CLAMP - O Jogo das fantasias distópicas
por Paulo Eduardo
AVISO: O texto abaixo contém alguns spoilers de obras do CLAMP, especialmente X 1999 - O Filme
A fantasia é comumente descrita como um gênero caracterizado pelo escapismo, pela evasão às mazelas do cotidiano por meio da construção de realidades utópicas onde o que deve predominar são formas de pensamento lineares nas quais considerações mais sofisticadas, quer sejam elas sobre a natureza humana , quer sobre temas relativos ao nosso próprio mundo, são, via de regra, totalmente estranhas. Sob essa ótica, as obras qualificadas como tal devem evitar os matizes, os meios-tons., limitando-se a expressar juízos de valor puramente maniqueístas a fim de não comprometer a integridade daquele palco habilmente elaborado para proporcionar momentos de inócuo entretenimento. O maior grau de complexidade admitido seria o equivalente ao de um tabuleiro de xadrez com suas seções de preto- e -branco, sem misturas, nem contradições.
É evidente que tal teoria não se sustenta diante da experiência, haja vista que há inúmeras obras literárias e cinematográficas que, conquanto não recebam o rótulo de “fantasia”, apresentam inúmeras características peculiares desta espécie sem, entretanto ,deixar de constituir críticas mordazes a hábitos sociais e mesmo ao clero e às diversas concepções de Estado.( citemos como exemplos
As Viagens de Gulliver, Gargantua e Pantagruel, Macunaíma, etc.) E, mesmo no caso de produções que recebem a alcunha, é notório o fato de que nelas se encontram espelhadas reflexões bastante contundentes sobre o mundo que nos rodeia e bem pouco apropriadas para quem pretende conceber a fantasia como diversão inconseqüente e alienada.(
O Senhor dos Anéis, A História sem Fim, Peter Pan, As Brumas de Avalon, Moonshadow, O Silmarillion, As Crônicas de Narnia, Nausicä, Mononoke hime. )
No caso especifico dos trabalhos do grupo CLAMP, tais observações também são válidas, com o traço distintivo de que suas integrantes se valem de todo o vasto manancial de obras já clássicas no gênero para criar efeitos inusitados ao subverter e reinterpretar clichês que a proliferação deste tipo de obra tornou inevitáveis ( tendência também observada em autores como Neil Gaiman e Terry Pratchet) ,notadamente, nos casos de trabalhos que apenas se contentam em patentear conceitos e situações já exaustivamente apresentados no decorrer do tempo. A tônica dos trabalhos do CLAMP sugere classificá-los, lembrando que rótulos são sistematizações e não camisas de força, como exemplos do que se convencionou chamar de
dark fantasy.
Desta forma, o grupo, a meu ver, possui o mérito de fazer um bom uso do legado de seus predecessores, utilizando as expectativas geradas por suas muitas e espirituosas citações no intuito de fazer o público presumir que
já sabe o que vai ocorrer quando, na verdade, as autoras tencionam seguir um caminho totalmente diverso. São, portanto, características constantes nos trabalhos do CLAMP, a metalinguagem, o anti-clímax, a paródia e a ironia. Também são bastante freqüentes o recurso a inúmeras referências simbólicas e esotéricas que ,no meu entender, não são gratuitas e lançam muita luz sobre a forma de interpretar os seus trabalhos.
Tema recorrente nos trabalhos do CLAMP são as questões referentes à tensão existente entre liberdade e responsabilidade individuais com as demandas e exigências ditadas pela vida em comunidade . Este conflito encontra-se representado no caso do “ X” nas personagens
Hinoto e Kanoe ao passo que, em
Rayearth,
Esmeralda e Zagard é que desempenham este papel. Parece que isto ocorre porque, no Japão, a coesão social é um elemento muito mais poderoso do que para nós, ocidentais, e o indivíduo, freqüentemente, é tratado como uma mera engrenagem de um maquinismo imenso que tolda a iniciativa e a privacidade do cidadão. A cadeia de responsabilidades típica da sociedade nipônica, a julgar por uma entrevista dada à revista
Animerica pela roteirista Nanase Okawa, é algo com a qual ela, em particular, não se resigna, motivo pelo qual esta indignação encontra eco na sua obra.
