Bruce Torres
Let's be alone together.
De como Cervantes e Shakespeare escreveram o manual de literatura moderna
19 abril 2016, 4:19 pm
Por Salman Rushdie
Texto originalmente publicado na New Statesman. Tradução de Carlos Alberto Bárbaro.
Ao celebrarmos o quadricentésimo aniversário das mortes de William Shakespeare e Miguel de Cervantes Saavedra, talvez valha observar que, embora seja geralmente aceito que esses dois gigantes morreram na mesma data, a 23 de abril de 1616, isso não aconteceu de fato no mesmo dia. Em 1616, a Espanha passara a usar o calendário gregoriano, enquanto a Inglaterra continuava com o juliano, portanto, onze dias atrás. (A Inglaterra ainda se aferraria ao antigo sistema juliano de datação até 1752, e quando finalmente se deu a troca, houve levantes e, conta-se, turbas gritando “Devolvam nossos onze dias!” nas ruas.) É de supor que a coincidência das datas e a diferença dos calendários teria encantado as sensibilidades eruditas e lúdicas de ambos os pais da moderna literatura.
Desconhecemos se chegaram a tomar conhecimento da existência um do outro, mas tinham muito em comum, a começar bem ali, na zona do “desconhecimento”, visto os dois serem homens envoltos em mistério; há anos em que não se encontra registro algum deles e, ainda mais significativo, documentos desaparecidos. Nenhum deles nos legou material pessoal em quantidade suficiente. Quase nada em forma de cartas, diários de trabalho ou rascunhos rejeitados, apenas suas colossais obras completas. “O resto é silêncio.” Não surpreende, assim, que tenham se tornado presas para todo tipo de teorias energúmenas que buscam estabelecer sua autoria.
Uma busca rápida na internet, por exemplo, “revela” que Francis Bacon não só escreveu as obras de Shakespeare, como também o Dom Quixote. (Minha teoria louca favorita sobre Shakespeare é a de que suas peças não foram escritas por ele, mas por outra pessoa com o mesmo nome.) E, claro, Cervantes teve sua autoria contestada no decurso mesmo de sua vida, quando alguém com o pseudônimo de Alonso Fernández de Avellaneda, de quem também não se sabe a verdadeira identidade, publicou uma falsa continuação do Dom Quixote, obrigando Cervantes a escrever o verdadeiro Livro II, cujos personagens têm ciência da existência do plagiador Avellaneda, desprezando-o absolutamente por isso.
É quase certo que Cervantes e Shakespeare jamais se encontraram, mas quanto mais se examina as páginas que os dois deixaram para trás, mais ecos de um no outro se ouve. O primeiro deles, e no que me diz respeito à ideia compartilhada mais preciosa, é a crença de que uma obra literária não tem que ser particularmente cômica, trágica, romântica ou política, mas sim que, se concebida apropriadamente, ser todas essas coisas ao mesmo tempo.
Basta ver as cenas de abertura de Hamlet. A cena 1 do ato 1 é uma história de fantasmas. “E então, isso tudo é só mera fantasia?”, pergunta Bernardo a Horácio, e é claro que a peça é muito mais que aquilo. A cena 2 do ato 1 insere a intriga na corte de Elsinore: o príncipe erudito e furioso, sua mãe recém-viúva prometida em casamento ao tio (“Ó pressa ignóbil, se jogar/Com tanta rapidez no leito incestuoso!”). Ato 1, cena 3, e eis Ofélia, contando ao dúbio pai, Polônio, o começo do que irá ser uma triste história de amor: “Senhor, ele tem feito ultimamente ofertas/Mostrando sua afeição por mim.” Ato 1, cena 4, voltamos à história de fantasmas e “há algo de podre no Estado da Dinamarca”.
À medida que a peça avança, ela vai se metamorfoseando, tornando-se, alternadamente, uma história de suicídio, de assassinato, de conspiração política e de uma trágica vingança. Tem seus momentos cômicos e uma peça dentro da peça. Contém ainda exemplos da mais elevada poesia jamais escrita em inglês, terminando em melodramáticas poças de sangue.
Foi a isso que chegamos após a herança do Bardo: ao conhecimento de que uma obra pode ser tudo a um só tempo. A tradição francesa, mais rígida, separa tragédia (Racine) e comédia (Molière). Shakespeare mistura tudo, e assim, graças a ele, nós também.
