Não sei porque fanfics causam polêmica. Pra mim tanto faz se elas dizem que Frodo é gay e Sam é passivo. São só textos escritos por fãs, pra mim não têm valor algum.
No caso em questão o assunto deu "pano pra manga" pq as pessoas ficaram intrigadas e leram a história em particular com interesse e não porque houve alguma controvérsia em torno do conteúdo do fanfic.
Se eu entendi direito ,Snaga, não acho que vc estava realmente querendo dizer que fanfic "não tinha valor" num sentido pejorativo.Até porque ,verdade seja dita Snaga , o "germen" ( nas palavras do próprio JRRT )da mitologia de Tolkien foi o fanfic que Tolkien começou a escrever da história do Kullervo do Kalevala que acabou de ser publicado em Tolkien Studies 07.
Foi a gênese do Conto de Túrin Turambar. Lá o Tolkien procurou recontar a história original preenchendo inúmeras lacunas da versão compilada pelo Elias Lonrot onde ele mesmo( Lonrot) cometeu "N" liberdades mesclando personagens de baladas diferentes e, segundo consta, dando um copiar e colar de elementos nórdicos e colocando no contexto de épico finlandês ( ou seja, a rigor, Elias Lonrot, Homero e até o Mallory do La Mort D'Arthur são fanfiqueiros).
O próprio Sigurd e Gudrun do Tolkien não deixa de ser um Fanfic pq é uma elaboração pessoal de Tolkien em cima de material pré-existente em termos de plot, ambientação e caracterização de personagens.
Como vc pode ver aí na
Fanfiction.net tem sessões especiais pras mitologias nórdica,japonesa, egípcia e greco-romana e uma pra mitologias diversas no geral.
E, nessa condição de produto do trabalho de subcriadores, e obra ficcional que "imprime um
padrão pessoal em material pré-existente"* é óbvio que, ocasionalmente, a colisão de visões discrepantes trazida à baila no fanfic gerará controvérsias.
Pq a visão mostrada lá fará as pessoas pensarem a respeito do conteúdo da obra "original", revendo conceitos e questionando convicções ou preconceitos há muito arraigados.
*Tolkien disse:
nenhum de nós pode inventar ou "criar" em um vácuo, nós podemos apenas reconstruir e talvez imprimir um padrão pessoal em material "ancestral"
O que , aliás, bate com o comentário feito por Diane Wynne Jones a respeito de suas palestras onde , ao que parece, Tolkien falou como uma história pode virar outra com uma torcida aqui e outra ali...
He would say the most marvelous things about the way you take a very basic plot and twitch it here and twitch it there—and it becomes a completely different plot
O próprio Tolkien tnha inúmeras objeções contra as decisões "fanfiqueiras" de Richard Wagner com relação à caracterização de personagens do material dos mitos nórdicos onde, basicamente, ele mesmo dava chilique por ver Wagner fazer não o que ele( Tolkien) dizia ser o certo mas o que ele próprio fazia. Tolkien "cometeu" N decisões censuráveis com o material em um grau tão grande ou maior do que o próprio Wagner.
Os motivos pra que Fanfics sejam controversos são exatamente os mesmos: o efeito que as artes narrativas exercem na cabeça das pessoas como "propaganda" ou formadoras de opiniões
Então, a verdade é que Fanfics, no fim, têm valor. E por quê? Pq universos subcriados concebidos com o tipo de metodologia de Tolkien, preocupados com consistência interna, onde Tolkien "descobria" e não "inventava" as estórias( terminologia do próprio biógrafo de Tolkien em cima do que Tolkien falou a respeito do processo), seguem "regras" que o autor estipulou e essas regras, quando aplicadas com metodologia similar à dele, acabam lançando luz sobre o trabalho do autor, justamente pq se debruçam em cima de questões não resolvidas que , frequentemente,
acabam antecipando as soluções que seriam
ou que foram, efetivamente, dadas pelo autor décadas antes dos textos comprovando os "fatos" aparecerem.