No tocante aos gostos de Okawa, a mentora intelectual do grupo, parece que são muito ecléticos, se bem que, segundo suas próprias palavras, a ficção científica conte mais com a sua predileção do que a fantasia. O terror e o suspense também constam da lista de suas preferências, que incluem Hitchcock, Brian de Palma , e filmes como
Zona Morta e Coração Satânico.
Toda esta discussão justifica-se em função de que, no caso das obras do CLAMP, as aparências são trabalhadas de forma a, deliberadamente, confundir a sua audiência e, em nenhum outro caso, esta afirmação é mais verdadeira do que no filme em longa metragem do X. Assim sendo, começo agora a exprimir as minhas deduções sobre o anime em questão, sobre o seu enredo, a sua mensagem, etc.
Para começar : por que o nome “X”? Os motivos podem ser vários, o 1º deles refere-se ao fato de que o formato do X evoca um cruzamento , um
cross-over, cruzamento este que, na história, encontra repercussão nos destinos das personagem principais que se intercruzam e “permutam” entre si. “X” também pode se referir à variante, ao elemento incógnito que transtorna o futuro dos protagonistas tornando-o imprevisível. Esta interpretação pode ser extraída do
anime nas seqüências que mostram uma porta na base dos dragões da terra, vista contra a luz, o seu formato fala por si mesmo. É esta porta que deixará o elemento “X”entrar próximo ao final da história, pois este elemento não seria outro além do próprio Fuma, a anomalia que distorce o fluxo do destino. Cumpre destacar que o “X” aparece na tela do computador Fera ao lado da figura de Fuma, fato que me parece muito elucidativo. O cruzamento de destinos pode estar, inclusive, simbolizado no entrechoque das espadas durante o transe de Kamui e Fuma logo quando os dois se reencontram. O “X”, no caso, aparece ,de forma tonitruante, em close. No filme, a letra também é utilizada como uma forma de referência a outro representante do gênero
thriller sobrenatural, a série
Arquivo X . A idéia não parece assim tão mirabolante se lembrarmos que Okawa é fã da série, e que parece ser realmente o rosto de David Duchovny que aparece na transição entre a cena da destruição do prédio do governo japonês e a seqüência final na torre de Tóquio.
Em suma, qual seria no caso do “X” a surpresa preparada pelo CLAMP? Para chegar à conclusão que acredito ser provável torna-se necessária uma discussão que pretendo fazer da forma mais rápida possível: o que significam,dentro do anime, detalhes como as pétalas de cerejeira e o “parto” das espadas?
Bem, as flores de cerejeira constituem o símbolo do próprio Japão, mas, devido ao seu tempo de floração curto e exuberante, as flores personificam, de forma mais abstrata, todas as coisas movediças e transitórias, tudo que é efêmero e fugidio. Como tal, as pétalas de cerejeira podem aludir à brevidade da vida humana ou ao fluxo inexorável do tempo e do destino (representando, às vezes, as próprias personagens e/ou suas almas) . Quanto às espadas, venhamos e convenhamos, a possibilidade de que as mesmas devam ser entendidas de forma literal é bastante remota . A mim, parece que as espadas místicas que surgem no anime são de natureza similar à
espada espiritual da personagem
Magia da Marvel, a irmã do Colossus dos X-men,
Ilyana. As seqüências em que as mulheres que Kamui ama “ dão à luz”espadas podem ser entendidas da seguinte maneira: o que, de fato, estaria ocorrendo seria o equivalente espiritual de uma cópula, na qual o espírito da mulher estaria sendo assimilado pelo homem de par com toda a gama de poderes místicos possuídos por ela. Indício que aponta para esta conclusão, reside no fato de que as espadas de Fuma e Kamui apresentam como adornos nas respectivas empunhaduras estrelas de seis pontas, os
hexagramas que simbolizam a comunhão entre
yoni e lingam, os órgãos genitais feminino e masculino ( o hexagrama possui a forma de dois triângulos equiláteros que se interpenetram, deixando seus vértices na parte externa - a mesma simbologia ocorre em
Rayearth no momento em que as personagens se fundem aos seus
machims ). Destarte, as espadas seriam a materialização dos espíritos de Kotori e da mãe de Kamui. A lâmina empunhada pela personagem
Arashi também é espiritual, e o fluido que a recobre ao surgir do corpo da paranormal seria matéria ectoplásmica.
