Ana Lovejoy
Administrador
Clicando no link do título dá para ver os gráficos que aqui ficaram quebrados. Eu recomendo a leitura - até porque damos muito espaço para imbecil que defende tratar covid com aplicação retal de ozônio e deixamos de divulgar o trabalho de pessoas como as citadas nesse artigo. É, como o título diz, um clarão nas trevas.
Um clarão nas trevas
05 agosto 2020
por Naira Hofmeister
Como a ciência brasileira driblou o desconhecimento sobre o novo coronavírus, as dificuldades de financiamento e um governo negacionista para realizar, em quatro meses, a maior pesquisa do planeta sobre a disseminação da Covid-19
Às vésperas de alcançar a trágica marca de 100 mil mortos por Covid-19 e com um presidente que ergue caixas de um remédio sem eficácia comprovada diante das câmeras, pode soar melancólico voltar até março e notar que o Brasil ofereceu, logo nos primeiros dias da pandemia, a resposta mais ambiciosa para combatê-la até aquele momento.
Quando mal havia completado um mês do primeiro caso no país, o Ministério da Saúde se comprometeu a financiar o maior estudo populacional do planeta para medir o avanço do vírus em território nacional e guiar ações governamentais. Coordenado pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), a Epicovid19-BR testou quase 90 mil pessoas em todos os cantos do país, de maio a junho, e mostrou como a realidade brasileira influenciou o comportamento da doença.
“Em condições normais, um estudo como esse demoraria pelo menos um ano para ser planejado e executado”, compara o coordenador da pesquisa Pedro Hallal, reitor da UFPel.
Mas, depois de abraçar a empreitada e promover o convênio em tempo recorde para colocá-la em marcha, o governo federal fez pouco caso da pesquisa no momento em que ela era mais necessária. No início de julho, após duas trocas no comando do Ministério da Saúde, o Planalto se afastou da UFPel quando a universidade apresentou resultados que desagradaram ao governo. Um mês mais tarde, sem que a necessária renovação do contrato entrasse na pauta das autoridades sanitárias em Brasília, o grupo de pesquisadores precisou recorrer ao financiamento privado para dar sequência ao trabalho, agora garantido até setembro. “Depois de tanta falta de consideração ficou muito claro que não queriam a pesquisa”, lamenta Hallal.
A batalha dos pesquisadores não foi apenas pelos fundos para realizar seu trabalho. Além de criar uma metodologia praticamente do dia pra noite, tiveram que se certificar da eficácia dos testes rápidos e buscar apoio em autoridades regionais para que seus dados pudessem ter impacto nas políticas públicas diante da postura do governo Bolsonaro. Apesar das dificuldades, a iniciativa foi tão bem sucedida que inspirou dezenas de estudos locais Brasil afora.
Essa é a história de como isso foi possível.
Um zap da secretária
Acompanhando a nova rotina mundial imposta pelo coronavírus, a Epicovid19-BR nasceu em um ambiente virtual. “Estamos pensando em fazer uma pesquisa de prevalência por amostragem”, escreveu a secretária de Saúde do Rio Grande do Sul, Arita Bergmann, no grupo de WhatsApp do comitê científico do Estado. Criado por um decreto no dia 19 de março, o comitê havia sido formado pouco mais de uma semana depois de o Rio Grande do Sul notificar seu primeiro caso. Contava com a participação de reitores de universidades gaúchas e autoridades sanitárias para melhorar a resposta do governo local à pandemia. Com a circulação já restrita, determinada por medidas legais, o Comitê levou a conversa para a rede social.
Dois dias antes, a Organização Mundial da Saúde (OMS) havia lançado um protocolo sugerindo estudos de prevalência para orientar ações governamentais. “Até o momento, a vigilância concentra-se em pacientes com doença grave e, por isso, o espectro total da doença ainda não está claro”, destacava o texto. Era uma preocupação que reverberava o discurso do diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, que, na véspera da publicação do protocolo, disse: “Você não pode combater um incêndio com os olhos vendados. E não podemos parar com esta pandemia se não soubermos quem está infectado. Temos uma mensagem simples para todos os países: teste, teste, teste”.
“Isso quem vai fazer aqui no Rio Grande do Sul sou eu”, disse para si mesmo o reitor da UFPel, Pedro Hallal, ao ler a mensagem da secretária Bergmann. Ele apressou-se em responder ao grupo que desenharia uma metodologia o quanto antes – coisa que fez em 48 horas.
O reitor Pedro Hallal desenhou uma metodologia em 48 horas e em um mês tinha duas pesquisas aprovadas (Foto: Charles Guerra/Divulgação)
O plano: testar uma amostra significativa da população gaúcha em nove cidades, escolhidas segundo parâmetros de distribuição da população do IBGE, e estimar as reais taxas de contaminação e letalidade do coronavírus, além dos principais sintomas associados à doença. Ele propôs também que a pesquisa tivesse quatro etapas, voltando a campo a cada 15 dias, de maneira que fosse possível acompanhar o avanço da Covid-19 pelo Estado.
A sugestão foi comemorada no grupo. “A maior necessidade naquele momento era obter dados. Sem isso, não havia como guiar as ações”, resume Lucia Pellanda, reitora da Universidade Federal das Ciências da Saúde de Porto Alegre (Ufcspa).
O problema é que faltavam testes de diagnóstico para Covid-19 no mundo todo.
Em Brasília, o Ministério da Saúde havia recebido uma remessa de 10 milhões de testes rápidos, do tipo que medem anticorpos ao Sars-COV-2, uma doação da mineradora Vale S.A. A carga estava sob responsabilidade da Secretaria Executiva de Atenção Primária, naquela altura, comandada pelo médico gaúcho Erno Harzheim, a quem Hallal conhecia da vida acadêmica. Harzheim já foi secretário municipal da Saúde em Porto Alegre e é um dos precursores da Medicina de Família e Comunidade na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “Mandei para ele o protocolo da pesquisa e perguntei se cederiam os testes para aplicarmos”, recorda Hallal.
O então secretário topou a parceria, com uma condição: “Quero que tu faça a pesquisa no Brasil inteiro”, disparou Harzheim.
Os acontecimentos, então, se sucederam de maneira veloz. O projeto de pesquisa chegou no outro dia, e foi aceito nas 24 horas seguintes. Em uma semana estava garantido o financiamento de R$ 12 milhões para a execução da pesquisa nacional, além dos testes rápidos. Em 29 de março, a notícia de que o governo federal financiaria a maior pesquisa do gênero no mundo já estava na rua. Em maio, depois de passar pela aprovação do comitê de ética e após licitações emergenciais para contratar entrevistadores, o estudo nacional de prevalência, Epicovid19-BR, teve seu pontapé inicial. Mas Brasília já não era a mesma.
Ciência pé no barro
Quando os epidemiologistas da UFPel decidiram acompanhar a evolução da Covid-19 no país, não havia muitas experiências nas quais se inspirar. Até então, a ciência havia mapeado a evolução do vírus apenas em populações pequenas, como a da cidade de Vò, na Itália, onde os quase 3 mil moradores foram testados.
Na Islândia, mais de 5 mil indivíduos foram incluídos em um estudo de prevalência, mas eles eram voluntários, o que pode distorcer os resultados em razão do viés de diagnóstico – há mais chances de uma pessoa se apresentar como participante quando ela tem razões para achar que está contaminada, por ter algum sintoma gripal ou viajado a regiões onde a pandemia estava em estágio mais avançado.
A Espanha anunciou um trabalho similar ao brasileiro, mas só no final de abril, 45 dias depois de decretado o lockdown no país – e a coleta de exames era feita nos postos de saúde com hora marcada, um modelo com grandes chances de não dar certo no Brasil, onde o temor diante do vírus reduziu a procura na rede pública de atenção primária.
Era preciso ir até as pessoas, mesmo que a empreitada exigisse um esforço inédito de mobilização para dar conta das proporções continentais do país. Mas esse não era um empecilho para o Centro de Pesquisas Epidemiológicas da UFPel que, nos últimos 40 anos, se especializou em fazer pesquisas populacionais de porta em porta.
“Pesquisadores em geral trabalham em laboratórios. Eu costumo dizer que, aqui em Pelotas, a cidade inteira virou o nosso laboratório. Nós temos essa tradição. Não sei quantas pesquisas já fizemos visitando as pessoas de casa em casa”, conta o epidemiologista Cesar Victora, professor da UFPel, integrante da Epicovid-19BR.
Cesar Victora fazendo pesquisa em uma residência nos anos 1980 (Foto: Acervo pessoal)
Cesar Victora e o professor Fernando Barros foram os precursores do método no Brasil, no início dos anos 1980, quando Pelotas foi pioneira em estudos de coorte no país, uma modalidade de pesquisa populacional que acompanha seus participantes com regularidade por um longo período de tempo. A primeira coorte pelotense – hoje já são quatro, todas ainda em andamento – começou com uma iniciativa de Barros, que decidiu investigar os 5,9 mil bebês nascidos na cidade em 1982 para buscar dados para sua tese de doutorado.
A entrevista inicial com as mães foi feita nas maternidades, mas ao tentar rever as crianças em seu primeiro ano de vida, Barros encontrou apenas 20% da amostra – os endereços fornecidos nos cadastros continham erros, e muitos haviam se mudado de casa. A solução, no ano seguinte, já com Victora na pesquisa, foi visitar todas as 68 mil residências urbanas de Pelotas em busca dessas famílias.
“Foi a grande loucura, que deu certo. Batíamos na porta e perguntávamos: tem alguém aqui que nasceu em 1982? Foi um trabalho brutal, que quando terminou, prometemos nunca mais repetir. Só que em 1986, precisamos fazer tudo de novo”, recorda Barros, que também trabalha na Epicovid19-BR ao lado do parceiro histórico.
