Emboscada dos Derrotados.
VALE DE UDUN, MORDOR, 04-05 de Agosto, 3434 S.E.
Erdëmo Tauron.
Após a difícil tomada do Morannon, a companhia que eu acompanhava havia recebido um dia de descanso e os mais sinceros cumprimentos de Gil-galad e Elendil por terem suportado até o fim todo o horror da linha de frente. Enquanto aqueles pouco mais de 200 soldados tentavam descansar naquela terra desolada e devastada, a última companhia passava por eles em direção à Torre de Sauron. Essa última companhia era encarregada de mover os suprimentos e também as imensas armas de sítio com as quais os Aliados haviam derrubado o Portão Negro e que agora estavam a caminho de Barad-dûr.
A visão que eu tinha do alto de uma pilha de escombros era a passagem que seguia logo após o Morannon e levava ao Vale de Udun, logo mais adiante haviam duas elevações imponentes, uma era a Montanha da Perdição e a outra Barad-dûr. Porém, o que mais me chamou a atenção não foi a Montanha que vomitava uma nuvem negra e pestilenta em direção ao céu e nem a imponente morada do Senhor do Escuro, mas sim a estreita passagem que separava o Vale de Udun do Morgai. Não era uma passagem criada pela obra de Sauron, mas sim esporões das Ered Lithui na formação da Boca Ferrada; não eram muito altos, mas sua presença ali significava que um exército que por ali passasse - sendo defensor ou invasor - teria que formar uma fila de, no máximo, quatro soldados. Ótima oportunidade para se emboscar do alto os que passavam por ela, como eu viria a presenciar em breve.
Os que receberam a folga estavam tentando recuperar forças para mais uma vez enfrentarem as hordas de Orcs, alguns dormiam um sono preocupado, povoado de imagens horrendas, outros refaziam curativos nos ferimentos recém-abertos. Eu terminava de organizar os relatos do dia anterior quando alguém gritou um alarme pela metade, antes de cair de seu posto atravessado por flechas de Orcs; no instante seguinte nossa posição se viu sob uma chuva de flechas negras, pegando a maioria da nossa companhia desprevenida. A maioria dos que dormiam foram mortos pelas flechas, alguns ainda conseguiram se proteger com seus escudos ao ouvirem o grito de seus companheiros.
De repente, a visão do estreito que separava o Vale de Udun do Morgai me veio à mente e a certeza de que as máquinas de cerco e suprimentos ainda não haviam saído daquela armadilha me invadiu com uma clareza dolorosa. Dos 200 soldados que estavam em repouso, apenas metade conseguiu sobreviver e se colocar em prontidão para um contra ataque, mesmo que fosse para se manterem vivos naquela posição. Dentre eles haviam uns vinte Elfos de Lothlórien com seus poderosos arcos e, assim que a cobertura foi estabelecida, começou a bela e terrível melodia ritmada de suas cordas; cada flecha disparada encontrava um alvo e o eliminava. Como o principal assalto do dia anterior havia sido feito com espadas e lanças, as flechas pareciam não acabar mais, porém, sabíamos que não conseguiríamos suportar os Orcs por muito tempo se não conseguíssemos nos agrupar com a retaguarda que, a julgar pelo barulho distante, já estava sob ataque.
Os Elfos arqueiros eliminaram o maior número de Orcs arqueiros que foi possível e em uma formação cerrada com os mais feridos no centro, nossa reduzida companhia se colocou em movimento. Era difícil caminhar em ordem: Orcs ainda disparavam flechas em nossa direção, mesmo que acabassem por acertar seus próprios combatentes; o terreno acidentado, os escombros do Morannon, os restos dos projéteis lançados pelas nossas armas de sítio e os corpos recém-abatidos faziam com que cada passo fosse desequilibrado. Os Orcs estavam tão próximos que, além de suas lanças e espadas, também era possível sentir seu fortíssimo odor . Homens e Elfos se revezavam nas extremidades da nossa cada vez mais enfraquecida formação, enquanto avançávamos a duras penas. Quando o barulho da retaguarda se defendendo do ataque ficou maior apenas tivemos tempo de pensar em uma louca estratégia para quebrar o cerco e nos juntar a eles: Os arqueiros teriam proteção dos demais pra dispararem quantas flechas fossem possíveis, criando uma brecha na linha de Orcs. Assim que a manobra tivesse surtido efeito, espadas seriam sacadas e uma louca carga seria lançada para que fosse possível nos juntarmos ao que sobrou da retaguarda.
