Bem vindo ao mundo real
Como "Matrix" definiu o cinema do novo século há 20 anos
Eram meados de 1998 quando o produtor Joel Silver entrou em uma sala de reuniões na Warner, em Los Angeles, e encarou um grupo de executivos apreensivos. Em uma cidade movida a dinheiro, os engravatados queriam saber como andavam as filmagens de uma ficção científica com toques filosóficos e existencialistas, que muitos não entendiam o conceito e na qual o estúdio havia investido US$ 60 milhões. Era muita grana em jogo para um filme que estava sendo rodado na Austrália, literalmente do outro lado do mundo, com dois diretores iniciantes, Andy e Larry Wachowski.
Silver entregou a cada um dos executivos uma bíblia de 600 páginas com o filme inteiro narrado em storyboards, e exibiu oito minutos de material finalizado. Queixos foram ao chão. Muitos engoliram em seco. O projeto, ao menos do ponto de vista corporativo, estava à salvo.
O que ninguém esperava àquela altura era que "Matrix", que chegou aos cinemas em 31 de março de 1999, fosse se tornar não só a maior bilheteria do estúdio até então (US$ 460 milhões, soma que foi engolida alguns anos depois por "Harry Potter"), como também uma da aventuras de ficção científica mais influentes da história, ao lado de "Metrópolis", "2001", "Star Wars" e "Blade Runner".
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"O que é Matrix?"
Essa foi a pergunta que conduziu a campanha, respondida em um filme sobre a busca pela identidade. Neo (Keanu Reeves) é um hacker incerto da estabilidade no mundo. Ao ser perseguido por agentes do governo, em especial o violento e pragmático Smith (Hugo Weaving), ele é procurado por dois revolucionários: Trinity (Carrie Anne Moss) e Morpheus (Laurence Fishburne), que lhe revelam que a realidade como ele conhece não passa de uma simulação gigante de computadores.
No mundo real, os humanos são cultivados e aprisionados em máquinas enormes, com a energia de seu corpo alimentando essa inteligência artificial. Em choque, Neo descobre que ele pode ser o Escolhido de uma profecia antiga, o único capaz de vencer a tirania das máquinas e libertar a raça humana. "Wow!"
Curiosamente, a festa no cinema em 1999 seria de "Star Wars - Episódio 1: A Ameaça Fantasma", que estreou um mês e meio depois de "Matrix". Foi inevitável. Ante a revolução propagada pelos diretores, os Irmãos Wachowski, e o abalo sísmico sentido pela indústria que percebia que teria de repensar o conceito de ação, aventura e ficção científica no cinema, o filme de George Lucas parecia uma relíquia, um artefato envelhecido pertencente a outra era, provavelmente em uma galáxia muito, muito distante.
É até difícil imaginar o impacto de "Matrix" no cenário do cinema atual, dominado por super-heróis dos quadrinhos e aventuras visualmente impecáveis. Em 1999, porém, foi um fenômeno, um conceito original que dominou a cultura pop sem pertencer a nenhum produto pré-existente, sem adaptar nada que já existisse em outro formato ou outra mídia.
"Matrix" mudou o mundo por ser verdadeiramente novo.
Infelizmente, ninguém pode dizer o que é a Matrix. Você tem que ver por si mesmo.
Morpheus (Laurence Fishburne)
Influências estéticas
Embora "Matrix" seja um filme original, suas influências são explícitas. Assim como Quentin Tarantino, os Wachowski emprestaram sequências, soluções narrativas e até cenários de outros filmes. O caldeirão de ideias, porém, resultou em uma aventura única, que começava em filosofia ("Simulacros e Simulação", de Jean Baudrillard, foi leitura obrigatória antes mesmo de o elenco abrir o script), passava por cyberpunk (William Gibson e seu "Neuromancer" permeia a narrativa de ponta a ponta) e emprestava muito de anime (principalmente "Akira" e "Ghost in the Shell") e histórias em quadrinhos ("Os Invisíveis", de Grant Morrisson, é praticamente um proto-"Matrix").