Feitas estas considerações, a conclusão parece-me ser a seguinte: o dragão da terra eleito pelo “destino” era, na verdade, Kamui, enquanto o dragão do paraíso era, originalmente, Fuma. Prevendo que o destino de Kamui poderia ser se tornar o destruidor da humanidade, possuindo como arma a espada espiritual que seria o espírito cativo de Kotori, a mãe de Kamui teria tentado evitar esta possibilidade munindo-o com o seu próprio espírito, materializado através do ritual chamado
shadow sacrifice. Segundo esta hipótese, a mãe de Kamui teria tomado o lugar de Kotori como a mulher sacrificada para prover a arma mística do dragão a fim de impedir que ele tivesse que arrancá-la da mulher que amava. De maneira similar, ao tomar consciência do possível futuro do amigo mostrado a ele por Kanoe, Fuma teria optado por
roubar este destino para si próprio para, logo em seguida, se auto-destruir. Em outras palavras, ao invés de arriscar que Kamui se tornasse o dragão da terra, situação em ele teria que enfrentá-lo como sua contraparte celestial, o amigo de infância do “herói”
escolheu se tornar o dragão da terra à revelia dos decretos do destino. Feito isto, o suposto
shinoryu eliminou todos os dragões remanescentes de ambos os lados, com exceção do próprio Kamui, visando anular todas as variantes, todas as probabilidades suscetíveis de alterar o destino que ele havia escolhido. Tal plano, intrincado e terrível, incluía que ele mesmo se apoderasse do espírito da irmã destinado a ser possuído pelo “Kamui” (aquele que detém o poder de Deus) . Fuma chegou até mesmo a se
induzir a acreditar que era Kamui, daí as suas reiteradas afirmações nesse sentido.
No momento do combate final, a personalidade suprimida de Fuma voltou a se manifestar .Sendo as espadas de natureza espiritual, o que as mantinha coesas era a força de vontade de seu portador ( vide a série Rayearth, onde, no segundo ano da série, a espada da guerreira do fogo, Hikaru, se partiu porque a sua própria personalidade estava fendida em duas.) tanto é que Kamui só manifestou a sua espada no momento crucial porque Fuma o havia feito crer que estava agindo em legítima defesa. Feito isto, a consciência de Fuma começou a oscilar entre uma personalidade e outra, de sorte que, no instante da colisão das lâminas, a sua espada se partiu, libertando a alma de Kotori ali confinada.
Ao longo do anime há numerosas cenas que conferem respaldo a esta teoria, senão vejamos:
* nas seqüências em que aparecem os dois alter- egos do “Kamui” como, por exemplo, no sonho premonitório de Kotori, o que ostenta asas de anjo apresenta um semblante malévolo ( e deixa, inclusive, que o orbe simbolizando a Terra caia de suas mãos primeiro)
* quando são mostradas as antevisões da morte de Kotori, onde os empalamentos seriam uma versão transfigurada do roubo de sua alma sob a forma de uma espada mística, o Kamui com asas coriáceas de demônio( visto por Fuma) extrai sangue do corpo trespassado enquanto que o Kamui celestial( visto por Kamui) arranca pétalas de cerejeira (este é , com efeito o destino que se concretiza no fim). Isto é uma premonição da seqüência final na qual, após a destruição da espada brandida por Fuma, pétalas espectrais partem do corpo de Kotori, representando sua alma que se liberta, ganhando os céus.
*o duelo final entre os protagonistas, nele fica claro que a aura de Fuma, como dragão da terra, é de cor escarlate ao passo que a de Kamui é azul, entretanto, quando Fuma começou a efetuar o movimento descendente com a sua espada, a cena, vista em slow, revela que a sua aura começou a mudar constantemente de cor, evidência da sua instabilidade. No momento final, Fuma reassume sua verdadeira personalidade, libertando a alma de Kotori, e se sacrificando como forma de atingir a expiação
*depois da morte de Yuzuriha, quando Kamui e Fuma se defrontam pela 1ª vez depois da transformação deste último surgem sobre as costas do mesmo um par de asas de anjo.
