Vi o filme de novo hoje, depois de anos sem vê-lo (10 anos?), e o filme continua bom, inclusive nos efeitos, que para minha surpresa estão razoavelmente atuais, diferentes dos outros dois filmes.
Um aspecto do filme que hoje vejo com bons olhos é a queda de Anakin. Anteriormente havia, como muitos, ficado com a impressão de ter sido uma queda abrupta, sem grandes motivações. Mas hoje creio que a estrutura da queda não poderia ter sido melhor (ainda que os diálogos pudessem). E o jeito de encarar a queda é com uma cosmovisão católica. Isso se dá principalmente pelas semelhanças evidentes entre a Ordem Jedi e a Igreja, em seus dogmas, em seu poder temporal e em seus preceitos sacerdotais.
Primeiramente, já no começo do filme vemos Anakin matando Conde Dooku, sendo induzido a fazê-lo por Palpatine, porque ele era "muito perigoso para ficar vivo". Depois de toda uma aventura vemos, já em Coruscant, a apreensão de Anakin ao saber que Padme estava grávida, e fica claro que seria uma questão de tempo para ele ser expulso da Ordem Jedi. O que temos estabelecido até aqui? Anakin é um jovem muito talentoso, destinado a grandes feitos, e tem má consciência por não seguir os preceitos jedis, e anseia por uma vida leiga (ou melhor dizendo, com uma faceta leiga), ao lado da mulher e filhos, o que a rigidez dos Jedi não permite. Isso é, Anakin é como um padre talentoso, que tem dificuldades de seguir a disciplina e os ensinamentos da Igreja.
Mais tarde ele se vê envolvido em intrigas: o Conselho Jedi, temendo que Palpatine se mostrasse um ditador, pede que Anakin vigie o chanceler (que Anakin considera um amigo e mentor), o que parece quebrar os preceitos Jedis. Palpatine usa isso para pintar os Jedis como sedentos de poder. Ou seja, aqui ele fica descontente com a hierarquia da Igreja e as atitudes moralmente questionáveis de seus membros. Além disso, ele descobre, por meios sobrenaturais, que Padme irá morrer, e o conselho da "Igreja" é que, tendo visto o futuro, deve aceitar a ordem natural das coisas, a vontade de "Deus". Além de problemas "hierárquicos", agora ele tem problemas "doutrinários", pois deseja fazer algo que traria um benefício terreno e momentâneo, mas a Doutrina o impede, por mostrar que essa atitude constituiria um pecado. Está aqui a receita de um fundador de igreja protestante: tanto o desconforto com os pecados de membros da Igreja, quanto afirmação doutrinárias incômodas que ele, em sua livre interpretação da Doutrina, deseja contrariar.
Palpatine coloca as cartas na mesa como o Lorde Sith, e nesse diálogo apresenta-se como um relativista moral: os Jedis são rígidos, obtusos, descartam dogmaticamente o Lado Negro da Força, enquanto os Sith usam todos os aspectos da Força para sua vontade. Isso é praticamente uma defesa do relativismo moral e do humanismo radical: o Bem e o Mal não existem, a natureza está aí para ser usada como melhor for para nós. Mas esse discurso não faz Anakin ceder ao lado negro. Ele reporta Palpatine ao Conselho Jedi. Antes disso, aliás, ele se reconciliara com Obi-wan, separando-se dele em boníssimos termos, parecendo não ter mais grandes objeções com a hierarquia jedi como um todo. Quer dizer, nem o protestantismo e nem o relativismo é profundamente tentador ao Anakin.
Por um momento de fraqueza, porém, ele retorna ao Senado, onde encontra um inofensivo Palpatine no chão, e um Mace Windu poderoso apontando o sabre para ele. Palpatine diz que "estava certo, os jedis estão assumindo". Então, Mace Windu, pragmaticamente e de maneira pouca religiosa, decide matar Palpatine, porque não tem fé (justificadamente) no poder do Senado e das Cortes, e porque o Palpatine era (de novo!) "muito perigoso para ficar vivo" - essa semelhante superficial entre Palpatine e Windu dá ao Anakin um gatilho moral para se opor aos Jedis. Afinal, ele já sairia da Ordem Jedi de qualquer maneira, Palpatine estava enfraquecido e deformado, prestes a morrer, e Mace estava a ponto de matá-lo. Ele poderia impedir Windu, e levar os dois, enfraquecidos, ao julgamento das Cortes e do Senado. Ele teria ajudado a derrotar o Lorde Sith, teria impedido os Jedi de cometer uma injustiça, e, como um moderno "isentão", sairia limpo e moralmente superior aos dois lados da disputa, poderia até sair da Ordem Jedi de maneira razoavelmente justificada, viver com Padmé e quem sabe, com Palpatine vivo e lhe devendo a vida, pudesse aprender com ele e tirar daí benefícios, ainda que não quisesse ceder completamente ao Lado Negro - ele só iria, no máximo, dar uma "pecadinha" para arrumar as coisas, mas depois voltaria ao normal. Se Mace Windu estivesse certo em seu temor a Palpatine, bem, isso não seria um erro dele, e sim um desvio do Senado e das Cortes.