Parte dos cenários foram reciclados de "Cidade das Sombras", rodado um ano antes na Austrália e que traz conceitos de realidade e ilusão similares. Chamar o diretor e coreógrafo chinês Yuen Woo-Ping também não foi por acaso, já que parte das sequências de luta são herdeiras diretas de seu trabalho em "Lutar ou Morrer", que Jet Li protagonizou em 1994.
As fontes já estavam no mundo, mas ninguém ligou os pontos como "Matrix". Depois de seu lançamento, Hollywood se apressou em abraçar suas ideias e soluções. Woo-Ping, por exemplo, foi convocado para coreografar a aventura "As Panteras" no ano seguinte e "Kill Bill" em seguida. O sucesso de "Matrix" também ampliou a percepção da plateia para seu estilo de artes marciais fantástico que compõe a narrativa de "O Tigre e o Dragão", de Ang Lee.
O boom dos super-heróis modernos também teve nele seu ponto de partida, já que a história é a clássica jornada do herói recheada com conceitos fantásticos, poderes sobrenaturais e visual revolucionário. Os trajes de couro em "X-Men", que Bryan Singer dirigiu em 2000, são influência direta do visual de "Matrix", bem como a estética sombria e sexy de "Anjos da Noite", que arriscou uma mistura similar, substituindo a ficção científica pelo cinema de terror. Mas nada celebra mais a influência de "Matrix" do que o aval de Steven Spielberg, que optou pela ficção científica de cores dessaturadas em "Minority Report" e em "Guerra dos Mundos".
Em câmera lenta
De todas as contribuições de Matrix para a cultura pop do novo século, talvez a maior tenha sido o "bullet time", o efeito especial em que o tempo parece congelar, com a câmera circulando livre em torno da ação. Não foi uma criação específica para o filme, mas teve nele sua evolução e popularização. O supervisor de efeitos visuais do longa, John Gaeta, aponta o anime "Akira", de Katsuhiro Otomo, e o trabalho de Michel Gondry em seu videoclipes musicais como maior inspiração artística para o efeito.
Rodar cenas de ação em câmera lenta já fazia parte do repertório da lendária diretora Leni Riefensthal, em especial no documentário "Olympia", e até no anime clássico "Speed Racer". A inovação de Gaeta foi colocar a câmera em movimento em torno de pessoas e objetos que também se moviam, com resultados revolucionários. Depois de "Matrix", o "bullet time" se tornou a assinatura visual padrão, fosse em comerciais de TV, fosse em videogames, como "Max Payne", que usa o termo literalmente.
Em alguns casos, seu uso é tão gratuito que não causa espanto, mas risadas, como na adaptação do game "Wing Commander". Em outros, o efeito foi integrado com sucesso na narrativa, como em "O Confronto", com Jet Li; "Homem-Aranha", de Sam Raimi; "Swordfish", com John Travolta e Hugh Jackman; "300", de Zack Snyder; e as sequências com o velocista Mercúrio em "X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido".
Espelhos da Matrix
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Universo Wachowski
Andy e Larry Wachowski surpreenderam o mundo com "Matrix". Depois de rodar o filme, e também suas sequências, quem continuou a surpreender foram eles --ou melhor, elas. Ao filmar "V de Vingança", que a dupla escreveu e produziu, começaram a espalhar boatos de que os cineastas preparavam transição de gênero. Quando eles rodaram "Speed Racer", também na Alemanha, Larry assumiu sua transição e passou a responder como Lana. A ficção científica "A Viagem", em que a dupla dividiu a direção com Tom Tykwer ("Corra Lola Corra"), foi o primeiro grande filme comandado com uma artista trans. Em 2016 foi a vez de Andy também se assumir como mulher, passando a responder como Lilly Wachowski. As duas se tornaram inspiração para jovens trans e passaram a falar mais abertamente de sua arte e o impacto de sua transição em suas escolhas, em especial após comandarem a série "Sense 8" para a Netflix.
Dupla dinâmica
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Keanu Reeves
A primeira opção do estúdio para ancorar o filme era Brad Pitt. Os Wachowski queriam Johnny Depp. Por fim, o meio termo foi Will Smith, que surgia como o grande astro da época. O ator, porém, teve dificuldades em entender o conceito. Após flertar inclusive com uma mudança de gênero para o protagonista, com Sandra Bullock no papel, todos concordaram com Keanu Reeves. E hoje é impossível pensar em outro ator para o papel. Reeves, hoje com 54 anos, é o rei da reinvenção em Hollywood, e sempre jogou em suas próprias regras.
