Compreendo o paralelo de Rosa com Dostoiévski, embora acredite que tu tenhas ligeiramente deslocado o eixo original da questão. Tentarei explicar-me melhor.
A prosa desleixada de Dostoiévski é sua marca registrada, e como tal pode tomar forma de virtude ou vicio dentro do texto, dependendo do gênero que se trate. Nas novelas ("Notas do subsolo", "Sonho de um homem ridículo, "A dócil") e narrativas breves, cujo caráter é o de tensão concentrada, o estilo de escrita epilético do Dostô cai perfeitamente e prende o leitor com um "mata-leão" estilístico: seco, rasteiro e violento; em romances extensos ("Os demônios", "Irmãos Karamazov") este estilo mata-leão tende a degenerar em algo sufocante, desconfortável e hostil, tornando irregular a própria qualidade das obras, e a narrativa, desta maneira, oscila num ritmo de montanha
russa (
olha só!). Em ambos os casos o deixar-se "invadir pela concretude das palavras e dos silêncios, o espaço da oralidade" é notável, embora creio que nem sempre desenvolvido consciente e exitosamente pelo autor. Atrevo-me a dizer: o apelo estilístico causado por Dostoiévski se dá à revelia do próprio Dostoiévski.
Com Rosa, porém, tudo é detalhadamente lapidado, da primeira até a última frase, cada qual prenhe de significado, onde não apenas os eventos e pensamentos descritos, mas as próprias palavras parecem querer insinuar algo por si mesmas. Como entender que esta obsessão pela construção sintática possa, ao mesmo tempo e sem prejuízo para nenhum dos lados, ser índice do comprometimento do autor em face a fala sertaneja "bruta", enquanto expressão máxima da língua largada do jagunço?
Erich Auerbach, no seu estudo acerca da representação da realidade na literatura ocidental, pode oferecer-nos uma pista. Ao analisar uma cena do banquete entre mercadores incultos que alimentam ambições mesquinhas, composta por Petrônio no primeiro século da era cristã, Auerbach faz o seguinte comentário:
Cenas como, por exemplo, o discurso do vizinho de mesa, ou a disputa entre Trimalção e Fortunata, mostram, certamente, um pensamento dos mais baixos e vulgares, mas o fazem com um tal refinamento de motivos entrecruzados, com tantos pressupostos sociológicos e psicológicos, que nenhum público popular suportá-lo-ia. E o baixo estilo da linguagem não está destinado, certamente, ao riso [leia-se aqui "interesse"]
de uma grande multidão, mas é o elegante condimento para o gosto de uma elite social e literária que observa as coisas de cima [...]
Coloquei alguns excertos em negrito afim de demonstrar o quão equivocadas são certas defesas que algumas pessoas insistem em levantar a favor do Guimarães Rosa, dizendo que o povão não o aprecia unicamente por motivos de baixa instrução formal, sendo que na verdade
o próprio fato de alguém receber uma formação escolar superior já transforma-o numa espécie de pária dentro da camada popular, elevando-o a uma elite, se não social, ao menos "literária", acadêmica e/ou cientifica. Infelizmente este fenômeno fica ofuscado pelo receio de qualificar algo como provindo de determinado "elitismo", devido as conotações pejorativas associadas a tal termo numa sociedade democrática (muitíssimo imperfeita, é claro, mas democrática).
Até aqui nada falei de novo, pois minha problematização surge justamente no momento em que alguns membros desta suposta elite rejeitam a proza roseana através de argumentos capciosos e discursos apologéticos do gênero "um escritor que trabalhe com material popular deve escrever de forma simples e inteligível para todos!", concebo existir nestas reivindicações aspectos que ultrapassam a mera opinião.
Voltemos novamente a Dostoiévski, sabendo ser muita profícua uma comparação entre os dois mestres, porquanto depara-se com exigências distintas de leitura, ambas cumuladas de uma carga de oralidade que, entretanto, são acionadas cada uma de uma forma. A
locução informal e, digamos, "nervosa" (penso sobretudo nas "Notas do Subsolo") do Dostô, é percebida de forma
imediata, bastando decodificarmos as frases de suas obras para notarmos que não são "beletristas" em sentido lato, muito pelo contrário, parecem jogadas, escritas como com pressa, sem (pelo menos aparentemente) considerações de estilo ou ritmo da narrativa, transparecendo, isto sim, uma ânsia quase mistica por transmitir ideias ou eventos que praticamente nunca são recepcionadas pelo autor, mas se impõe, sem mais nem menos, na corrente do texto.
Em Guimarães Rosa há o reverso: o beletrismo é evidente, o apuro com cada minúscula passagem é assombroso, trata-se, não obstante, de uma
locução informal extremamente pesada, na qual o mero ato de decodificar orações/identificar neologismos e figuras de linguagem/perceber os elementos orais -- NÃO BASTA para revivificar no leitor a plena percepção da voz (em todos os sentidos) poética (roseana) sertaneja (popular) presente no texto. É necessário ativar de forma
mediata, através da vocalização (ou declamação), o caráter popular da prosa do "Grande Sertão...".
"...é preciso... se deixar invadir pela concretude das palavras e dos silêncios, o espaço da oralidade..." --
invadir é exatamente o ponto paradigmático: em Dostoiévski esta invasão, esta imersão na língua alheia é possível sem um pio, na tão somente pura atenção de nossa leitura; em Rosa esta invasão só é efetiva quando esgarçarmos a própria voz afim de tonificar a de Riobaldo, pois Rosa pede mais do que nossa identificação/simpatização com a trama ou os personagens -- ele exige também uma incorporação na fala de Tatarana, como se tivéssemos de nos deixar possuir totalmente pela ficção. Tal leitura implica numa performance pessoal e isolada do leitor.
Desde Walter Benjamin sabe-se que o romance moderno pressupõe um leitor solitário, refastelado em sua intimidade silenciosa com um livro em mãos, enquanto a narrativa tradicional, representada pelos contos/anedotas/fábulas/canções/causos populares propagados de boca em boca, direcionam-se diretamente a ouvintes que compartilham um horizonte de crenças e concepções comuns, possibilitando, desta forma, a transmissão da experiência -- transmissão esta ausente ou irreconhecível na ligação isolante do leitor com o romance moderno. Esta, segundo Benjamin, seria a crise da narrativa e, por conseguinte, da própria experiência a partir do séc. XVII.
Rosa tentou (terá conseguido?) distensionar tal dicotomia, utilizando-se, para tanto, do elemento dos dois mundos (popular e literário -- oral e escrito) em vistas de fundi-los harmonicamente, propiciando seu móbil duradouro (a palavra escrita) enquanto suporte integrado com sua mais plena expressão (a declamação ou vocalização).
Nada se perde ao lermos Dostoiévski numa biblioteca pública, mas é frustante ler Rosa em tais condições.