Quem não coloca o furor das batalhas como ponto central na narrativa não vai pegar o espírito do Cornwell mesmo, é capaz até de se nausear. Não é que exista sangue em exagero, existe sim uma coisa muito 'crua' em todos os livros. Mas isso é porque ele tenta captar, e consegue, o cerne histórico e apresentá-lo de forma coerente pelo ambiente e na consciência e atos dos personagens. Não é só matança, a matança só expressa uma realidade que existia historicamente e que determinava as consciências, seus atos, seus lugares no mundo, seus juízos de valor etc.
Um exemplo é o Uhtred. Ele carrega o exemplo mais perfeito em todas as obras da metafísica da guerra, e isso porque é simplesmente um guerreiro viking. Não só a forma dele lutar e liderar tropas, ou a arrogância e coragem dele individualmente, mas toda a alma guerreira dele como aquilo que unifica todos esses elementos e dá sentido à sua vida interior é algo que salta aos olhos. Você não só vivencia essa sanha de sangue, você vivencia, tem uma empatia profunda com o Uhtred inteiro exatamente nas batalhas porque é nelas que está a essência do personagem, não só essência psicológica, social, histórica, mas estética.
Sim, a guerra tem um valor estético em Cornwell. E por quê? Porque ele é historicamente fiel, ignorando toda e qualquer moral extra-histórica (ou estética), ao valor espiritual da guerra conforme os guerreiros de cada época vivenciavam a guerra como valor, como fator determinante de suas vidas.
Por isso que a guerra como valor, muito mais que mero elemento de paisagem, muda nos livros de Cornwell, ela vai de acordo com a época. Sempre são guerreiros porque é nas guerras que o autor escolhe o sentido dinâmico da história. Uma historiografia heraclitiana. Mas o valor da guerra muda de acordo com a época histórica, é sempre a guerra mas suas formas mudam. Por isso o Derfel é guerreiro como Uhtred, mas o é de forma forma diferente. Derfel é um lanceiro. Uhtred é um espadachim. Derfel é um capitão de um bando organizado de lanceiros. Uhtred lidera tropas de guerreiros, de especialistas na matança. As formas de guerrear dos personagens andam lado a lado com sua forma de liderar, e são expressões do seu ser-guerreiro, historicamente condicionados, mas no fundo é tudo a mesma coisa.
Thomas Vexille, arqueiro, não lidera nada, talvez um bando de arqueiros aqui e ali. Saban, não é guerreiro, porque sua luta para construir o Templo é um tipo diferente de luta (mas Stonehenge é um caso à parte). Sharpe é mais um aventureiro que luta que um soldado. Derfel é muito mais soldado que Uhtred, muito mais matador, ave de rapina.
Uhtred é o ideal do guerreiro pagão viking, o modelo nietzscheano de 'homem-de-rapina'.
Talvez esse 'quê' que falte a algumas pessoas ao ler Cornwell seja isso: situar, em termos de valor e de estrutura, o sentido da guerra. Captar o sentido estético da guerra, absorver seu valor espiritual ao mesmo tempo que reconhece a diversidade de suas formas, condicionada pela história. Assim você evita os dois erros, 1- de achar que a guerra não tem valor estético, mas só plastico, que ela apenas colore a narrativa, e que, portanto, Cornwell carrega demais nessas cores e 2- nem valor plástico nem estético, mas só formal, que só há guerra para expressar a verdade histórica e nada mais, o que falsearia a biografia dos personagens principais, lhes tiraria sua força.
Enfim, pra mim o que é foda no Cornwell não é a fidelidade histórica, mas o valor estético dessa fidelidade histórica, e de todos os elementos dessa história que ele quer contar. Tudo nos mundos históricos que ele recria (porque ele não cria do nada, como Tolkien, nem copia nada) tem um valor plástico, que faz o sentido interno da obra, mas tem também um valor estético, são as cores que contrapõem mundos tão diferentes do nosso às nossas cores, causando todo tipo de reação, e é nesse processo que o leitor 'viaja' na obra, nela mergulha. É um choque térmico, de intensidade e frequência variada.