Quando parecia que Reeves caminharia pelo mesmo ar rarefeito de Tom Cruise, em especial depois de "Constantine", ele continuou oscilando entre espetáculos hollywoodianos e esquisitices independentes. Recentemente, a série "John Wick" o recolocou no patamar dos grandes do cinema de ação. Sempre em seus termos.
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Laurence Fishburne
Fishburne já era veterano do cinema e teatro quando foi convocado para "Matrix", em um papel originalmente oferecido a Val Kilmer. Embora tenha começado ainda criança na TV, foi no drama "Apocalypse Now", de Francis Ford Coppola, que ele foi notado. Não só pelo papel, um soldado arrogante de 17 anos, mas por ter mentido a idade para ganhar o trabalho: ele tinha apenas 14 anos quando começou a filmar a epopéia conturbada da Guerra do Vietnã, e de fato 17 quando as filmagens terminaram.
Seu papel mais conhecido foi o do editor do Planeta Diário, Perry White, em "O Homem de Aço" e em "Batman Vs Superman: A Origem da Justiça", ambos da DC. Curiosamente, Fishburne saltou para a concorrente Marvel ano passado em "Homem-Formiga e a Vespa". E ele ainda não tirou do papel uma ideia que vira e mexe é levantada em entrevistas: protagonizar e produzir uma adaptação de seu livro preferido, "O Alquimista", de Paulo Coelho.
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O futuro já era
"Matrix" criou um universo expandido uma década antes de a Marvel levar esse conceito ao cinema. O filme obviamente era uma história fechada, mas as Wachowski temperaram seu mundo com elementos que poderiam ser ainda mais elaborados. O conceito de produto multiplataforma decolou.
"Animatrix" foi lançada em 2003 com nove histórias boladas pelas Wachowski ao lado de gênios da animação japonesa, que mergulhavam fundo na mitologia apresentada pelo primeiro filme, armando o cenário para as continuações. "The Matrix Comics" teve dois volumes de histórias também ambientadas no mundo de "Matrix", assim como três videogames expandindo seus conceitos: "Enter the Matrix", cuja trama seguia paralela à de "Matrix Reloaded"; "The Matrix Online", gigantesco MMORPG, lançado em 2004 e descontinuado em 2009 por conta da baixa adesão do público; e o mais tradicional "Path of Neo".
Mas foi no cinema que "Matrix" de fato expandiu suas fronteiras, com dois filmes lançados em 2003. "Matrix Reloaded", embora sofra com o excesso de ideias e tramas paralelas, é uma aventura de ficção científica elegante e em grande escala, materializando alguns conceitos sugeridos no filme original, como a cidade subterrânea de Zion, último refúgio dos humanos na Terra. O filme termina com um gancho para "Matrix Revolutions", que tem como ponto alto a conclusão de todas as amarras soltas de seus antecessores. É uma aventura ambiciosa, que nem sempre está à altura de suas ideias. Ainda assim, manteve pura a visão de seus criadores: ame ou odeie, os Wachowski atravessaram o processo de criar filmes revolucionários e caríssimos em Hollywood sem comprometer a história que queriam contar.
Desde o fim de "The Matrix Online", uma década atrás, o mundo imaginado por Lana e Lilly Wachowski encontra-se adormecido. Em 2017 a Warner anunciou que o roteirista Zak Penn estava trabalhando em um reboot, uma nova aventura inserida no mundo criado pelas Wachowski, mas desconectado das cineastas e também de seus personagens. Nada, entretanto, caminhou. É inevitável que, um dia, o estúdio decida reviver "Matrix" --uma propriedade intelectual tão rica e com tantas possibilidades é tentadora demais para uma corporação lhe virar as costas. A essa altura, porém, o futuro não importa. O que foi alcançado 20 anos atrás, e a revolução que se seguiu, foi um fenômeno que dificilmente será repetido.
Podem tentar à vontade: a Matrix ainda é o mundo colocado diante de seus olhos para cegá-lo da verdade.