Em célebre ensaio, Milan Kundera sugere uma dupla paternidade para a forma romance: aClarissa, de Samuel Richardson, e o Tristram Shandy, de Laurence Sterne; entretanto, essas duas volumosas e enciclopédicas obras de ficção revelam a influência de Cervantes. O tio Toby e o cabo Trim de Sterne são abertamente moldados no Sancho Pança doQuixote, e o realismo de Richardson é enormemente tributário do desmascaramento empreendido por Cervantes da tola tradição literária medieval cujas ilusões mantêm Dom Quixote agrilhoado. Na obra-prima de Cervantes, à semelhança do que ocorre na obra de Shakespeare, baixezas coexistem com nobreza, pathos e emoção com obscenidades e escabrosidades, culminando no momento infinitamente emotivo em que o mundo real se impõe e o Cavaleiro da Triste Figura reconhece que tem sido um tolo, um velho louco, “pois águas passadas não movem moinhos”.
São dois escritores conscientes do que fazem, modernos de um jeito que a maioria dos mestres modernos reconheceria; um, criando peças de teatro que são altamente conscientes de sua teatralidade, de estarem sendo encenadas; o outro, criando uma ficção que é agudamente consciente de sua natureza ficcional, ao ponto mesmo de inventar um narrador imaginário, Cide Hamete Benengeli — um narrador, curiosamente, com antepassados árabes.
E os dois têm também a mesma consideração, uma adesão, de fato, pelos marginais como pelos ideais elevados; a sua galeria de patifes, prostitutas, punguistas e bêbados sentir-se-iam em casa nas tavernas um do outro. É esse aspecto terreno que revela serem os dois realistas no maior sentido, mesmo quando estão posando de fantasistas, e dessa forma, uma vez mais, nós, os que viemos depois, podemos aprender a partir deles que a magia não tem sentido senão quando a serviço do realismo — terá havido algum mágico mais realista que Próspero? — e que o realismo pode se beneficiar de uma dose saudável do fabulista. Por fim, a despeito de ambos empregarem tropos originários de contos populares, do mito e da fábula, eles se recusam a moralizar, e é aí, acima de tudo, que são mais modernos que os muitos que se seguiram a eles. Eles não nos dizem o que pensar ou o que sentir, mas nos mostram como fazê-lo.
Dos dois, é Cervantes o homem de ação, lutando em batalhas, sendo gravemente ferido, perdendo o uso de sua mão esquerda, sendo escravizado por corsários argelinos durante cinco anos até sua família conseguir levantar o dinheiro para pagar por seu resgate. A experiência de Shakespeare foi desprovida desse lances dramáticos; apesar disso, dos dois, ele parece ter sido o escritor com interesse maior na guerra e em seus soldados. Otelo, Macbeth, Lear são todas histórias de homens em guerra (guerra interior, por certo, mas também nos campos de batalha). Cervantes fez uso de suas dolorosas experiências, por exemplo, no conto do escravo, no Quixote, e em um par de peças teatrais, mas a batalha em que Dom Quixote se engaja é — para empregar termos modernos — absurda e existencial antes que “real”. Estranhamente, coube ao guerreiro espanhol escrever sobre a cômica futilidade de ir à guerra e criar a poderosa figura icônica do guerreiro como tolo (aqui logo vêm à mente o Heller de Ardil-22 ou o Vonnegut de Matadouro 5, somente para citar as mais recentes explorações do tema), enquanto a imaginação do poeta e dramaturgo inglês mergulhou de cabeça (como Tolstói e Mailer) na guerra.
Em suas diferenças, eles encarnam oposições extremamente contemporâneas, do mesmo modo que, em suas similaridades, eles concordam em muito do que ainda hoje é útil a seus herdeiros.
Salman Rushdie nasceu em Bombaim, na Índia, em 1947. Em 1968 formou-se em história no King’s College, em Cambridge. Depois de uma breve carreira como ator, passou a dedicar-se à literatura em 1971. Seu romance Os filhos da meia-noite ganhou o prestigioso Booker Prize (1981), o Booker of Bookers (1993) e o Best of the Booker (2008). Já Os versos satânicos (1988) valeu-lhe o Whitbread Prize e uma sentença de morte, promulgada pelo aiatolá Khomeini. Seu livro mais recente, Dois anos, oito meses e 28 noites, foi publicado no Brasil agora em abril.