Fernando Barros: “Foi uma loucura ir de casa em casa, mas deu certo” (Foto: Naira Hofmeister/Matinal)
As análises de dados decorrentes das coortes de Pelotas influenciaram políticas públicas em todo o planeta: Victora e Barros foram os primeiros pesquisadores a oferecer evidências de que o leite materno é o melhor alimento para os recém-nascidos. Eles também mostraram como os três primeiros anos de vida são decisivos para o desenvolvimento das crianças. Graças à dupla, nenês de Pelotas compuseram uma amostra de um estudo mundial da Organização Mundial de Saúde, ao lado de crianças dos Estados Unidos, Gana, Índia, Noruega e Omã, que levou a uma redefinição do padrão de crescimento ideal nos cinco primeiros anos de idade.
Hoje, Victora é um dos 15 cientistas brasileiros mais influentes na ciência segundo o Web of Science Group, que reúne os campeões de citação em uma lista na internet. Ele é o único brasileiro a receber o prêmio Gairdner de Saúde Global, um reconhecimento que o coloca entre os cotados para o Nobel.
O diplomata e a pragmática
A UFPel não é uma instituição de ponta do ensino ou da ciência brasileira. Ocupa a modesta 35ª posição no ranking das melhores do Brasil do Ministério da Educação. Está um tanto isolada, no extremo sul do Rio Grande do Sul, mais perto da fronteira com o Uruguai do que da capital gaúcha.
Do ponto de vista econômico, a cidade representa menos de 2% do PIB do Estado – embora tenha sido um oásis de prosperidade no século 19, quando a elite enriqueceu explorando mão de obra escrava nas charqueadas. Uma das primeiras centrais telefônicas do mundo foi inaugurada lá, quase ao mesmo tempo que as de Londres e Barcelona.
Os jovens ricos iam estudar no exterior e de lá voltavam com gosto refinado por roupas, arte e arquitetura, duas heranças que chegaram aos dias de hoje. Uma pode ser contemplada nos teatros e palacetes que ainda embelezam suas ruas, outra, através do preconceito que subsiste no costume gaúcho de chamar pelotenses de “viados”. Um duplo equívoco que atribui ao requinte do passado uma tendência homossexual e que toma essa última como algo ruim.
A trajetória singular do Centro de Pesquisas Epidemiológicas colocou a universidade no mapa-múndi da ciência, mas Pedro Hallal nem sabia ao certo o que fazia um epidemiologista quando se apresentou à seleção do mestrado na área, no ano 2000. Ele tinha concluído a graduação em Educação Física e bateu na porta da “Epidemio” depois que um amigo o avisou que havia vagas. Mas tomou gosto pela coisa, concluiu mestrado e doutorado, fez estágio de pós-doutorado na tradicional University College of London, na Inglaterra, e aos 26 anos se tornou o mais jovem membro afiliado da Academia Brasileira de Ciências.
Também foi o reitor mais moço a assumir a administração da universidade em 2016. Ele brinca que depois da eleição, guardou o diploma de epidemiologista na gaveta, da qual só sairia quando o estudo sobre coronavírus começou a tomar forma. Mas a verdade é que o mesmo perfil diplomático que o levou a comandar uma instituição de ensino superior antes de completar 40 anos permitiu que desempenhasse com naturalidade o papel político que lhe caberia como líder do projeto sobre a epidemia. Negociou com duas esferas governamentais diferentes – União e governo do Rio Grande do Sul – e tratou com três ministros da Saúde, quase sempre botando panos quentes nas desavenças. Só jogou a toalha em julho, quando já não restava dúvidas sobre o desinteresse do governo Bolsonaro nos dados da pesquisa.
A pitada de coragem que faltava para a turma pelotense abraçar de vez a Epicovid-19BR veio de uma mulher. A ginecologista Mariângela Freitas da Silveira se uniu ao grupo de epidemiologia da UFPel em 2004 para pesquisar doenças infectocontagiosas. Experiente na aplicação de testes de sífilis e HIV em seu trabalho de campo, foi Silveira que tomou a dianteira quando todos seus colegas hesitaram, preocupados com a responsabilidade de lidar com sangue e um vírus altamente contagioso de maneira improvisada.
“Eu trabalho com DST há muito tempo, estou super habituada à pesquisa de campo, nas ruas, testando as profissionais de sexo em motéis, casas de prostituição. Não tenho medo de sair com o teste para o campo. Para mim, era algo factível. É a contribuição que eu pude dar, senão a gente ia perder o trem da história”, acredita a médica.
Ginecologista, Silveira estava habituada a aplicar testes de HIV em prostitutas (Foto: Daniela Xu/Divulgação)
Teste chinês
Depois que o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, convocou os países a recorrerem à testagem em massa, multiplicaram-se pelo planeta opções de marcas comerciais que prometiam detectar a presença do vírus ou de anticorpos humanos que reagem à infecção. Pressionadas, as agências reguladoras aprovaram de forma emergencial esses produtos. No Brasil, a Anvisa recebeu 157 solicitações de registros apenas entre os dias 18 de março e 16 de abril. Aprovou 39 delas com base nos documentos fornecidos pelos próprios fabricantes, inclusive os ensaios clínicos que atestariam sua segurança, qualidade e eficácia. “É importante esclarecer que, para concessão desses registros, não são realizados ensaios laboratoriais prévios”, alertou, em abril, uma publicação da agência brasileira de vigilância em saúde.
A maioria dos novos testes que chegaram ao mercado eram chamados “rápidos”, porque oferecem um resultado em 15 minutos. Visualmente, se parecem com aqueles testes de gravidez comprados em farmácia, só que em vez de fazer xixi na ponta, a pessoa oferece uma gotinha do sangue, retirada com um “pique” no dedo. Conforme a promessa expressa no apelido do exame, em pouco tempo se formam uma ou duas linhas no visor do artefato: no primeiro caso, o teste é negativo, no segundo, positivo.
Teste rápido é feito a partir de amostra de sangue coletada com um pique no dedo (Foto: Daniela Xu/Divulgação)
O teste rápido não atesta a presença do vírus, como faz o exame PCR, feito a partir de uma amostra coletada raspando uma espécie de cotonete no fundo do nariz e da garganta. Ele detecta os anticorpos produzidos pelo corpo humano como defesa à invasão do organismo pelo coronavírus. Mas isso só acontece depois de alguns dias da infecção e, por isso, o exame não é recomendado para diagnóstico da Covid-19 – nos primeiros dias de infecção, ele pode não detectar o vírus e, quando dá positivo, pode ser tarde demais para isolar o paciente e evitar a proliferação da doença. Para a pesquisa epidemiológica, entretanto, vinha a calhar, inclusive porque não exige estrutura laboratorial para ser feito.
Só que havia uma desconfiança geral no mundo científico sobre sua baixa qualidade. A Espanha precisou devolver lotes desse instrumento comprados da China depois de verificar que eles erravam o diagnóstico em 70% dos casos.
O Ministério da Saúde ofereceu à equipe da UFPel o Wondfo SARS-CoV-2 Antibody Test, um teste rápido chinês aprovado pela Anvisa. O fabricante tinha feito uma prova com 596 participantes e atestava que ele era bastante preciso: errava uma em cada 250 tentativas quando a pessoa não tinha os anticorpos, dando um percentual de 0,4% de falsos positivos, mas não detectava 15% dos infectados, o que ainda assim é um bom desempenho. Além de ser aprovado pela Anvisa, o Wondfo passou por validação nos laboratórios da Fiocruz e foi considerado “satisfatório”.
“Epidemiologista tem que ser muito desconfiado, muito cético para buscar sempre o resultado mais garantido. Quando recebemos os testes, pensamos: ‘deve ser ruim’”, recorda Cesar Victora. O jeito era submeter o produto a análises próprias.
Coalizão universitária
Mas a equipe da UFPel estava sobrecarregada. Enquanto Pedro Hallal tratava detalhes com o Ministério da Saúde para formalizar o convênio do estudo nacional, o projeto piloto no Rio Grande do Sul já estava em andamento – aquele acordado com a secretária Arita Bergmann e apoiado por outros reitores com assento no Comitê Científico do Estado. Uma coincidência fez com que o Instituto Serrapilheira, do Rio de Janeiro, entrasse em contato com Victora oferecendo um financiamento de R$ 1,5 milhão para qualquer pesquisa que estivessem desenvolvendo no momento sobre o coronavírus.
“Normalmente lançamos chamadas públicas para encontrar jovens talentos científicos e financiar suas pesquisas. Mas nessa situação em particular, era uma emergência e então fomos atrás dos melhores grupos no Brasil que investigam epidemiologia, infectologia, pneumologia. O da UFPel é de longe o mais destacado, é uma referência mundial. Sabíamos que era uma aposta garantida”, revela Hugo Aguilaniu, diretor-presidente do Serrapilheira.
Na esteira desse patrocínio, vieram ainda a cooperativa de médicos Unimed e o Instituto Cultural Floresta, uma ONG de ricaços que destina verba para políticas públicas, nem sempre desinteressadamente. O recurso era suficiente para dar o pontapé inicial no estudo regional e, por isso, as duas pesquisas aconteceram de forma simultânea. Era um ingrediente extra no já complicado xadrez em que estavam os epidemiologistas, pressionados para dar uma resposta quase imediata a uma doença desconhecida sem abrir mão do rigor que o método científico exige para ser válido.