Eu mesmo já inventei soluções "fanfiqueiras" pra lacunas do Legendarium ( a paixão não correspondida de Melkor por Varda confirmada em HoME X, a natureza de Escuridão Primordial de Ungoliant corroborada em HoME I) que , mais tarde, ao ler HoME, descobri estarem muito perto da "verdade" dos fatos na realidade ficcional.
Mas especulação por especulação, prefiro as minhas próprias, prefiro eu próprio deduzir o que Tolkien quis ou não dizer em cada espaço aberto que ele deixou, baseando-me em tudo o que sei sobre a obra em si.
Bom aí a coisa nem sempre é tão preto-no-branco. Em primeiro lugar que, em muitos casos, autoras de fanfics como
Ithilwen e
Tyellas têm acesso a informações das quais muitos leitores carecem na hora de fazerem as próprias especulações. Vc mesmo já deixou implícito aqui no fórum que não dá conta de ler os livros que não estão disponíveis em português.
Inglês não me ajuda em nada e eu naõ estou com as minhas cartas aqui pra poder ver em português.
Elas citam as fontes pra trocentos dos caminhos e opções tomadas nos fanfics , inclusive, decisões tomadas entre formas variantes em que não há "certo ou errado" pq envolvem versões diferentes dos mitos( tipo se Fingon era casado ou solteiro, se Celebrimbor era ou não mais íntimo de Galadriel etc.
Existe uma vantagem enorme em se ler uma fanfiqueira que leu e assimilou os HoME , as Cartas, a biografia e escreveu ensaios premiados sobre a sexualidade dos elfos e a natureza dos Orcs do que ensaios redigidos por quem só leu o SdA e o Hobbit.
E, garanto, é muito mais fácil assimilar certos tipos de informações
no contexto de uma história ( tipo os nomes alternativos dos príncipes dos Noldor, os nomes "reais" originais de Aman, bem como a cor dos seus cabelos e aparência física) do que sob a forma de ensaios escritos pelo próprio Tolkien cheios de notas de rodapé(tipo Shibboleth de Fëanor ou Quendi e Eldar) que muita gente gosta de fingir que leu quando , na verdade, passam por cima de informações absolutamente essenciais pra entender o conteúdo dos textos.
Isso é especialmente verdadeiro em casos de leitores que não têm familiaridade suficiente com o inglês mas não querem admitir ( acontece muito em certos setores do fandom brasileiro) e/ou com leitores em inglês mesmo que , frequentemente têm a maior preguiça e má vontade com os textos não-narrativos de Tolkien.
Autoras como Tyellas e Ithilwen leram passagens dos HoME, em alguns casos, com mais acuidade do que muito estudioso com PHD escrevendo sobre a matéria e , até mesmo, do que o próprio Christopher Tolkien que, às vezes, meteu os pés pelas mãos na hora de avaliar a evidência ou apresentá-la pro leitor.
O mesmo Christopher que , aliás, reconhece que, em termos de cânon, estritamente falando, ele
escreveu um fanfic no meio do Silmarillion tal como foi publicado quando redigiu o texto da Ruína de Doriath que foi plotado por Guy Gavriel Kay, futuro escritor de fantasia que descascou junto com ele o tremendo abacaxi de determinar como tinha se dado a queda do Reino de Melian e Thingol.
No caso da Dagor Dagorath , por exemplo, foi uma( com o perdão da palavra)
tremenda cagada do CT ter correlacionado o texto do poema do Contos Inacabados que citou a Dagor Dagorath com a Segunda Profecia de Mandos de HoMEs IV e V ( dando a falsa impressão pros leitores de que ambos os "eventos" são a mesma coisa) mas ter ficado completamente silente a respeito da pertinência pro assunto do texto de Mitos Transformados de HoME X onde JRRT fez alusões aos acontecimentos proféticos aludidos no Unfinished Tales, inclusive, ao papel desempenhando por Manwë como peça central no conflito , elemento totalmente ausente das versões na Segunda Profecia.