Mas não - para a sua surpresa, ao impedir Mace Windu, Palpatine surge repentinamente forte e poderoso. "Ilimited power!". Mace Windu é eletrocutado e jogado pela janela. Ele ajudou um Lorde Sith a matar um Mestre Jedi que havia ido prendê-lo...! Ele se joga numa cadeira baixa, e exclama "O que eu fiz?". Palpatine levanta e aparece imponente e alto frente ao Anakin. Por causa de uma ÚNICA má decisão, Anakin se vê aos pés de um Palpatine deformado, mas forte e terrível, a própria imagem do Demônio. Da cadeira para os joelhos, a coisa se dá suavemente.
Isto é, não foi ao cortar o braço de Windu que Anakin abandonou a doutrina jedi. Foi ao se ver, repentinamente, aos pés de Palpatine. É claro, ele poderia se arrepender, fugir, admitir que fizera uma grandessíssima merda. Mas, como muitas pessoas, ele abraça diversas narrativas que, até o momento, não eram capazes de atraí-lo para o Mal, mas que agora lhe dariam justificativas morais para posição que inadvertidamente se encontrara. Agora, acreditando que os Jedis eram corruptos e dogmáticos e queriam tomar o controle da República, ele está justificado em derrubá-los. No fundo ele nem deve acreditar nisso, mas é conveniente que defenda esses valores para justificar a atitude que tomou. Analogamente, acreditando que o Lado Negro não é algo reprovável, que o Bem e o Mal não existem, ele pode tomar sua posição como aprendiz de Sidious: ele não teria deixado os caminhos da Força, apenas explorou novos aspectos dela, e ganha esperança de benefícios terrenos.
A partir daí as coisas acontecem de forma muito rápida, ele se vê na posição de destruir o templo jedi, depois vai a Mustafar para matar os separatistas, e nesses eventos é que experimenta o Lado Negro da Força. E a partir daí os diálogos são meras racionalizações. "Eu vi através das mentiras dos jedis", "Eu não temo o ladro negro como você, "Eu trarei justiça (...) para meu novo Império"... Tudo isso é bobagem de quem, no calor do momento, está criando ideologias para justificar um rumo totalmente errado e inesperado que tomou na vida. Então, é até compreensível o jeito um tanto quanto afetado de Hayden atuar, porque é o jeito de um sujeito muito jovem que se vê, com boas intenções, preso numa armadilha e condenado ao Inferno. É esperado que suas ideias pareçam desconexas e pouco justificadas, afinal sua queda não teve nada a ver com ideias, e sim com boas intenções - com as quais, já diz o ditado, o Inferno está cheio. Dessa forma, não é razoável supor que o filme nos convencesse desses motivos da queda de Anakin, no fundo nem ele foi convencido, mas abraçou esses motivos a posteriori. E esse é um ensinamento essencialmente cristão: a de que a santidade não é garantida aqui na Terra, podemos sim, por LIVRE ESCOLHA, ainda que de forma impensada, cometer um grande pecado, e o santo é justamente é aquele que está profundamente ciente dessa realidade e não tem o Céu por garantido, mas suplica a Deus pela virtude e pelo auxílio de se manter na trajetória correta.
Aliás, sob esse ponto de vista, vemos que aquele papo do fandom (e que foi comprado em The Last Jedi, se me lembro bem), de que os Jedis são rígidos, o "equilíbrio da força" é uso equilibrado do lado negro e do lado "branco" (muitos vão mais longe e dizem que, por exemplo, Anakin equilibrou a Força ao matar muitos jedis, balanceando a desproporção entre o número de Jedi e Sith), enfim, tudo isso me parece um jeito inadequado de interpretar a saga - aliás, esse é um jeito que segue de perto o discurso de Palpatine. O jeito mais adequado, a meu ver, é uma visão mais cristianizada, uma visão dita maniqueísta: os Jedis são bons e manipulam de modo apropriado a Força, os Sith são ruins e desequilibram a Força, e um único Sith é capaz de causar grande desiquilíbrio. Anakin traz equilíbrio à Força apenas quando mata Darth Sidious lá no Ep. VI. Assim como Gandalf ressuscita mas peca, não sendo uma imitação perfeita de Cristo, Anakin também nasce virginalmente e traz equilíbrio a força, mas (até porque (1) Shmi não era imaculada e (2) Anakin não era uma pessoa divina) no final das contas é tentado e cai. Se não caísse, talvez tivesse ido ao exílio e derrotado Palpatine anos depois em um grande duelo, e a profecia seria cumprida de qualquer forma. Nesse sentido é que a profecia foi má interpretada: Anakin traz equilíbrio a força, mas não foi uma pessoa virtuosa. De qualquer forma, a partir daí não há mais Sith, apenas pessoas más que podem até usar a Força, mas não são capazes de desequilibrá-la. Isso também lembra O Senhor dos Anéis, em que Sauron foi a última encarnação ou representante sobrenatural do Mal, e sua queda é um prenúncio e versão rudimentar do próprio Apocalipse, mas isso não significa que formas humanas e mais naturais do Mal não vão existir.