Trabalho nas coortes fez de Victora uma autoridade mundial e trouxe reconhecimento à UFPel (Foto: Daniela Xu/Divulgação)
Sem conseguir abraçar todas as frentes, a epidemiologia da UFPel contou com o trabalho colegas de outras universidades. A Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (Ufcspa) se encarregou da Wondfo. A reitora Lucia Pellanda instalou um drive thru na Faculdade de Ciências da Saúde de Porto Alegre e convocou voluntários que tivessem PCRs positivos para ver se o teste rápido repetiria o resultado com exatidão. Ela também checou material colhido pela coorte de 1982, ou seja, nunca infectado pelo coronavírus, para garantir que os testes não dariam um falso positivo num universo totalmente negativado. O teste foi aprovado.
Ao mesmo tempo, outras 10 instituições de ensino superior do Rio Grande do Sul chamaram seus alunos da área da saúde – algumas estenderam o convite também a egressos de seus cursos de graduação – para se unirem, voluntariamente, às equipes de coleta da empresa terceirizada, contratada com os recursos doados pela iniciativa privada para o estudo gaúcho. A entrada em campo dos acadêmicos trouxe segurança extra no manuseio do material de pesquisa, para que os testes fossem aplicados sem erros.
A experiência serviu para formular com maior precisão o treinamento dos entrevistadores do estudo nacional, selecionados pelo Ibope. Foram dez sessões preparatórias com as equipes – ao passo que no Rio Grande do Sul, a união das universidades economizou tempo e recursos, com apenas um reforço dos avisos e cuidados, sempre na véspera de cada saída.
“No estudo nacional foram 1,7 mil entrevistadores, e o Ibope precisou contratar enfermeiros e biomédicos para acompanhar o campo. É muita gente e, por isso, precisamos ser contundente nas orientações de segurança”, explica Mariângela Freitas da Silveira.
O rigoroso treinamento com os trabalhadores do Ibope os capacitou para fazer um furinho no dedo dos participantes e coletar a amostra de sangue para o teste. Eles também aprenderam a descontaminar equipamentos e descartar o lixo, foram instruídos sobre como reportar casos positivos para a vigilância sanitária dos municípios e treinados para lidar com a imprensa. Mas não estavam preparados para a hostilidade que marcaria sua estreia nas ruas.
Prisões, polícia e fake news
No dia 15 de maio, antes das 10h da manhã, a equipe da Epidemiologia da UFPel estava a postos em frente aos computadores. Iniciava a primeira etapa do estudo nacional e os cientistas precisavam checar e validar, remotamente, boa parte dos 33 mil testes rápidos que começavam a ser aplicados.
Mas em vez de enviarem os resultados dos exames, os entrevistadores estavam mandando fotos de cards que circulavam em redes sociais e de cartazes colados nas ruas que alertavam a população para não abrir as portas a quem se dissesse pesquisador da Covid-19. Segundo as mensagens enganosas, essas pessoas seriam assaltantes disfarçados.
Mensagens com falsos alertas chegaram de todas as partes do Brasil (Foto: Reprodução)
A desconfiança dos moradores fez com que o trabalho não começasse conforme o previsto em 40 das 133 cidades brasileiras mapeadas para a coleta de testes e dados sobre Covid-19 na primeira onda. Em 20 delas, os entrevistadores chegaram a ser presos e em oito a polícia inclusive destruiu os testes rápidos que seriam aplicados. Ao final da coleta, 43 municípios não foram incluídos no relatório porque o volume de testes e questionários era muito reduzido.
“Foi impressionante. Esses cartazes só podem ter sido distribuídos por robôs, porque recebemos de todos os lugares, de todas as prefeituras”, lamenta Cesar Victora.
A falha foi creditada ao Ministério da Saúde que não priorizou de forma adequada a comunicação com os municípios, abrindo espaço para a desinformação e o pânico. Embora publicamente a pasta tenha dito que fez tudo certo, internamente houve um sentimento de pesar porque os servidores admitiam a falta de fôlego para dar melhor atenção à Epicovid19-BR.
Dentro dos gabinetes em Brasília, imperava a confusão: não bastando a tensão natural decorrente da maior crise sanitária do século, havia uma guerra entre os técnicos da pasta e o presidente da República, Jair Bolsonaro. Desde o início da pandemia, Bolsonaro seguiu pelo caminho contrário ao apontado pelas evidências científicas: sua fórmula para o combater o coronavírus era distribuir cloroquina aos pacientes em qualquer estágio da doença e abrir a economia, mantendo apenas velhos e doentes isolados, mesmo que essas medidas não tenham embasamento em estudos sérios. Sua teimosia foi tal que precisou ser obrigado pela Justiça a usar máscara em público, embora suas atividades sigam gerando aglomerações de pessoas.
Presidente Bolsonaro já precisou ser obrigado pela Justiça a usar máscara e sua agenda provoca aglomerações (Foto: Alan Santos /PR)
Os conflitos derrubaram dois ministros da saúde em menos de 30 dias, justamente no período de planejamento da logística e início da primeira coleta de dados do estudo da UFPel. Quando o protocolo com o Ministério da Saúde foi assinado, o ministro era Luiz Henrique Mandetta, que cairia uma semana depois. Com ele, Erno Harzheim também deixou Brasília e a Epicovid-19BR “ficou sem pai nem mãe” dentro da pasta, segundo o relato de um servidor.
Harzheim até entregou um relatório ao sucessor de Mandetta, Nelson Teich, no qual o estudo constava como uma prioridade. Mas o novo ministro não teve tempo de dar atenção devida ao caso: não durou um mês no cargo, e sua demissão foi anunciada no dia seguinte ao início dos trabalhos de campo, em meio às prisões e agressões aos entrevistadores do Ibope.
“Óbvio que houve descontinuidade e que isso prejudicou a pesquisa. Mas não sou muito de ficar remoendo, não sei se teve desconforto político, problema com egos. Em vez de procurar culpados, atribuo as dificuldades ao fato de fazer às pressas uma pesquisa que demoraria um ano”, desconversou Pedro Hallal em junho, enquanto ocorria a segunda onda de coleta de dados.
Mais tarde ele subiria o tom para cobrar da pasta maior adesão ao projeto e, por fim, acusaria os militares que dominaram o Planalto de irresponsáveis quando ficou evidente que não haveria continuidade na parceria.
A sucessão de problemas na realização do estudo fez os pesquisadores nomearem o grupo de WhatsApp no qual trocam informações de “Sufocovid”.
Desigualdade 2.0
Na origem das perguntas de pesquisa formuladas por Cesar Victora e Fernando Barros na virada dos anos 70 para os 80, estava uma curiosidade: qual era o impacto da desigualdade na saúde dos brasileiros? “Eu queria fazer pesquisa de população, estudar saúde pública, mas aqui no Brasil a gente fazia mesmo era atendimento individual, no ambulatório, no hospital”, recorda o pioneiro Fernando Barros. Quando ele iniciou a coleta de dados nas maternidades, em 1982, por exemplo, não existiam estudos fidedignos sobre mortalidade infantil.
A desigualdade foi a principal pauta de trabalho de Barros e Victora, que ao longo das sucessivas coortes testemunharam melhoras sensíveis nas estatísticas – em muitos casos, derivadas das próprias pesquisas, depois que a Organização Mundial da Saúde e a Unicef descobriram os achados dos pesquisadores em Pelotas e os disseminaram pelo mundo.
Victora, Barros e uma representante da OMS nos primórdios de suas pesquisas (Foto: Arquivo pessoal)
No caso da Covid-19, os pesquisadores se surpreenderam ao perceber como a desigualdade social teve um papel determinante na disseminação do novo coronavírus. Os estudos da UFPel verificaram que, ao contrário do que se acreditava, as regiões Norte e Nordeste, tropicais e pobres, apresentaram índices muito maiores de contágio do que o Sul, onde o inverno parecia ser um agravante para um vírus respiratório. Entre as 15 cidades com maior prevalência, 13 estavam na parte de cima do mapa do país. “Quão errados estávamos”, desabafou Victora em um debate virtual promovido pela Universidade de Miami.
Na medição geral, a camada mais pobre da população apresentou o dobro de prevalência do que os mais ricos, uma característica que se manteve estável ao longo das três ondas de coleta de dados, embora o índice de contágio tenha aumentado para todos. “Acho que o Brasil é o único lugar do mundo onde há uma estatística feita com base em um estudo populacional que confirma a grande divisão social que afeta o nosso país e tantos outros da América Latina”, complementou.
A Flourish chart
Os dados também revelaram que os indígenas são o grupo étnico mais vulnerável, e o fator de risco não pode ser atribuído ao local de moradia – as aldeias, no caso – porque a Epicovid19-BR foi realizada apenas em áreas urbanas. Os cientistas ainda não conseguem explicar a diferença, mas há hipóteses. É possível que haja alguma questão biológica que justifique e o ambiente também pode ter influência. “No questionário que fazemos com cada participante, incluímos o número de cômodos da casa e quantas pessoas dividem o espaço. Ainda não foi possível analisar essas informações, mas logo poderemos ter hipóteses mais claras”, acredita Hallal.
A Flourish hierarchy chart
Boicote em Brasília
Publicamente, a equipe da UFPel mantinha o discurso de que depois das falhas na primeira rodada, a relação com o Ministério da Saúde tinha sido azeitada e tudo corria bem. A parte técnica sofreu ajustes, e uma uma funcionária de carreira da pasta foi encarregada de atender o projeto internamente.
Mas a instabilidade política no Planalto gerava dúvidas, colocando em xeque até a certeza sobre as etapas já contratadas pela pasta. “Quando o ministro Mandetta saiu, não conseguimos interlocução. Em certo momento complicou e a segunda onda até correu risco de não sair”, revela Fernando Barros.
Embora o secretário nacional do Ministério da Saúde, Elcio Franco, tenha elogiado publicamente a iniciativa como “uma contribuição do Brasil para a comunidade científica internacional e para gestores e profissionais de saúde”, a informação de que os indígenas estão adoecendo mais que o restante da população nas cidades foi especialmente desconfortável para o governo.