Fonte: http://www.blogdacompanhia.com.br/2...re-escreveram-o-moderno-manual-de-literatura/
19 abril 2016, 4:19 pm
Por Salman Rushdie
Texto originalmente publicado na New Statesman. Tradução de Carlos Alberto Bárbaro.
Ao celebrarmos o quadricentésimo aniversário das mortes de William Shakespeare e Miguel de Cervantes Saavedra, talvez valha observar que, embora seja geralmente aceito que esses dois gigantes morreram na mesma data, a 23 de abril de 1616, isso não aconteceu de fato no mesmo dia. Em 1616, a Espanha passara a usar o calendário gregoriano, enquanto a Inglaterra continuava com o juliano, portanto, onze dias atrás. (A Inglaterra ainda se aferraria ao antigo sistema juliano de datação até 1752, e quando finalmente se deu a troca, houve levantes e, conta-se, turbas gritando “Devolvam nossos onze dias!” nas ruas.) É de supor que a coincidência das datas e a diferença dos calendários teria encantado as sensibilidades eruditas e lúdicas de ambos os pais da moderna literatura.
Desconhecemos se chegaram a tomar conhecimento da existência um do outro, mas tinham muito em comum, a começar bem ali, na zona do “desconhecimento”, visto os dois serem homens envoltos em mistério; há anos em que não se encontra registro algum deles e, ainda mais significativo, documentos desaparecidos. Nenhum deles nos legou material pessoal em quantidade suficiente. Quase nada em forma de cartas, diários de trabalho ou rascunhos rejeitados, apenas suas colossais obras completas. “O resto é silêncio.” Não surpreende, assim, que tenham se tornado presas para todo tipo de teorias energúmenas que buscam estabelecer sua autoria.
Uma busca rápida na internet, por exemplo, “revela” que Francis Bacon não só escreveu as obras de Shakespeare, como também o Dom Quixote. (Minha teoria louca favorita sobre Shakespeare é a de que suas peças não foram escritas por ele, mas por outra pessoa com o mesmo nome.) E, claro, Cervantes teve sua autoria contestada no decurso mesmo de sua vida, quando alguém com o pseudônimo de Alonso Fernández de Avellaneda, de quem também não se sabe a verdadeira identidade, publicou uma falsa continuação do Dom Quixote, obrigando Cervantes a escrever o verdadeiro Livro II, cujos personagens têm ciência da existência do plagiador Avellaneda, desprezando-o absolutamente por isso.
É quase certo que Cervantes e Shakespeare jamais se encontraram, mas quanto mais se examina as páginas que os dois deixaram para trás, mais ecos de um no outro se ouve. O primeiro deles, e no que me diz respeito à ideia compartilhada mais preciosa, é a crença de que uma obra literária não tem que ser particularmente cômica, trágica, romântica ou política, mas sim que, se concebida apropriadamente, ser todas essas coisas ao mesmo tempo.
Basta ver as cenas de abertura de Hamlet. A cena 1 do ato 1 é uma história de fantasmas. “E então, isso tudo é só mera fantasia?”, pergunta Bernardo a Horácio, e é claro que a peça é muito mais que aquilo. A cena 2 do ato 1 insere a intriga na corte de Elsinore: o príncipe erudito e furioso, sua mãe recém-viúva prometida em casamento ao tio (“Ó pressa ignóbil, se jogar/Com tanta rapidez no leito incestuoso!”). Ato 1, cena 3, e eis Ofélia, contando ao dúbio pai, Polônio, o começo do que irá ser uma triste história de amor: “Senhor, ele tem feito ultimamente ofertas/Mostrando sua afeição por mim.” Ato 1, cena 4, voltamos à história de fantasmas e “há algo de podre no Estado da Dinamarca”.
À medida que a peça avança, ela vai se metamorfoseando, tornando-se, alternadamente, uma história de suicídio, de assassinato, de conspiração política e de uma trágica vingança. Tem seus momentos cômicos e uma peça dentro da peça. Contém ainda exemplos da mais elevada poesia jamais escrita em inglês, terminando em melodramáticas poças de sangue.
Foi a isso que chegamos após a herança do Bardo: ao conhecimento de que uma obra pode ser tudo a um só tempo. A tradição francesa, mais rígida, separa tragédia (Racine) e comédia (Molière). Shakespeare mistura tudo, e assim, graças a ele, nós também.