*no transe em que ambos estiveram no início do anime no qual foram prefigurados os eventos da torre de Tóquio, tanto Kamui quanto Fuma se viram como dragões do paraíso ( vide o detalhe das asas) mostrando que, no fim, a batalha se deu entre seres da mesma natureza, ou que haviam partilhado as mesmas escolhas, determinando o “destino” e o “futuro” de ambos.( “só pode haver um”)
.
“X” é um filme que apresenta muitas dificuldades, sobretudo para o espectador que não teve contato com o mangá . As personagens são muito complexas e, dentro da estrutura dramática do anime, virtualmente insondáveis porque estão ausentes todas as pistas que permitiriam avaliá-las de forma mais minuciosa. As limitações impostas pela exígua duração do longa metragem impõem aos roteiristas a necessidade de recorrer a artifícios um tanto quanto melodramáticos para solucionar problemas como o de dar mortes condizentes para um elenco composto de mais de uma dúzia de indivíduos superpoderosos. O resultado é que a estrutura dualista do enredo ( se bem que longe disso ) pode acabar sendo confundida com a simplificação maniqueísta de outras produções do gênero, induzindo a maioria das pessoas a julgar simples e simplista um desenho altamente
hermético (no sentido literal do termo, já que o caduceu ,símbolo de Hermes, com suas serpentes antepostas, representando a resolução dos contrários, aparece no uniforme das personagens) e complexo. O principal problema, provavelmente, repousa no fato de que a única pessoa
realmente onisciente de todo o filme era o próprio Fuma e a ausência de alguém que explique o que de fato está ocorrendo reduz, e muito, a inteligibilidade da história. Isto, somado à pletora de elementos místicos e simbólicos, contribui para fazer da versão animada deste mangá uma das mais enigmáticas e mal interpretadas dos últimos tempos, problema, aliás, também presente em outro anime dito “ esotérico” o famoso e polêmico
Neo Genesis Evangelion.
Não se pretende aqui dar a palavra definitiva sobre o assunto, mas esforcei-me para elaborar, na medida do que me foi possível, uma teoria que fosse consistente consigo própria ( na verdade a tese toda foi produto de uma “
brainstorm”). O anime ainda deve ser discutido para encontrar sua melhor interpretação .É provável que na Internet a questão tenha sido solucionada.
(1)
IF “ FATE” HAS ALREADY BEEN DECIDED,
CAN NOTHING AGAINST IT BE DONE?
THE “END” AND “FUTURE” ARE ONE,
BUT WE KEEP ON LIVING...
FOR THE “FUTURE”
(2)
QUEM É O OUTRO QUE SEMPRE ANDA A TEU LADO?
QUANDO SOMO SOMOS DOIS APENAS , LADO A LADO
MAS SE ERGO OS OLHOS E DIVISO A BRANCA ESTRADA
HÁ SEMPRE UM OUTRO QUE A TEU LADO VAGA
A ESGUEIRAR-SE ENVOLTO SOB UM MANTO ESCURO ENCAPUZADO
NÃO SEI SE DE HOMEM OU DE MULHER SE TRATA
_MAS QUEM É ESSE QUE TE SEGUE DO OUTRO LADO ?
“ O QUE DISSE O TROVÃO” parte V de A Terra Desolada de T. S. Elliot, tradução de Ivan Junqueira, ed Nova Fronteira, Rio de Janeiro. RJ 1981.
Paulo Eduardo é provavelmente o maior nerd (no sentido positivo da palavra) que eu conheço, uma das poucas pessoas que sabe tudo de quase tudo, desde mangás, passando por comics, literatura fantástica, cinema e afins. Para saber tanto quanto o Paulo, ainda vou precisar comer muito "onigiri". Agradecemos a ele pode ter cedido seu texto ao nosso site
** Parte integrante do
Mahou Gakkou Amaterasu**
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