No momento em que a formação se abriu e os arcos retomaram sua canção, consegui vislumbrar a devastação que aquele assalto havia causado. As equipes que operavam as máquinas de sítio haviam sido dizimadas e boa parte dos suprimentos haviam sido abandonados enquanto os Aliados buscavam uma formação para se defender. Ainda estava absorto pela brutalidade do assalto quando alguém me cutucou e disse para correr como se o próprio Morgoth estivesse vindo atrás de mim. No momento seguinte lembro-me de estar correndo o mais depressa possível que as circunstâncias me permitiram, o terreno ainda era acidentado, mas a quantidade de corpos espalhados pelo caminho era infinitamente maior. Um Homem e um Elfo que iam a minha frente tombaram ao se atracarem com a última linha de Orcs e proporcionaram uma pequena abertura por onde eu me lancei e logo em seguida o que restou de nossa companhia passou por ela, conseguindo finalmente se juntar à retaguarda.
Logo após a nossa inesperada manobra, os Orcs despejaram uma infinidade de flechas em nossa formação. Eu havia me abrigado com outros cinco soldados ao lado de uma das máquinas de sítio e, usando os escudos como abrigo complementar ficamos observando as flechas vitimarem tanto aliados quanto os Orcs que estavam mais avançados. Havia ficado claro que a intenção era destruir as armas de sítio e os suprimentos a todo custo. A selvageria do ataque dos Orcs parecia não ter fim; assim que as flechas cessaram, a linha de frente avançou e, não fosse pela rápida ação dos nossos arqueiros, teriam tomado muito do nosso pouco terreno. E novamente tivemos o encontro das duas forças, com escudos, lanças e espadas.
Aquela cena se estendeu por algumas horas e já estávamos prontos para sermos dizimados em um último e devastador ataque quando uma corneta soou límpida ao longe e uma chuva de flechas com belas plumas caiu sobre os Orcs e logo, outro toque de corneta, comandando uma carga soou, e toda uma companhia de Homens, Elfos e Anões varreu o flanco e retaguarda dos Orcs em pouco mais de meia hora de combate.
A vitória dos Orcs acabou, através da habilidade dos capitães e das qualidades dos soldados Aliados, se transformando em derrota. A força dos Orcs incumbida de impedir que os Aliados atravessassem o estreito para dentro do Vale de Udun não estava preparada para suportar a mesma selvageria e agressividade por parte dos Aliados.
Todavia, essa agressividade não pôde fazer nada pelos 180 soldados mortos na emboscada Orc, desde o começo do ataque no Morannon até o final no centro do Vale de Udun. Pouco pôde ser feito em benefício dos 20 que sobreviveram, alguns gravemente feridos que viriam a deixar esse mundo pouco tempo depois nas tendas de atendimento. Esse era o saldo final da tomada do Morannon: menos de 15 sobreviventes de uma companhia de mais de 300 soldados que haviam partido de Gondor. Edain e Eldar que eu havia aprendido a respeitar e admirar por seus feitos por mais de três anos; companheirismo de mortes e misérias que acabaram por se tornar parte da minha essência, uma presença que não pode ser obliterada.
Espero que o final dessa guerra seja um tremendo alívio, porém sem muito júbilo. No regozijo dos sobreviventes pode parecer fácil para esquecermos os mortos. Todavia existem muitos dos que estão vivos que carregarão para sempre, gravadas em suas memórias, as visões de Homens e Elfos - e Orcs também - mutilados e desfigurados espalhados pelos campos de batalha.
Soldados mortos como se fossem produzidos aos montes, mês após mês e ano após ano; Soldados mortos no inverno e soldados mortos no verão; Soldados mortos em tal familiar promiscuidade que acabam por se tornar monótonos; Soldados mortos em uma infinita monstruosidade que você quase chega a odiá-los por algum motivo.
Esses são sentimentos que os que não tomaram parte dessa Guerra nem precisem tentar entender. Para eles, os mortos são apenas colunas de figuras distantes, ou mesmo um parente ou conhecido próximo que foi para longe e nunca mais voltou. Não tiveram que vê-los grotescamente deitados e mutilados nos campos de batalha em frente ao Morannon ou espalhados pelo Vale de Udun.
Nós os vimos, os vimos as centenas de milhares. Essa é a marcante diferença...