Nos dias que antecederam a apresentação dos resultados da Epicovid19-BR, em Brasília, no dia 2 de julho, houve discordância entre os executivos do Ministério e os pesquisadores. Coube ao secretário Franco evidenciar a discordância entre a equipe da pasta e os epidemiologistas da UFPel: “Para indígenas autodeclarados na região urbana, o valor (de infecção) está acima da média. Precisamos verificar o contexto em que se dá a informação (a autodeclaração) e quais as influências socioculturais podem interferir na coleta do dado”, disse. A autodeclaração é o modelo de determinação de cor ou raça adotado em pesquisas do IBGE desde a década de 1970.
Antes de passar a palavra ao reitor Pedro Hallal, Franco acrescentou: “Hoje, esse tema não será abordado devido a essas análises que precisamos fazer”. Uma semana depois, em 8 de julho, o presidente Bolsonaro vetou medidas emergenciais para proteger indígenas, entre elas o acesso à água potável e a material de higiene, itens indispensáveis na prevenção da Covid-19.
O caso brasileiro não é o único em que governos boicotam o trabalho da ciência. Nos Estados Unidos, o governo de Donald Trump desautorizou uma pesquisa intitulada Seattle Flu Study, quando a iniciativa começava a apresentar dados promissores para o controle do coronavírus.
Novas fases vão até setembro
Os resultados da Epicovid19-BR soterraram de vez a teoria de que o SARS-Cov-2 era um vírus que gostava do frio: em Breves, no Pará, onde as temperaturas nunca baixam de 20 graus, 25% da população tinha sido contaminada até a metade de maio, um volume inédito no mundo. No final de junho, já tabulados os resultados da amostra total de entrevistados, os pesquisadores divulgaram também que a incidência da Covid-19 era semelhante em todas as faixas de idade. “Sob o ponto de vista da literatura, esse é talvez o nosso resultado mais importante. E pode ser extrapolado para o mundo todo, porque não há motivos para imaginar que a resposta imunológica dos brasileiros seja tão diferente”, avalia Hallal.
A Flourish chart
Por outro lado, o estudo colocou em dúvida a teoria de que a maioria dos doentes são assintomáticos. Quando começaram a pesquisa, os epidemiologistas trabalhavam com um dado publicado na revista Nature que 60% dos infectados não apresentava sintomas ou os tinham de forma muito branda. Mas a realidade revelada pela pesquisa brasileira se mostrou diversa: entre os casos positivos testados em campo, apenas 10% não sentiam nada – o que não deixa de ser um alívio para um país que não consegue ampliar a testagem além de casos graves e internações.
Para cada diagnóstico de Covid-19 confirmado pelas estatísticas, o estudo estimou que existem ao redor de seis casos reais não notificados. De cada 100 infectados, um vai a óbito. A prevalência dobrou na população (era 1,9% em maio e passou para 3,8% em junho), enquanto o percentual de pessoas que estão mantendo o distanciamento social caiu de 23,1% para 18,9%.
A Flourish map
Mas depois que Franco disse publicamente que “temos que fazer mais” e que o governo federal iria “analisar quais os próximos passos podem ser dados”, sugerindo uma aguardada continuidade da pesquisa, o Ministério da Saúde silenciou. Até foram agendadas reuniões, mas na prática, o esperado anúncio da quarta onda de coletas, que deveria ter ido às ruas ao final da primeira semana de julho, não se concretizou.
Em 30 de julho, a pasta mantinha o mesmo discurso dado três semanas antes quando a imprensa cobrou a renovação. “O Ministério da Saúde dará continuidade a estudos de inquérito epidemiológico de prevalência de soropositividade na população. Ainda não está definido se será a continuação do Epicovid19-BR, pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) ou por outra instituição, ou PNAD Covid, pelo IBGE. Uma alternativa em estudo é utilizar ambas as estratégias”.
Mas o reitor Pedro Hallal disse que nunca mais foi procurado e o IBGE não respondeu aos questionamentos da reportagem. Além disso, Erno Harzheim, o ex-secretário de Atenção Primária da pasta, assegura que a metodologia da PNAD Covid é incompatível com a da UFPel: “Essa pesquisa é feita por telefone, não tem testagem. Fui eu que desenhei, junto com a presidente do IBGE, Suzana Guerra”.
Vestindo novamente a casaca de vendedor, Hallal voltou sua atenção à iniciativa privada. Depois de um mês de suspense, a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) confirmou, no dia 05 de agosto, a realização das fases 4, 5 e 6 do estudo. Os entrevistadores voltam a campo a partir do dia 20 do mês. “O ideal era não ter esse delay, mas não é um prejuízo grande. O importante é dar continuidade ao estudo”, comemora o coordenador da Epicovid19-BR.
A sequência da pesquisa foi garantida graças a um aporte de R$ 11,7 milhões da iniciativa Todos pela Saúde, um projeto da Fundação Itaú para a Educação e Cultura que criou um fundo especial para ações de combate à Covid-19. O valor é quase a totalidade do investido pelo Ministério da Saúde nas primeiras três fases do estudo, R$ 12 milhões, entretanto, não é o suficiente para a realização completa das próximas etapas. Isso porque agora a UFPel precisará comprar quase 100 mil novos testes rápidos, além de equipamentos de proteção individual para os 1700 entrevistadores do Ibope que vão a campo.
Esses insumos haviam sido doados pelo governo federal nas primeiras etapas da pesquisa, mas sem a renovação do convênio com a pasta da Saúde, eles agora precisarão ser adquiridos diretamente pelo grupo, encarecendo o valor do levantamento. Por isso também está em negociação um segundo aporte de outra instituição para complementar o orçamento das três etapas restantes.
Com a confirmação das novas etapas, o estudo mantém o recorde de participantes em um levantamento populacional sobre o coronavírus e poderá passar a Espanha também no número total de testes aplicados. O país ibérico aplicou quase 187 mil testes – porém em cada uma das três etapas as mesmas pessoas eram testadas, somando 68 mil participantes contra as 89 mil da pesquisa brasileira. Agora, com a confirmação da sequência do levantamento nacional, o Brasil poderá chegar próximo da marca espanhola também em testagens, já que está prevista a aplicação de, pelo menos, 99 mil testes rápidos.
A rede de apoio extraoficial que a UFPel organizou para minimizar o impacto da falta de apoio institucional do Ministério da Saúde será ainda mais importante agora que a pasta deixou o projeto. Ela conta com a Associação Nacional dos Promotores de Justiça e com a capilarizada presença da Igreja Católica. “A Pastoral da Criança está em todo o Brasil e tem contato muito próximo com as comunidades. Apenas em uma das cidades da pesquisa eles não tinham ninguém. Ficaram arrasados”, observa a ginecologista Mariângela Freitas da Silveira.
O vínculo com as prefeituras que já havia sido reforçado com a contratação de um enfermeiro por município, vai ser ainda mais necessário, assim como o suporte das guarnições policiais, que depois de prenderem os entrevistadores passaram a colaborar esclarecendo a população sobre a segurança de receber a pesquisa em casa.
O impacto nos municípios
Para contornar as reticências do governo federal os epidemiologistas da UFPel também se aproximaram de gestores locais, na expectativa de que seus dados possam fazer a diferença. “Fazemos um relatório para cada um dos municípios que recebem os entrevistadores: quantos testes foram feitos, quantos foram positivos, como está o cumprimento do distanciamento social. Com esses dados, é possível fazer um planejamento adequado à realidade municipal. É tão importante isso que lugares onde a pesquisa não foi feita estão fazendo por iniciativa própria. Os gestores públicos se deram conta de que precisam saber o que está acontecendo”, resume Mariângela Freitas da Silveira.
No Norte, depois que os epidemiologistas perceberam que os maiores níveis de contágio estavam em municípios situados às margens do rio Amazonas, que corta a floresta, a Universidade Federal do Amazonas se debruçou para investigar as causas. Descobriu que o problema estava no transporte regional, feito em barcos que acomodam passageiros em redes muito próximas umas das outras, para viagens que podem durar vários dias. “Esse dado é fabuloso para um gestor público, é de aplicabilidade imediata”, exclamou Barros quando se deparou com a constatação pela primeira vez. Embora tenha havido restrições oficiais nas viagens, embarcações clandestinas seguiram transportando pessoas e levando o coronavírus ao interior do Brasil.
Governo Eduardo Leite usa dados no modelo de distanciamento controlado do RS (Foto: Felipe Dalla Valle/Palácio Piratini)
No Rio Grande do Sul, os dados da pesquisa compõem os indicadores utilizados no distanciamento controlado, um modelo que calcula o risco de contágio e de sobrecarga do sistema de saúde para determinar quanto de circulação e atividade econômica está permitido para cada região do Estado. Os indicadores são revisados a cada semana, acompanhando a evolução da doença. O reconhecimento de sua utilidade ficou explícito quando foi anunciada a continuidade da iniciativa depois que as quatro etapas foram concluídas: primeiro decidiu-se por mais duas fases, depois mais duas, totalizando quatro novas etapas. E o poder público, que de início não havia injetado recursos no estudo, agora o apoia também financeiramente, através do patrocínio do Banrisul, o banco do Estado.
No Pará, as informações foram consideradas tão relevantes que foi criado um consórcio entre governo e prefeituras para fazer levantamentos mais aprofundados. “Os dados de contaminação são muito relevantes para um gestor, só estão atrás do número de leito de UTIs”, defende Harzheim, que agora presta consultorias a gestores públicos sobre o coronavírus através de uma fundação particular.
