Editoras recebem Machado, não reconhecem e recusam
Folha envia, sem identificar, originais de romance pouco conhecido do escritor carioca a seis das maiores editoras do país; três não responderam, três rejeitaram
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IVAN FINOTTI
da Reportagem Local
Na semana passada, o escritor argentino Ricardo Piglia disse à Folha que, se Jorge Luis Borges fosse um desconhecido e apresentasse seu maior livro a uma editora hoje, não conseguiria publicá-lo. "Diriam que contos não vendem", afirmou Piglia.
Não é uma hipótese absurda. Há seis meses, a reportagem enviou, sem identificar, um pequeno romance de Machado de Assis a seis das maiores editoras de literatura brasileira, segundo o Sindicato Nacional dos Editores de Livros.
O texto, chamado "Casa Velha", foi mandado pelo correio, sem título. Impresso por computador, encadernado com espirais por uma papelaria comum, o livro era semelhante às dezenas que chegam semanalmente às editoras. O nome que constava na assinatura era o de um desconhecido. Foi triplamente recusado.
Das seis editoras que receberam esses originais, três não responderam nem acusaram recebimento (Record, L&PM e Ediouro).
Já as editoras Companhia das Letras, Objetiva e Rocco responderam (as duas primeiras em novembro; a última, no mês passado).
As respostas -enviadas por um correio eletrônico (Hotmail), criado especificamente para esta reportagem- foram basicamente a mesma: obrigado, não (veja quadro abaixo).
Nenhuma das editoras que respondeu reconheceu que se tratava de um livro de Machado de Assis, o maior autor nacional.
É claro que "Casa Velha" não é um "Dom Casmurro". É difícil de achar nas livrarias e muito fácil encontrar pessoas que jamais ouviram falar dele.
Também é claro que um autor escrevendo na entrada do ano 2000 como se estivesse um século atrasado pode muito bem não ser interessante comercialmente.
"Acho normal que uma editora recuse", afirma o professor de literatura brasileira da USP Valentim Facioli, 57, estudioso de Machado de Assis "há 35 anos ou 40 anos".
"Uma coisa é um texto ser reconhecido como de Machado. Outra é um desconhecido escrevendo como realista do século passado. O fato é que esse texto é bem dezenovenovista", diz Facioli.
"Casa Velha" foi publicado pela primeira vez em 1885 e 86, dividido em 25 episódios na revista para senhoras "A Estação". O romance é ambientado no Rio de Janeiro, em 1839. A dona de uma casa oligárquica quer impedir que seu filho se case com uma de suas protegidas. Para ajudá-la, chama um padre, que mais tarde narrará esses eventos ao leitor.
As três editoras que recusaram Machado de Assis garantem que o texto foi lido e avaliado (leia texto à esquerda).
Na editora Objetiva, por exemplo, chegaram 547 originais em 1998. De 1º de janeiro deste ano até sexta-feira passada, já são 232. "Lemos, no mínimo, 20 páginas de cada livro", diz Isa Pessoa, diretora editorial da Objetiva. "Temos duas pessoas para isso e também usamos colaboradores de fora."
A editora Rocco recebe cerca de 40 originais por mês. "Há períodos em que o número chega a 80", diz a gerente editorial Vivian Wyler. Três funcionários são encarregados da primeira leitura e, quando interessa, o texto é passado para uma segunda e uma terceira opinião. "No mínimo, são pessoas com mestrado em literatura."
Já na Companhia das Letras, que recebe cem originais em português por mês, o trabalho de avaliação é feito por sete pessoas. "Fora isso, temos pareceristas especializados", afirma Ruth Lanna, que gerencia a seleção de manuscritos.
As três editoras já descobriram autores por esse método: Antenor Pimenta, Maurício Luz (Rocco), Cristina Moutella, Fernanda Young (da Objetiva), Sílvia Zatz e Elvira Vigna (Cia. das Letras).
Polêmica
Situar "Casa Velha" na obra de Machado de Assis é problemático. Para o inglês John Gledson, um dos mais respeitados especialistas no autor, o romance foi escrito em 1885, ou seja, entre "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1880) e "Quincas Borba" (1886-91). "Foi depois da crise dos 40", diz Gledson. É a chamada fase realista -a melhor de Machado.
Lúcia Miguel Pereira, uma das mais importantes estudiosas de Machado, morta há 40 anos, não concordaria. Para ela, que foi a responsável pela publicação de "Casa Velha" pela primeira vez em livro, em 1944, o romance sempre foi da primeira fase, escrito nos anos 70.
"Não gosto de comparar, mas é um livro de primeira importância", resume Gledson. "É possível que o próprio Machado não pensasse assim, pois ele não reuniu os episódios para publicação em livro, como fez com outras obras. Isso coube à Lúcia Miguel Pereira."
Mesmo assim, Gledson encontra elementos que considera suficientes para situar "Casa Velha" na fase realista. "Tem certas coisas, como o fato de o narrador não ser confiável. Ele não é observador, faz parte da história, age", explica.
E por que Lúcia Miguel Pereira pensava diferente? "Falta aquela ironia típica machadiana. Não há os capítulos curtos, as brincadeiras de agredir o leitor. A falta dessas coisas estranhas, que questionam a própria narração, faz o livro não se parecer com um Machado da segunda fase", diz Gledson.
Para quem se interessar, há três edições, todas elas dificílimas de ser encontradas em livrarias (não confundir com "Relíquias de Casa Velha", reunião de contos).
Uma versão está no segundo volume -intitulado "Contos"- das obras completas de Machado de Assis da editora Nova Aguilar.
As outras duas são da Garnier e da Paz e Terra. Essa última está esgotada há cinco anos.
Mais certo é encontrar "Casa Velha" na Internet. O livro completo pode ser lido no site da Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro:
www.futuro.usp.br/bibvirt.
Link:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq21049903.htm