Em célebre ensaio, Milan Kundera sugere uma dupla paternidade para a forma romance: aClarissa, de Samuel Richardson, e o Tristram Shandy, de Laurence Sterne; entretanto, essas duas volumosas e enciclopédicas obras de ficção revelam a influência de Cervantes. O tio Toby e o cabo Trim de Sterne são abertamente moldados no Sancho Pança doQuixote, e o realismo de Richardson é enormemente tributário do desmascaramento empreendido por Cervantes da tola tradição literária medieval cujas ilusões mantêm Dom Quixote agrilhoado. Na obra-prima de Cervantes, à semelhança do que ocorre na obra de Shakespeare, baixezas coexistem com nobreza, pathos e emoção com obscenidades e escabrosidades, culminando no momento infinitamente emotivo em que o mundo real se impõe e o Cavaleiro da Triste Figura reconhece que tem sido um tolo, um velho louco, “pois águas passadas não movem moinhos”.
São dois escritores conscientes do que fazem, modernos de um jeito que a maioria dos mestres modernos reconheceria; um, criando peças de teatro que são altamente conscientes de sua teatralidade, de estarem sendo encenadas; o outro, criando uma ficção que é agudamente consciente de sua natureza ficcional, ao ponto mesmo de inventar um narrador imaginário, Cide Hamete Benengeli — um narrador, curiosamente, com antepassados árabes.
E os dois têm também a mesma consideração, uma adesão, de fato, pelos marginais como pelos ideais elevados; a sua galeria de patifes, prostitutas, punguistas e bêbados sentir-se-iam em casa nas tavernas um do outro. É esse aspecto terreno que revela serem os dois realistas no maior sentido, mesmo quando estão posando de fantasistas, e dessa forma, uma vez mais, nós, os que viemos depois, podemos aprender a partir deles que a magia não tem sentido senão quando a serviço do realismo — terá havido algum mágico mais realista que Próspero? — e que o realismo pode se beneficiar de uma dose saudável do fabulista. Por fim, a despeito de ambos empregarem tropos originários de contos populares, do mito e da fábula, eles se recusam a moralizar, e é aí, acima de tudo, que são mais modernos que os muitos que se seguiram a eles. Eles não nos dizem o que pensar ou o que sentir, mas nos mostram como fazê-lo.
Dos dois, é Cervantes o homem de ação, lutando em batalhas, sendo gravemente ferido, perdendo o uso de sua mão esquerda, sendo escravizado por corsários argelinos durante cinco anos até sua família conseguir levantar o dinheiro para pagar por seu resgate. A experiência de Shakespeare foi desprovida desse lances dramáticos; apesar disso, dos dois, ele parece ter sido o escritor com interesse maior na guerra e em seus soldados. Otelo, Macbeth, Lear são todas histórias de homens em guerra (guerra interior, por certo, mas também nos campos de batalha). Cervantes fez uso de suas dolorosas experiências, por exemplo, no conto do escravo, no Quixote, e em um par de peças teatrais, mas a batalha em que Dom Quixote se engaja é — para empregar termos modernos — absurda e existencial antes que “real”. Estranhamente, coube ao guerreiro espanhol escrever sobre a cômica futilidade de ir à guerra e criar a poderosa figura icônica do guerreiro como tolo (aqui logo vêm à mente o Heller de Ardil-22 ou o Vonnegut de Matadouro 5, somente para citar as mais recentes explorações do tema), enquanto a imaginação do poeta e dramaturgo inglês mergulhou de cabeça (como Tolstói e Mailer) na guerra.
Em suas diferenças, eles encarnam oposições extremamente contemporâneas, do mesmo modo que, em suas similaridades, eles concordam em muito do que ainda hoje é útil a seus herdeiros.
Salman Rushdie nasceu em Bombaim, na Índia, em 1947. Em 1968 formou-se em história no King’s College, em Cambridge. Depois de uma breve carreira como ator, passou a dedicar-se à literatura em 1971. Seu romance Os filhos da meia-noite ganhou o prestigioso Booker Prize (1981), o Booker of Bookers (1993) e o Best of the Booker (2008). Já Os versos satânicos (1988) valeu-lhe o Whitbread Prize e uma sentença de morte, promulgada pelo aiatolá Khomeini. Seu livro mais recente, Dois anos, oito meses e 28 noites, foi publicado no Brasil agora em abril.
Fonte: http://www.blogdacompanhia.com.br/2...re-escreveram-o-moderno-manual-de-literatura/