O fato é que a Epicovid19-BR superou obstáculos e inspirou uma dezena de outros estudos no país – de Bagé a Pernambuco, passando pelo Paraguai, há vários governos interessados em conhecer mais profundamente o comportamento da pandemia em seus territórios para tomar providências adequadas. A mais recente está sendo realizada no Vale do Rio Pardo, no interior do Rio Grande do Sul, promovida por um consórcio intermunicipal em parceria com a Universidade de Santa Cruz do Sul. Segue a mesmíssima metodologia por amostragem e com quatro etapas, separadas por duas semanas entre si.
“O mais importante para um pesquisador que quiser realizar uma empreitada dessas é lembrar os motivos pelos quais decidiu ir em busca dos dados. Se ele estiver convicto da necessidade que a população tem, não vai medir esforços. Para a gente, era até fácil desistir quando não havia financiamento, quando aconteceram conflitos com governos, ou quando tivemos entrevistadores presos. Por outro lado, a gente sabia da importância dos dados para as pessoas. E por isso, desistir não era uma opção”, conclui Hallal.
Um clarão nas trevas
05 agosto 2020
por Naira Hofmeister
Como a ciência brasileira driblou o desconhecimento sobre o novo coronavírus, as dificuldades de financiamento e um governo negacionista para realizar, em quatro meses, a maior pesquisa do planeta sobre a disseminação da Covid-19
Às vésperas de alcançar a trágica marca de 100 mil mortos por Covid-19 e com um presidente que ergue caixas de um remédio sem eficácia comprovada diante das câmeras, pode soar melancólico voltar até março e notar que o Brasil ofereceu, logo nos primeiros dias da pandemia, a resposta mais ambiciosa para combatê-la até aquele momento.
Quando mal havia completado um mês do primeiro caso no país, o Ministério da Saúde se comprometeu a financiar o maior estudo populacional do planeta para medir o avanço do vírus em território nacional e guiar ações governamentais. Coordenado pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), a Epicovid19-BR testou quase 90 mil pessoas em todos os cantos do país, de maio a junho, e mostrou como a realidade brasileira influenciou o comportamento da doença.
“Em condições normais, um estudo como esse demoraria pelo menos um ano para ser planejado e executado”, compara o coordenador da pesquisa Pedro Hallal, reitor da UFPel.
Mas, depois de abraçar a empreitada e promover o convênio em tempo recorde para colocá-la em marcha, o governo federal fez pouco caso da pesquisa no momento em que ela era mais necessária. No início de julho, após duas trocas no comando do Ministério da Saúde, o Planalto se afastou da UFPel quando a universidade apresentou resultados que desagradaram ao governo. Um mês mais tarde, sem que a necessária renovação do contrato entrasse na pauta das autoridades sanitárias em Brasília, o grupo de pesquisadores precisou recorrer ao financiamento privado para dar sequência ao trabalho, agora garantido até setembro. “Depois de tanta falta de consideração ficou muito claro que não queriam a pesquisa”, lamenta Hallal.
A batalha dos pesquisadores não foi apenas pelos fundos para realizar seu trabalho. Além de criar uma metodologia praticamente do dia pra noite, tiveram que se certificar da eficácia dos testes rápidos e buscar apoio em autoridades regionais para que seus dados pudessem ter impacto nas políticas públicas diante da postura do governo Bolsonaro. Apesar das dificuldades, a iniciativa foi tão bem sucedida que inspirou dezenas de estudos locais Brasil afora.
Essa é a história de como isso foi possível.
Um zap da secretária
Acompanhando a nova rotina mundial imposta pelo coronavírus, a Epicovid19-BR nasceu em um ambiente virtual. “Estamos pensando em fazer uma pesquisa de prevalência por amostragem”, escreveu a secretária de Saúde do Rio Grande do Sul, Arita Bergmann, no grupo de WhatsApp do comitê científico do Estado. Criado por um decreto no dia 19 de março, o comitê havia sido formado pouco mais de uma semana depois de o Rio Grande do Sul notificar seu primeiro caso. Contava com a participação de reitores de universidades gaúchas e autoridades sanitárias para melhorar a resposta do governo local à pandemia. Com a circulação já restrita, determinada por medidas legais, o Comitê levou a conversa para a rede social.
Dois dias antes, a Organização Mundial da Saúde (OMS) havia lançado um protocolo sugerindo estudos de prevalência para orientar ações governamentais. “Até o momento, a vigilância concentra-se em pacientes com doença grave e, por isso, o espectro total da doença ainda não está claro”, destacava o texto. Era uma preocupação que reverberava o discurso do diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, que, na véspera da publicação do protocolo, disse: “Você não pode combater um incêndio com os olhos vendados. E não podemos parar com esta pandemia se não soubermos quem está infectado. Temos uma mensagem simples para todos os países: teste, teste, teste”.
“Isso quem vai fazer aqui no Rio Grande do Sul sou eu”, disse para si mesmo o reitor da UFPel, Pedro Hallal, ao ler a mensagem da secretária Bergmann. Ele apressou-se em responder ao grupo que desenharia uma metodologia o quanto antes – coisa que fez em 48 horas.
O plano: testar uma amostra significativa da população gaúcha em nove cidades, escolhidas segundo parâmetros de distribuição da população do IBGE, e estimar as reais taxas de contaminação e letalidade do coronavírus, além dos principais sintomas associados à doença. Ele propôs também que a pesquisa tivesse quatro etapas, voltando a campo a cada 15 dias, de maneira que fosse possível acompanhar o avanço da Covid-19 pelo Estado.
A sugestão foi comemorada no grupo. “A maior necessidade naquele momento era obter dados. Sem isso, não havia como guiar as ações”, resume Lucia Pellanda, reitora da Universidade Federal das Ciências da Saúde de Porto Alegre (Ufcspa).
O problema é que faltavam testes de diagnóstico para Covid-19 no mundo todo.
Em Brasília, o Ministério da Saúde havia recebido uma remessa de 10 milhões de testes rápidos, do tipo que medem anticorpos ao Sars-COV-2, uma doação da mineradora Vale S.A. A carga estava sob responsabilidade da Secretaria Executiva de Atenção Primária, naquela altura, comandada pelo médico gaúcho Erno Harzheim, a quem Hallal conhecia da vida acadêmica. Harzheim já foi secretário municipal da Saúde em Porto Alegre e é um dos precursores da Medicina de Família e Comunidade na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “Mandei para ele o protocolo da pesquisa e perguntei se cederiam os testes para aplicarmos”, recorda Hallal.
O então secretário topou a parceria, com uma condição: “Quero que tu faça a pesquisa no Brasil inteiro”, disparou Harzheim.
Os acontecimentos, então, se sucederam de maneira veloz. O projeto de pesquisa chegou no outro dia, e foi aceito nas 24 horas seguintes. Em uma semana estava garantido o financiamento de R$ 12 milhões para a execução da pesquisa nacional, além dos testes rápidos. Em 29 de março, a notícia de que o governo federal financiaria a maior pesquisa do gênero no mundo já estava na rua. Em maio, depois de passar pela aprovação do comitê de ética e após licitações emergenciais para contratar entrevistadores, o estudo nacional de prevalência, Epicovid19-BR, teve seu pontapé inicial. Mas Brasília já não era a mesma.
Ciência pé no barro
Quando os epidemiologistas da UFPel decidiram acompanhar a evolução da Covid-19 no país, não havia muitas experiências nas quais se inspirar. Até então, a ciência havia mapeado a evolução do vírus apenas em populações pequenas, como a da cidade de Vò, na Itália, onde os quase 3 mil moradores foram testados.
Na Islândia, mais de 5 mil indivíduos foram incluídos em um estudo de prevalência, mas eles eram voluntários, o que pode distorcer os resultados em razão do viés de diagnóstico – há mais chances de uma pessoa se apresentar como participante quando ela tem razões para achar que está contaminada, por ter algum sintoma gripal ou viajado a regiões onde a pandemia estava em estágio mais avançado.
A Espanha anunciou um trabalho similar ao brasileiro, mas só no final de abril, 45 dias depois de decretado o lockdown no país – e a coleta de exames era feita nos postos de saúde com hora marcada, um modelo com grandes chances de não dar certo no Brasil, onde o temor diante do vírus reduziu a procura na rede pública de atenção primária.
Era preciso ir até as pessoas, mesmo que a empreitada exigisse um esforço inédito de mobilização para dar conta das proporções continentais do país. Mas esse não era um empecilho para o Centro de Pesquisas Epidemiológicas da UFPel que, nos últimos 40 anos, se especializou em fazer pesquisas populacionais de porta em porta.
“Pesquisadores em geral trabalham em laboratórios. Eu costumo dizer que, aqui em Pelotas, a cidade inteira virou o nosso laboratório. Nós temos essa tradição. Não sei quantas pesquisas já fizemos visitando as pessoas de casa em casa”, conta o epidemiologista Cesar Victora, professor da UFPel, integrante da Epicovid-19BR.
Cesar Victora e o professor Fernando Barros foram os precursores do método no Brasil, no início dos anos 1980, quando Pelotas foi pioneira em estudos de coorte no país, uma modalidade de pesquisa populacional que acompanha seus participantes com regularidade por um longo período de tempo. A primeira coorte pelotense – hoje já são quatro, todas ainda em andamento – começou com uma iniciativa de Barros, que decidiu investigar os 5,9 mil bebês nascidos na cidade em 1982 para buscar dados para sua tese de doutorado.
A entrevista inicial com as mães foi feita nas maternidades, mas ao tentar rever as crianças em seu primeiro ano de vida, Barros encontrou apenas 20% da amostra – os endereços fornecidos nos cadastros continham erros, e muitos haviam se mudado de casa. A solução, no ano seguinte, já com Victora na pesquisa, foi visitar todas as 68 mil residências urbanas de Pelotas em busca dessas famílias.
