@Mercúcii, curtiu mesmo a Lygia Fagundes Telles, hein? Qual seria seu Top3 até agora? Quero ler um.
Curti muito, cara!
É engraçado porque quando eu peguei o primeiro da Lygia pra ler, que foi o Ciranda de Pedra, era algo que fugia bastante ao meu estilo de leituras. Mas eu estava naquela vibe de experimentar ler coisas diferentes, de querer ter pelo menos algum contato com certos autores. Além disso, nunca fui um leitor de contos. E o contato com a literatura da Lygia também fez parte dessa abertura para o gênero textual, considerando que ela se dedicou bem mais à escrita de contos que de romances (que ela escreveu apenas quatro).
Até o momento eu li 7 livros dela, então eu vou tentar colocar, na ordem, do que gostei mais para o que gostei menos:
1) Seminário dos Ratos. - Contos.
2) As Meninas. - Romance.
3) Verão no Aquário. - Romance
4) Antes do Baile Verde. - Contos.
5) Um Coração Ardente. - Contos.
6) Ciranda de Pedra. - Romance.
7) A Disciplina do Amor. - difícil classificar, uma mistura de Memórias com Ficção em micro-contos.
Alguns comentários...
"Seminário dos Ratos" --> Eu adoro praticamente todos os contos. Tem um apenas de que não gostei tanto, mas não vou dizer qual, pra não contaminar a sua leitura se se animar a lê-lo. Meus contos preferidos nesse livro: "A mão no ombro", "Noturno Amarelo" e "Senhor Diretor".
"As Meninas" foi possivelmente a leitura mais difícil que fiz no ano passado. É um livro bastante experimental em que a autora, em sua técnica narrativa, mobiliza fluxos de consciência, literalmente te jogando dentro da cabeça de cada uma das três protagonistas, deslocando constantemente o foco narrativo de uma para outra, alternando aqui e ali de maneira meio abrupta a exposição da primeira para a terceira pessoa [além das três "narradoras", em alguns momentos você tem um quarto narrador, narrando em terceira pessoa, que dá as caras e some muito rapidamente]. Você se vê diante de uma narrativa fragmentária, atado às percepções sempre parciais (e nem sempre confiáveis) de Lorena, Lia e Ana Clara, que estruturam a narrativa, seguindo-lhes o fio do pensamento, as sensações, sondando-lhes as memórias, que aos poucos vão revelando nuances sobre cada uma delas, camada por camada, profundizando-as, emprestando-lhes maior complexidade. Aqui e ali você tropeça em um pensamento completamente alienígena, que corta o fio do raciocínio da personagem (imagine seguir o fio do pensamento de uma personagem completamente drogada, com o caos mental transfigurando-se no caos textual, que ignora até as regras de pontuação)... no fim, o trabalho de organizar e dar coerência à história em boa medida incumbe ao leitor. A história se passa em um pensionato de freiras, no auge da repressão da ditadura militar. É um caso curioso, porque o livro traz um relato de tortura promovida nos porões da ditadura... e ele foi publicado em 1973. Ainda se discute como esse livro conseguiu furar a censura. Além de denunciar abertamente a tortura, toca em diversos tabus morais, tratando, entre outras coisas, da autodeterminação da mulher, de liberdade sexual, de masturbação feminina e homossexualidade. É bem verdade que a Lygia alterou bastante esse texto e alguns desses temas - não é o caso do relato de tortura, pelo menos - podem ter sido introduzidos em contextos menos espinhosos. Eu não saberia dizer. Eu acho um puta livro, mas, de modo geral, não o recomendo como porta de entrada para a literatura da Lygia. Pra mim, pelo menos, não foi uma leitura fácil. Tive que anotar algumas coisas, pra não me perder tanto. Mas valeu muito a persistência. Foi uma das melhores leituras de 2019.
Verão no Aquário... ainda estou encantado com esse livro. Assim... eu achei o início um pouco lento, sabe? Mas a coisa tem um desenvolvimento que me agradou muito... pensando na complexidade e no desenvolvimento dos personagens, na construção narrativa - repleta de imagens oníricas, de metáforas, de sentidos alegóricos, contemplativos. Até o nome da personagem principal - Raíza - tem uma razão de ser (vem de "raiz", em razão da relação da personagem com o seu próprio passado, daquilo que está enraízado na sua constituição psíquica). É um romance da decadência burguesa, ambientado no início dos anos 1960, que tem um drama familiar como fio condutor: a relação tumultuada entre Raíza -- narradora-personagem cheia de ambiguidades, carências, indefinições; órfã de pai alcóolatra, pianista precocemente frustrada, entregue a uma vida dissoluta e a uma conduta sob muitos aspectos autodestrutiva, no sexo, nas drogas, nos relacionamentos em geral - e sua mãe, a distante e inatingível Patrícia, reconhecida escritora por quem a filha tem uma espécie de amarga rivalidade. A coisa se complexifica com a presença de André, um jovem seminarista em crise, consumido pela dúvida quanto à sua vocação, que arrasta a relação mãe e filha para uma tensa triangulação: Raíza acha que Patrícia e André são amantes e, talvez inconscientemente guiada pela rivalidade que sente pela mãe, apaixona-se (ou acredita-se apaixonada) por ele. Como é comum na literatura da Lygia, os personagens são todos figuras trágicas...Eu adorei!
Sobre Ciranda de Pedra... sendo sucinto, a primeira metade do livro, para mim, é infinitamente superior à segunda metade do livro. Acho que a segunda metade perde um pouco de fôlego.
Sobre Antes do Baile Verde, destaque para os contos "Apenas um Saxofone" (do que li até agora, pra mim é um dos melhores contos dela) e "Venha ver o pôr do sol".
Sobre "Um Coração Ardente", destaque para os contos "Emanuel" (maravilhoso!), "Um coração ardente" e "Biruta".
A Lygia considera "A Disciplina do Amor" o seu melhor livro. Eu discordo...
Não é que não seja um bom livro. Ganhou um Jabuti, foi sucesso de crítica, é um livro bastante experimental, borra bastante a fronteira entre o real e o fictício, entre o escritor e o narrador, entre o microconto e a crônica memorialística. Teve uma comentarista que disse que é um livro em que você percebe com maior clareza a alma da artista. Acho que é por aí. É um livro cheio de alma. Mas, no comparativo entre as leituras que fiz - e eu não entendo nada de literatura, vai ver é por isso - ele fica mais apagado. Também é complicado fazer essa comparação, porque as propostas são bastante diferentes. Enfim...
Tendo a achar que nem "As Meninas" nem "A Disciplina do Amor" são boas portas de entrada para a obra da autora. Bem... podem até ser, a depender do perfil de leitor. Essas coisas são relativas. Mas, de maneira geral, tirando esses dois, eu recomendaria qualquer um dos outros cinco para o primeiro contato.