amorfa e entender que as uniões dos átomos em moléculas perfariam uma união de forma e matéria no sentido de que a matéria atômica se torna especializada justamente nessa reunião molecular. Por mais que tenhamos contato intelectual com os conceitos de átomo e molécula, não possuímos uma experiência sensorial deles, de modo que não são matéria nem forma. O que seriam?
Será que não existe como transpor esse abismo entre os conceitos científicos modernos de átomos e moléculas e a metafísica aristotélica? Talvez, mas Tolkien, como muitos tomistas antes e depois, tentou.
A solução de Tolkien seria entender que as substâncias, os nassi, possuem um princípio interno de organização de Ser onde as camadas menores, e até as subatômicas, são pura matéria primordial e amorfa, com 0 grau de inteligibilidade se consideradas em si mesmas, mas quando esse princípio as organiza a partir de ordens gerais dadas de cima (ou seja, arkantier atualizam seu conceito na forma substancial), esses elementos materiais fundamentais (ou não) adquirem determinada especialização, uma matéria mais delimitada e definida, e que, reunida em moléculas, compõe junto com a forma substancial o ente individual concreto.
Isso parece forçar um pouco a barra, mas Tolkien parece assumir isso e combinar com um tipo de emanacionismo neoplatônico, afinal, os arkantier não são universais para ele puramente mentais. Pelo contrário, são princípios de organização formal do mundo, da Erma, de modo que se podemos entender os nassi como matéria, mas uma matéria especializada e reunida no ente substancial pela atualização formal, entre eles e os arkantier, há padrões mais e mais finos de organização formal do mundo, como as camadas de Ser de Plotino. Os Valar dispõe os arkantier, os arkantier dispõe os nassi, que dispõe camadas mais e mais destituídas de especialidade até a forma substancial, para nosso intelecto, se desvanecer em seus elementos materias constituintes, tão destituídos de inteligibilidade que precisamos de instrumentos como microscópios para poder discerni-los, e não poderíamos fazê-lo se especulativamente já não trouxéssemos conceitos de átomos e moléculas como organizadores desse conhecimento.
Uma outra forma de enxergar isso é ver os átomos como formas microscópicas da matéria, mas igualmente materiais, e suas formas de organização molecular igualmente materiais, por serem indisponíveis ao conhecimento comum, mas isso esbarraria no conceito de Providência metafísica de organização do Ser, tão caro a Tolkien.
Ainda que admitamos a primeira hipótese, no entanto, fica em aberto a questão de como a forma substancial se mantém inteligível com tantos níveis inferiores de organização metafísica. Pra mim, esse é um problema insolúvel que deixou Tolkien de cabelos em pé. No entanto, é possível que ele tenha resolvido essa questão apelando para a ideia de 'haeccitas' do Beato John Duns Scotus, um dos maiores pensadores da primeira escolástica ao lado do próprio Aquino e Guilherme de Ockham. Segundo essa ideia, a forma substancial, para além da forma como princípio de inteligibilidade e determinidade, possui uma identidade fundamental de Ser através de um princípio de organização interna existencial que não apenas faz o ente concordar consigo mesmo, como organiza seus vários modos de Ser, suas modalidades lógico-metafísicas e princípios de desenvolvimento.
Seria forçar a barra admitir uma influência scotista nessa metafísica tolkieniana, em uma quase traição ao tomismo tradicional? Segundo esse artigo, não.
Eu acho isso muito interessante, porque se admitirmos o conceito scotista de entes discerníveis de forma unívoca pelo intelecto e sua haeccitas, a própria evolução se torna plausível. É claro que tal pensamento nunca ocorreu a Scotus, mas se o próprio Aquino acaba sendo enfiado em justificativas teológico-científicas de maneira pouco usual, não vejo porque uma ideia tão elástica como a haeccitas não poderia servir justamente como esse princípio metafísico organizador residindo na substância mesma, no próprio ente, justificando sua adaptabilidade e mudanças não-substanciais diante de desafios á vida.
Continuando...
Certamente, a visão aristotélica, e tomista, não suportaria mais do que uma visão de geração espontânea pela natureza não só de sua metafísica, como dos meios científicos disponíveis. Mas seria necessário demolir essa metafísica e apostar naquelas filosofias mais modernas e que levam essas conquistas científicas em consideração? Essa é uma discussão antiga, mas não necessariamente. A ciência, conforme expandia seus métodos e o próprio método científico se destacava do que se considerava ciência antes da Idade moderna, dá uma liberdade e independência ao raciocínio filosófico. O problema é que essa independência não existia na época de Aristóteles, que era tão filósofo quanto físico e biólogo. O que fazer? A Igreja católica poderia, após sucessivas declarações de aderência incondicional ao tomismo, tê-lo rejeitado e assumido alguma dessas teologias modernas, sentimentais e esvaziadas da audácia de se tentar explicar racionalmente o mundo, mas humildes o bastante para se retirar do campo de considerações da razão, seja filosófica ou científica. Ela não o fez. Ela poderia ter rejeitado a ciência, como fez por muitos anos, em função de ideias pseudocientíficas de Design inteligente e criacionismo, como os evangélicos, mas não tomou esse caminho, ainda que tenha tergiversado por ele. Qual solução? A Igreja aderiu racionalmente ao conteúdo das pesquisas científicas, tendo inclusive colaborado em muitas descobertas, e manteve o tomismo através de um trabalho ora de separação de sua teologia da ciência moderna, ora através de uma adequação metafísica desses resultados científicos ao modelo epistemológico tomista.
Ora, isso já estava em franca operação na época da juventude de Tolkien, tanto pela adoção inapologética do Papa Leão XIII da filosofia de Tomás de Aquino como referencial na educação católica, quanto pelo chamado movimento de Oxford, que buscava restaurar o catolicismo britânico, tão abalado pela Reforma anglicana. Paralelamente a esse movimento de triunfalismo católico, de otimismo teológico, houveram tentativas, aproximações da teologia católica a uma consideração da evolução, em compatibilidade com a Revelação.
Não tenho o que dizer aqui, a possibilidade de adoção do scotismo por Tolkien nem me passava pela cabeça, mas isso é possível também, que Tolkien tenha aderido a uma visão tomista que se compatibilizava com o ideário evolucionista e científico-moderno. Mas é uma questão em aberto.
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