“Foi a grande loucura, que deu certo. Batíamos na porta e perguntávamos: tem alguém aqui que nasceu em 1982? Foi um trabalho brutal, que quando terminou, prometemos nunca mais repetir. Só que em 1986, precisamos fazer tudo de novo”, recorda Barros, que também trabalha na Epicovid19-BR ao lado do parceiro histórico.
As análises de dados decorrentes das coortes de Pelotas influenciaram políticas públicas em todo o planeta: Victora e Barros foram os primeiros pesquisadores a oferecer evidências de que o leite materno é o melhor alimento para os recém-nascidos. Eles também mostraram como os três primeiros anos de vida são decisivos para o desenvolvimento das crianças. Graças à dupla, nenês de Pelotas compuseram uma amostra de um estudo mundial da Organização Mundial de Saúde, ao lado de crianças dos Estados Unidos, Gana, Índia, Noruega e Omã, que levou a uma redefinição do padrão de crescimento ideal nos cinco primeiros anos de idade.
Hoje, Victora é um dos 15 cientistas brasileiros mais influentes na ciência segundo o Web of Science Group, que reúne os campeões de citação em uma lista na internet. Ele é o único brasileiro a receber o prêmio Gairdner de Saúde Global, um reconhecimento que o coloca entre os cotados para o Nobel.
O diplomata e a pragmática
A UFPel não é uma instituição de ponta do ensino ou da ciência brasileira. Ocupa a modesta 35ª posição no ranking das melhores do Brasil do Ministério da Educação. Está um tanto isolada, no extremo sul do Rio Grande do Sul, mais perto da fronteira com o Uruguai do que da capital gaúcha.
Do ponto de vista econômico, a cidade representa menos de 2% do PIB do Estado – embora tenha sido um oásis de prosperidade no século 19, quando a elite enriqueceu explorando mão de obra escrava nas charqueadas. Uma das primeiras centrais telefônicas do mundo foi inaugurada lá, quase ao mesmo tempo que as de Londres e Barcelona.
Os jovens ricos iam estudar no exterior e de lá voltavam com gosto refinado por roupas, arte e arquitetura, duas heranças que chegaram aos dias de hoje. Uma pode ser contemplada nos teatros e palacetes que ainda embelezam suas ruas, outra, através do preconceito que subsiste no costume gaúcho de chamar pelotenses de “viados”. Um duplo equívoco que atribui ao requinte do passado uma tendência homossexual e que toma essa última como algo ruim.
A trajetória singular do Centro de Pesquisas Epidemiológicas colocou a universidade no mapa-múndi da ciência, mas Pedro Hallal nem sabia ao certo o que fazia um epidemiologista quando se apresentou à seleção do mestrado na área, no ano 2000. Ele tinha concluído a graduação em Educação Física e bateu na porta da “Epidemio” depois que um amigo o avisou que havia vagas. Mas tomou gosto pela coisa, concluiu mestrado e doutorado, fez estágio de pós-doutorado na tradicional University College of London, na Inglaterra, e aos 26 anos se tornou o mais jovem membro afiliado da Academia Brasileira de Ciências.
Também foi o reitor mais moço a assumir a administração da universidade em 2016. Ele brinca que depois da eleição, guardou o diploma de epidemiologista na gaveta, da qual só sairia quando o estudo sobre coronavírus começou a tomar forma. Mas a verdade é que o mesmo perfil diplomático que o levou a comandar uma instituição de ensino superior antes de completar 40 anos permitiu que desempenhasse com naturalidade o papel político que lhe caberia como líder do projeto sobre a epidemia. Negociou com duas esferas governamentais diferentes – União e governo do Rio Grande do Sul – e tratou com três ministros da Saúde, quase sempre botando panos quentes nas desavenças. Só jogou a toalha em julho, quando já não restava dúvidas sobre o desinteresse do governo Bolsonaro nos dados da pesquisa.
A pitada de coragem que faltava para a turma pelotense abraçar de vez a Epicovid-19BR veio de uma mulher. A ginecologista Mariângela Freitas da Silveira se uniu ao grupo de epidemiologia da UFPel em 2004 para pesquisar doenças infectocontagiosas. Experiente na aplicação de testes de sífilis e HIV em seu trabalho de campo, foi Silveira que tomou a dianteira quando todos seus colegas hesitaram, preocupados com a responsabilidade de lidar com sangue e um vírus altamente contagioso de maneira improvisada.
“Eu trabalho com DST há muito tempo, estou super habituada à pesquisa de campo, nas ruas, testando as profissionais de sexo em motéis, casas de prostituição. Não tenho medo de sair com o teste para o campo. Para mim, era algo factível. É a contribuição que eu pude dar, senão a gente ia perder o trem da história”, acredita a médica.
Teste chinês
Depois que o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, convocou os países a recorrerem à testagem em massa, multiplicaram-se pelo planeta opções de marcas comerciais que prometiam detectar a presença do vírus ou de anticorpos humanos que reagem à infecção. Pressionadas, as agências reguladoras aprovaram de forma emergencial esses produtos. No Brasil, a Anvisa recebeu 157 solicitações de registros apenas entre os dias 18 de março e 16 de abril. Aprovou 39 delas com base nos documentos fornecidos pelos próprios fabricantes, inclusive os ensaios clínicos que atestariam sua segurança, qualidade e eficácia. “É importante esclarecer que, para concessão desses registros, não são realizados ensaios laboratoriais prévios”, alertou, em abril, uma publicação da agência brasileira de vigilância em saúde.
A maioria dos novos testes que chegaram ao mercado eram chamados “rápidos”, porque oferecem um resultado em 15 minutos. Visualmente, se parecem com aqueles testes de gravidez comprados em farmácia, só que em vez de fazer xixi na ponta, a pessoa oferece uma gotinha do sangue, retirada com um “pique” no dedo. Conforme a promessa expressa no apelido do exame, em pouco tempo se formam uma ou duas linhas no visor do artefato: no primeiro caso, o teste é negativo, no segundo, positivo.
O teste rápido não atesta a presença do vírus, como faz o exame PCR, feito a partir de uma amostra coletada raspando uma espécie de cotonete no fundo do nariz e da garganta. Ele detecta os anticorpos produzidos pelo corpo humano como defesa à invasão do organismo pelo coronavírus. Mas isso só acontece depois de alguns dias da infecção e, por isso, o exame não é recomendado para diagnóstico da Covid-19 – nos primeiros dias de infecção, ele pode não detectar o vírus e, quando dá positivo, pode ser tarde demais para isolar o paciente e evitar a proliferação da doença. Para a pesquisa epidemiológica, entretanto, vinha a calhar, inclusive porque não exige estrutura laboratorial para ser feito.
Só que havia uma desconfiança geral no mundo científico sobre sua baixa qualidade. A Espanha precisou devolver lotes desse instrumento comprados da China depois de verificar que eles erravam o diagnóstico em 70% dos casos.
O Ministério da Saúde ofereceu à equipe da UFPel o Wondfo SARS-CoV-2 Antibody Test, um teste rápido chinês aprovado pela Anvisa. O fabricante tinha feito uma prova com 596 participantes e atestava que ele era bastante preciso: errava uma em cada 250 tentativas quando a pessoa não tinha os anticorpos, dando um percentual de 0,4% de falsos positivos, mas não detectava 15% dos infectados, o que ainda assim é um bom desempenho. Além de ser aprovado pela Anvisa, o Wondfo passou por validação nos laboratórios da Fiocruz e foi considerado “satisfatório”.
“Epidemiologista tem que ser muito desconfiado, muito cético para buscar sempre o resultado mais garantido. Quando recebemos os testes, pensamos: ‘deve ser ruim’”, recorda Cesar Victora. O jeito era submeter o produto a análises próprias.
Coalizão universitária
Mas a equipe da UFPel estava sobrecarregada. Enquanto Pedro Hallal tratava detalhes com o Ministério da Saúde para formalizar o convênio do estudo nacional, o projeto piloto no Rio Grande do Sul já estava em andamento – aquele acordado com a secretária Arita Bergmann e apoiado por outros reitores com assento no Comitê Científico do Estado. Uma coincidência fez com que o Instituto Serrapilheira, do Rio de Janeiro, entrasse em contato com Victora oferecendo um financiamento de R$ 1,5 milhão para qualquer pesquisa que estivessem desenvolvendo no momento sobre o coronavírus.
“Normalmente lançamos chamadas públicas para encontrar jovens talentos científicos e financiar suas pesquisas. Mas nessa situação em particular, era uma emergência e então fomos atrás dos melhores grupos no Brasil que investigam epidemiologia, infectologia, pneumologia. O da UFPel é de longe o mais destacado, é uma referência mundial. Sabíamos que era uma aposta garantida”, revela Hugo Aguilaniu, diretor-presidente do Serrapilheira.
Na esteira desse patrocínio, vieram ainda a cooperativa de médicos Unimed e o Instituto Cultural Floresta, uma ONG de ricaços que destina verba para políticas públicas, nem sempre desinteressadamente. O recurso era suficiente para dar o pontapé inicial no estudo regional e, por isso, as duas pesquisas aconteceram de forma simultânea. Era um ingrediente extra no já complicado xadrez em que estavam os epidemiologistas, pressionados para dar uma resposta quase imediata a uma doença desconhecida sem abrir mão do rigor que o método científico exige para ser válido.
Sem conseguir abraçar todas as frentes, a epidemiologia da UFPel contou com o trabalho colegas de outras universidades. A Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (Ufcspa) se encarregou da Wondfo. A reitora Lucia Pellanda instalou um drive thru na Faculdade de Ciências da Saúde de Porto Alegre e convocou voluntários que tivessem PCRs positivos para ver se o teste rápido repetiria o resultado com exatidão. Ela também checou material colhido pela coorte de 1982, ou seja, nunca infectado pelo coronavírus, para garantir que os testes não dariam um falso positivo num universo totalmente negativado. O teste foi aprovado.