Outra coisa: em uma obra literária onde vc tem , inclusive, versões poéticas "canônicas", em termos de inserção no texto trabalhado pelo autor ( tipo Morgoth sem pés e acorrentado no Vazio) mas totalmente anti-canônicas , inverossímeis e, claramente, adulteradas no contexto da realidade ficcional (onde a verdade é o que Tolkien contou em Mitos Transformados, Morgoth descorporado banido pro espaço) o limite entre o que é ( ou pode ser ) fato ou não é muito tênue e, francamente, já vi muito fanfic com mais insight e percepção sobre coisas do cânon e do texto literário do que em trocentos ensaios "sérios" escritos sobre a Terra-Média.
O ensaio do Hargrove sobre o Tom Bombadil( onde ele deduziu que ele é Aulë e Goldberry é Yavanna) é mais "ficção" do que qualquer cena de perversão entre a forma sedutora de Sauron e algum elfo de Eregion no fanfic da Tyellas.
O caso mesmo das asas da Elwing em inglês acabou sendo melhor analisado num fanfic onde o autor sacou melhor as consequências das omissões e modificações do Christopher do que qualquer texto até hoje existente em inglês a respeito da matéria.
A conclusão que as pessoas estão tendo hoje em dia é que
Elwing criou um tipo de asa delta emplumada em Valinor e planava pra se encontrar com Eärendil embora a idéia de asas reais "mágicas" polimórficas, similares às guelras mágicas do Harry Potter no Cálice de Fogo não seja de se descartar também. Se o Beorn podia virar urso, por que não?
Ships rode at anchor along the quays of the harbour - sleek fish-hunters and swift kite-wings and the great swan-ships and the little speedy skiffs that plied the shore. High against the bright sky, men and women rode the wind on the wings that Elwing herself had devised long ago, back to the City or out to the scattered villages along the coast.
Footnotes
(3) Hellevantari is the invented name for the invented airship-pilots of Valinor. From hellë - "sky" and vanta- "walk". Literally, "skywalkers". Many but not all of them are Vanyar.
I assumed that if the Valinoreans had artificial wings, which they canonically did, after Elwing invented them, they could have airships too.
Então, qualquer que seja a opinião a respeito do assunto da ética ou "legalidade" do fanfic, tema que é controverso, a verdade mesmo é que fanfic tem, sim, valor, nem que seja pela sua qualidade literária intrínseca( extremamente variável, claro), mas, falando do ponto de vista de quem avalia o grau médio de acuidade e percepção de artistas x críticos, me parece que bons fanfiqueiros são , no geral,melhores do que suas contrapartes analistas literários numa determinada época, antecipando suas descobertas e deduções com (às vezes) décadas de vantagem, pq Tolkien, no fim, não é só uma questão de catalogação de fatos mas de extrapolação e imaginação.
Foi assim mesmo que ele começou a sua obra, imaginando em cima de material pré-existente. E é essa imaginação que é o que falta pra muito crítico e leitor por aí.
E
o próprio Tolkien disse que queria que a mitologia dele tivesse certos contos" só esboçados no esquema geral" das coisas para que "outras mãos munidas de tinta e drama" completassem a "árvore" da mitologia dele ( vide o conto Folha de Niggle pra que a analogia fique mais clara). Ele queria que as pessoas abordassem a mitologia dele como co-criadoras pq é só assim que ela atingiria o status de interpessoalidade grande o bastante pra se tornar "uma mitologia pra Inglaterra".
Eu delinearia alguns dos grandes contos na sua plenitude, e deixaria muitos apenas situados no esquema, apenas esboçados. Os ciclos deveriam ligar-se a um todo majestoso, e ainda assim deixar espaço para outras mentes e mãos, munidas de tinta, música, drama. Absurdo.