Evito construir hierarquias entre as minhas leituras, muito embora possua um "cânone particular" de livros e autores, tenciono sempre entrever os vícios e virtudes de cada experiência especifica do
próprio ato de ler tal ou qual gênero. Não se lê um romanceado calhamaço histórico da mesma maneira que um volume fininho de poesia. Trocarei os termos "melhor" e "pior" para saldo de leitura "positivo" ou "negativo".
SALDO DE LEITURA POSITIVO:
1 - A História de Rasselas, Príncipe da Abissínia - Samuel Johnson: livro altamente sublinhável (acabo de inventar esta palavra), nenhum dos quarenta e nove curtos capítulos de que dispõe é aborrecido ou desnecessário. Costumam comparar o "Rasselas" de Johnson com o "Cândido" de Voltaire, e, de fato, ambos são semelhantes em sua temática, mas nos detalhes distingue-se a dicção própria de cada um. As duas histórias apresentam o elemento fabuloso, repleto de movimentação, encontros inesperados e até, em momentos distintos, compartilham do mote narrativo recorrente da "deliberada fuga para fora do paraíso", porém, enquanto Voltaire apela para o grotesco, Samuel Johnson dá ênfase na digressão entre personagens. Em "Rasselas" todo mundo sofre, mas sem necessidade de levar facada, ir para fogueira da inquisição, enfrentar terremoto ou ser violentado pelos mouros. Também destaco as figuras femininas do romance: a princesa irmã de Rasselas e sua criada favorita Pekuah, as quais passam bem longe da pecha donzela-romântica-procurando-amor, são amantes, antes de tudo, do conhecimento.
2 - As Origens do Totalitarismo - Hannah Arendt: a primeira parte, abordando as razões para que o
sentimento anti-semita tenha sido tão eficaz para os propósitos dos movimentos totalitários, mesmo levemente enfadonha, em nada afeta a leitura desta obra-prima da investigação dialética. A parte II e III são uma verdadeira orgia de epifanias: o racismo provindo não meramente da intolerância às diferenças, mas da raiva de que algo tão diverso seja ao mesmo tempo tão
parecido conosco; a ascensão da burguesia enquanto índice da substituição da ação politica pela riqueza; o fracasso dos direitos humanos quando a "linguagem e composição" dos discursos declaratórios dos direitos do homem possuíam uma "estranha semelhança" com as das "sociedades protetoras dos animais" -- Arendt produziu algo riquíssimo e acessível, uma obra que ultrapassa o circulo restrito acadêmico e cativa qualquer leigo no assunto, desde que interessado.
3 -
O Templo do Pavilhão Dourado - Yukio Mishima: a edição brasileira da ed. Rocco trás na contra-capa um anúncio bem bombástico, digno de programa sensacionalista. O protagonista não é um "psicopata" e a narrativa não é um thriller de terror, mas poderiam ser. O único personagem "bom" morre nas primeiras páginas, o resto é sordidez. A beleza serve aí ou como consolo fugaz ou como motivo para a impotência diante da realidade. A cena do leite jorrando e a descrição de um seio é uma das mais belas realizações de toda a literatura.
4 - Memórias do Cárcere - Graciliano Ramos: começa de forma um tanto cômica e vai
rapidamente ganhando contornos obscuros, a detenção e o posterior encarceramento em diversos estabelecimentos prisionais faz de Graciliano uma figura inteiramente kafkaniana: até a maldição da "obra inacabada" pesa igualmente sobre estas "Memórias". Preso sem processo, ele se pergunta qual a justificativa para tanto, provavelmente alguma afinidade com o comunismo (sou escritor de romances "sociais", raciocina Graciliano, e, por associação, também torno-me um suposto propagador do "socialismo/comunismo"). O livro transborda de ocorrências antológicas (veja-se, por exemplo, o capítulo três da parte II ou o capítulo vinte e seis da parte III; o capítulo dezoito da parte II é uma descrição digna de um Kafka, digo isto sem exageros). Dá muito caldo para um ensaio sociológico.
5 - Miss Lonelyhearts - Nathanael West: aqui é mais do que a "ironia engraçadinha", West é puro humor desiludido; um dos pouquíssimos romances americanos onde a situação tradicional se inverte: é a risada que fica ridícula perto da tristeza e não vice-versa. As figuras e trejeitos grotescos de coaching e grupos de auto-ajuda "espiritualizados" são todas antecipadas neste romance fininho de 1933. O saudoso Rubem Fonseca escreveu um conto em homenagem a West, intitulado "Corações Solitários", presente na coletânea de contos
Feliz Ano Novo.
Mais tarde posto as leituras de saldo negativo.