Ao mesmo tempo, outras 10 instituições de ensino superior do Rio Grande do Sul chamaram seus alunos da área da saúde – algumas estenderam o convite também a egressos de seus cursos de graduação – para se unirem, voluntariamente, às equipes de coleta da empresa terceirizada, contratada com os recursos doados pela iniciativa privada para o estudo gaúcho. A entrada em campo dos acadêmicos trouxe segurança extra no manuseio do material de pesquisa, para que os testes fossem aplicados sem erros.
A experiência serviu para formular com maior precisão o treinamento dos entrevistadores do estudo nacional, selecionados pelo Ibope. Foram dez sessões preparatórias com as equipes – ao passo que no Rio Grande do Sul, a união das universidades economizou tempo e recursos, com apenas um reforço dos avisos e cuidados, sempre na véspera de cada saída.
“No estudo nacional foram 1,7 mil entrevistadores, e o Ibope precisou contratar enfermeiros e biomédicos para acompanhar o campo. É muita gente e, por isso, precisamos ser contundente nas orientações de segurança”, explica Mariângela Freitas da Silveira.
O rigoroso treinamento com os trabalhadores do Ibope os capacitou para fazer um furinho no dedo dos participantes e coletar a amostra de sangue para o teste. Eles também aprenderam a descontaminar equipamentos e descartar o lixo, foram instruídos sobre como reportar casos positivos para a vigilância sanitária dos municípios e treinados para lidar com a imprensa. Mas não estavam preparados para a hostilidade que marcaria sua estreia nas ruas.
Prisões, polícia e fake news
No dia 15 de maio, antes das 10h da manhã, a equipe da Epidemiologia da UFPel estava a postos em frente aos computadores. Iniciava a primeira etapa do estudo nacional e os cientistas precisavam checar e validar, remotamente, boa parte dos 33 mil testes rápidos que começavam a ser aplicados.
Mas em vez de enviarem os resultados dos exames, os entrevistadores estavam mandando fotos de cards que circulavam em redes sociais e de cartazes colados nas ruas que alertavam a população para não abrir as portas a quem se dissesse pesquisador da Covid-19. Segundo as mensagens enganosas, essas pessoas seriam assaltantes disfarçados.
A desconfiança dos moradores fez com que o trabalho não começasse conforme o previsto em 40 das 133 cidades brasileiras mapeadas para a coleta de testes e dados sobre Covid-19 na primeira onda. Em 20 delas, os entrevistadores chegaram a ser presos e em oito a polícia inclusive destruiu os testes rápidos que seriam aplicados. Ao final da coleta, 43 municípios não foram incluídos no relatório porque o volume de testes e questionários era muito reduzido.
“Foi impressionante. Esses cartazes só podem ter sido distribuídos por robôs, porque recebemos de todos os lugares, de todas as prefeituras”, lamenta Cesar Victora.
A falha foi creditada ao Ministério da Saúde que não priorizou de forma adequada a comunicação com os municípios, abrindo espaço para a desinformação e o pânico. Embora publicamente a pasta tenha dito que fez tudo certo, internamente houve um sentimento de pesar porque os servidores admitiam a falta de fôlego para dar melhor atenção à Epicovid19-BR.
Dentro dos gabinetes em Brasília, imperava a confusão: não bastando a tensão natural decorrente da maior crise sanitária do século, havia uma guerra entre os técnicos da pasta e o presidente da República, Jair Bolsonaro. Desde o início da pandemia, Bolsonaro seguiu pelo caminho contrário ao apontado pelas evidências científicas: sua fórmula para o combater o coronavírus era distribuir cloroquina aos pacientes em qualquer estágio da doença e abrir a economia, mantendo apenas velhos e doentes isolados, mesmo que essas medidas não tenham embasamento em estudos sérios. Sua teimosia foi tal que precisou ser obrigado pela Justiça a usar máscara em público, embora suas atividades sigam gerando aglomerações de pessoas.
Os conflitos derrubaram dois ministros da saúde em menos de 30 dias, justamente no período de planejamento da logística e início da primeira coleta de dados do estudo da UFPel. Quando o protocolo com o Ministério da Saúde foi assinado, o ministro era Luiz Henrique Mandetta, que cairia uma semana depois. Com ele, Erno Harzheim também deixou Brasília e a Epicovid-19BR “ficou sem pai nem mãe” dentro da pasta, segundo o relato de um servidor.
Harzheim até entregou um relatório ao sucessor de Mandetta, Nelson Teich, no qual o estudo constava como uma prioridade. Mas o novo ministro não teve tempo de dar atenção devida ao caso: não durou um mês no cargo, e sua demissão foi anunciada no dia seguinte ao início dos trabalhos de campo, em meio às prisões e agressões aos entrevistadores do Ibope.
“Óbvio que houve descontinuidade e que isso prejudicou a pesquisa. Mas não sou muito de ficar remoendo, não sei se teve desconforto político, problema com egos. Em vez de procurar culpados, atribuo as dificuldades ao fato de fazer às pressas uma pesquisa que demoraria um ano”, desconversou Pedro Hallal em junho, enquanto ocorria a segunda onda de coleta de dados.
Mais tarde ele subiria o tom para cobrar da pasta maior adesão ao projeto e, por fim, acusaria os militares que dominaram o Planalto de irresponsáveis quando ficou evidente que não haveria continuidade na parceria.
A sucessão de problemas na realização do estudo fez os pesquisadores nomearem o grupo de WhatsApp no qual trocam informações de “Sufocovid”.
Desigualdade 2.0
Na origem das perguntas de pesquisa formuladas por Cesar Victora e Fernando Barros na virada dos anos 70 para os 80, estava uma curiosidade: qual era o impacto da desigualdade na saúde dos brasileiros? “Eu queria fazer pesquisa de população, estudar saúde pública, mas aqui no Brasil a gente fazia mesmo era atendimento individual, no ambulatório, no hospital”, recorda o pioneiro Fernando Barros. Quando ele iniciou a coleta de dados nas maternidades, em 1982, por exemplo, não existiam estudos fidedignos sobre mortalidade infantil.
A desigualdade foi a principal pauta de trabalho de Barros e Victora, que ao longo das sucessivas coortes testemunharam melhoras sensíveis nas estatísticas – em muitos casos, derivadas das próprias pesquisas, depois que a Organização Mundial da Saúde e a Unicef descobriram os achados dos pesquisadores em Pelotas e os disseminaram pelo mundo.
No caso da Covid-19, os pesquisadores se surpreenderam ao perceber como a desigualdade social teve um papel determinante na disseminação do novo coronavírus. Os estudos da UFPel verificaram que, ao contrário do que se acreditava, as regiões Norte e Nordeste, tropicais e pobres, apresentaram índices muito maiores de contágio do que o Sul, onde o inverno parecia ser um agravante para um vírus respiratório. Entre as 15 cidades com maior prevalência, 13 estavam na parte de cima do mapa do país. “Quão errados estávamos”, desabafou Victora em um debate virtual promovido pela Universidade de Miami.
Na medição geral, a camada mais pobre da população apresentou o dobro de prevalência do que os mais ricos, uma característica que se manteve estável ao longo das três ondas de coleta de dados, embora o índice de contágio tenha aumentado para todos. “Acho que o Brasil é o único lugar do mundo onde há uma estatística feita com base em um estudo populacional que confirma a grande divisão social que afeta o nosso país e tantos outros da América Latina”, complementou.
A Flourish chart
Os dados também revelaram que os indígenas são o grupo étnico mais vulnerável, e o fator de risco não pode ser atribuído ao local de moradia – as aldeias, no caso – porque a Epicovid19-BR foi realizada apenas em áreas urbanas. Os cientistas ainda não conseguem explicar a diferença, mas há hipóteses. É possível que haja alguma questão biológica que justifique e o ambiente também pode ter influência. “No questionário que fazemos com cada participante, incluímos o número de cômodos da casa e quantas pessoas dividem o espaço. Ainda não foi possível analisar essas informações, mas logo poderemos ter hipóteses mais claras”, acredita Hallal.
A Flourish hierarchy chart
Boicote em Brasília
Publicamente, a equipe da UFPel mantinha o discurso de que depois das falhas na primeira rodada, a relação com o Ministério da Saúde tinha sido azeitada e tudo corria bem. A parte técnica sofreu ajustes, e uma uma funcionária de carreira da pasta foi encarregada de atender o projeto internamente.
Mas a instabilidade política no Planalto gerava dúvidas, colocando em xeque até a certeza sobre as etapas já contratadas pela pasta. “Quando o ministro Mandetta saiu, não conseguimos interlocução. Em certo momento complicou e a segunda onda até correu risco de não sair”, revela Fernando Barros.
Embora o secretário nacional do Ministério da Saúde, Elcio Franco, tenha elogiado publicamente a iniciativa como “uma contribuição do Brasil para a comunidade científica internacional e para gestores e profissionais de saúde”, a informação de que os indígenas estão adoecendo mais que o restante da população nas cidades foi especialmente desconfortável para o governo.
Nos dias que antecederam a apresentação dos resultados da Epicovid19-BR, em Brasília, no dia 2 de julho, houve discordância entre os executivos do Ministério e os pesquisadores. Coube ao secretário Franco evidenciar a discordância entre a equipe da pasta e os epidemiologistas da UFPel: “Para indígenas autodeclarados na região urbana, o valor (de infecção) está acima da média. Precisamos verificar o contexto em que se dá a informação (a autodeclaração) e quais as influências socioculturais podem interferir na coleta do dado”, disse. A autodeclaração é o modelo de determinação de cor ou raça adotado em pesquisas do IBGE desde a década de 1970.
Antes de passar a palavra ao reitor Pedro Hallal, Franco acrescentou: “Hoje, esse tema não será abordado devido a essas análises que precisamos fazer”. Uma semana depois, em 8 de julho, o presidente Bolsonaro vetou medidas emergenciais para proteger indígenas, entre elas o acesso à água potável e a material de higiene, itens indispensáveis na prevenção da Covid-19.
O caso brasileiro não é o único em que governos boicotam o trabalho da ciência. Nos Estados Unidos, o governo de Donald Trump desautorizou uma pesquisa intitulada Seattle Flu Study, quando a iniciativa começava a apresentar dados promissores para o controle do coronavírus.
Novas fases vão até setembro
Os resultados da Epicovid19-BR soterraram de vez a teoria de que o SARS-Cov-2 era um vírus que gostava do frio: em Breves, no Pará, onde as temperaturas nunca baixam de 20 graus, 25% da população tinha sido contaminada até a metade de maio, um volume inédito no mundo. No final de junho, já tabulados os resultados da amostra total de entrevistados, os pesquisadores divulgaram também que a incidência da Covid-19 era semelhante em todas as faixas de idade. “Sob o ponto de vista da literatura, esse é talvez o nosso resultado mais importante. E pode ser extrapolado para o mundo todo, porque não há motivos para imaginar que a resposta imunológica dos brasileiros seja tão diferente”, avalia Hallal.
A Flourish chart
Por outro lado, o estudo colocou em dúvida a teoria de que a maioria dos doentes são assintomáticos. Quando começaram a pesquisa, os epidemiologistas trabalhavam com um dado publicado na revista Nature que 60% dos infectados não apresentava sintomas ou os tinham de forma muito branda. Mas a realidade revelada pela pesquisa brasileira se mostrou diversa: entre os casos positivos testados em campo, apenas 10% não sentiam nada – o que não deixa de ser um alívio para um país que não consegue ampliar a testagem além de casos graves e internações.
Para cada diagnóstico de Covid-19 confirmado pelas estatísticas, o estudo estimou que existem ao redor de seis casos reais não notificados. De cada 100 infectados, um vai a óbito. A prevalência dobrou na população (era 1,9% em maio e passou para 3,8% em junho), enquanto o percentual de pessoas que estão mantendo o distanciamento social caiu de 23,1% para 18,9%.
A Flourish map
Mas depois que Franco disse publicamente que “temos que fazer mais” e que o governo federal iria “analisar quais os próximos passos podem ser dados”, sugerindo uma aguardada continuidade da pesquisa, o Ministério da Saúde silenciou. Até foram agendadas reuniões, mas na prática, o esperado anúncio da quarta onda de coletas, que deveria ter ido às ruas ao final da primeira semana de julho, não se concretizou.
Em 30 de julho, a pasta mantinha o mesmo discurso dado três semanas antes quando a imprensa cobrou a renovação. “O Ministério da Saúde dará continuidade a estudos de inquérito epidemiológico de prevalência de soropositividade na população. Ainda não está definido se será a continuação do Epicovid19-BR, pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) ou por outra instituição, ou PNAD Covid, pelo IBGE. Uma alternativa em estudo é utilizar ambas as estratégias”.
Mas o reitor Pedro Hallal disse que nunca mais foi procurado e o IBGE não respondeu aos questionamentos da reportagem. Além disso, Erno Harzheim, o ex-secretário de Atenção Primária da pasta, assegura que a metodologia da PNAD Covid é incompatível com a da UFPel: “Essa pesquisa é feita por telefone, não tem testagem. Fui eu que desenhei, junto com a presidente do IBGE, Suzana Guerra”.
Vestindo novamente a casaca de vendedor, Hallal voltou sua atenção à iniciativa privada. Depois de um mês de suspense, a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) confirmou, no dia 05 de agosto, a realização das fases 4, 5 e 6 do estudo. Os entrevistadores voltam a campo a partir do dia 20 do mês. “O ideal era não ter esse delay, mas não é um prejuízo grande. O importante é dar continuidade ao estudo”, comemora o coordenador da Epicovid19-BR.
A sequência da pesquisa foi garantida graças a um aporte de R$ 11,7 milhões da iniciativa Todos pela Saúde, um projeto da Fundação Itaú para a Educação e Cultura que criou um fundo especial para ações de combate à Covid-19. O valor é quase a totalidade do investido pelo Ministério da Saúde nas primeiras três fases do estudo, R$ 12 milhões, entretanto, não é o suficiente para a realização completa das próximas etapas. Isso porque agora a UFPel precisará comprar quase 100 mil novos testes rápidos, além de equipamentos de proteção individual para os 1700 entrevistadores do Ibope que vão a campo.
Esses insumos haviam sido doados pelo governo federal nas primeiras etapas da pesquisa, mas sem a renovação do convênio com a pasta da Saúde, eles agora precisarão ser adquiridos diretamente pelo grupo, encarecendo o valor do levantamento. Por isso também está em negociação um segundo aporte de outra instituição para complementar o orçamento das três etapas restantes.
Com a confirmação das novas etapas, o estudo mantém o recorde de participantes em um levantamento populacional sobre o coronavírus e poderá passar a Espanha também no número total de testes aplicados. O país ibérico aplicou quase 187 mil testes – porém em cada uma das três etapas as mesmas pessoas eram testadas, somando 68 mil participantes contra as 89 mil da pesquisa brasileira. Agora, com a confirmação da sequência do levantamento nacional, o Brasil poderá chegar próximo da marca espanhola também em testagens, já que está prevista a aplicação de, pelo menos, 99 mil testes rápidos.
A rede de apoio extraoficial que a UFPel organizou para minimizar o impacto da falta de apoio institucional do Ministério da Saúde será ainda mais importante agora que a pasta deixou o projeto. Ela conta com a Associação Nacional dos Promotores de Justiça e com a capilarizada presença da Igreja Católica. “A Pastoral da Criança está em todo o Brasil e tem contato muito próximo com as comunidades. Apenas em uma das cidades da pesquisa eles não tinham ninguém. Ficaram arrasados”, observa a ginecologista Mariângela Freitas da Silveira.
O vínculo com as prefeituras que já havia sido reforçado com a contratação de um enfermeiro por município, vai ser ainda mais necessário, assim como o suporte das guarnições policiais, que depois de prenderem os entrevistadores passaram a colaborar esclarecendo a população sobre a segurança de receber a pesquisa em casa.
O impacto nos municípios
Para contornar as reticências do governo federal os epidemiologistas da UFPel também se aproximaram de gestores locais, na expectativa de que seus dados possam fazer a diferença. “Fazemos um relatório para cada um dos municípios que recebem os entrevistadores: quantos testes foram feitos, quantos foram positivos, como está o cumprimento do distanciamento social. Com esses dados, é possível fazer um planejamento adequado à realidade municipal. É tão importante isso que lugares onde a pesquisa não foi feita estão fazendo por iniciativa própria. Os gestores públicos se deram conta de que precisam saber o que está acontecendo”, resume Mariângela Freitas da Silveira.
No Norte, depois que os epidemiologistas perceberam que os maiores níveis de contágio estavam em municípios situados às margens do rio Amazonas, que corta a floresta, a Universidade Federal do Amazonas se debruçou para investigar as causas. Descobriu que o problema estava no transporte regional, feito em barcos que acomodam passageiros em redes muito próximas umas das outras, para viagens que podem durar vários dias. “Esse dado é fabuloso para um gestor público, é de aplicabilidade imediata”, exclamou Barros quando se deparou com a constatação pela primeira vez. Embora tenha havido restrições oficiais nas viagens, embarcações clandestinas seguiram transportando pessoas e levando o coronavírus ao interior do Brasil.
No Rio Grande do Sul, os dados da pesquisa compõem os indicadores utilizados no distanciamento controlado, um modelo que calcula o risco de contágio e de sobrecarga do sistema de saúde para determinar quanto de circulação e atividade econômica está permitido para cada região do Estado. Os indicadores são revisados a cada semana, acompanhando a evolução da doença. O reconhecimento de sua utilidade ficou explícito quando foi anunciada a continuidade da iniciativa depois que as quatro etapas foram concluídas: primeiro decidiu-se por mais duas fases, depois mais duas, totalizando quatro novas etapas. E o poder público, que de início não havia injetado recursos no estudo, agora o apoia também financeiramente, através do patrocínio do Banrisul, o banco do Estado.
No Pará, as informações foram consideradas tão relevantes que foi criado um consórcio entre governo e prefeituras para fazer levantamentos mais aprofundados. “Os dados de contaminação são muito relevantes para um gestor, só estão atrás do número de leito de UTIs”, defende Harzheim, que agora presta consultorias a gestores públicos sobre o coronavírus através de uma fundação particular.
O fato é que a Epicovid19-BR superou obstáculos e inspirou uma dezena de outros estudos no país – de Bagé a Pernambuco, passando pelo Paraguai, há vários governos interessados em conhecer mais profundamente o comportamento da pandemia em seus territórios para tomar providências adequadas. A mais recente está sendo realizada no Vale do Rio Pardo, no interior do Rio Grande do Sul, promovida por um consórcio intermunicipal em parceria com a Universidade de Santa Cruz do Sul. Segue a mesmíssima metodologia por amostragem e com quatro etapas, separadas por duas semanas entre si.
“O mais importante para um pesquisador que quiser realizar uma empreitada dessas é lembrar os motivos pelos quais decidiu ir em busca dos dados. Se ele estiver convicto da necessidade que a população tem, não vai medir esforços. Para a gente, era até fácil desistir quando não havia financiamento, quando aconteceram conflitos com governos, ou quando tivemos entrevistadores presos. Por outro lado, a gente sabia da importância dos dados para as pessoas. E por isso, desistir não era uma opção”, conclui Hallal.