Melian
Período composto por insubordinação.
@Melian , a senhorita foi intimada a prestar depoimento.
Lá vamos nós, migo @Mercúcio . Eu li dois livros da Mariana Enriquez neste ano. Li Os perigos de fumar na cama (que é mais recente) primeiro e, depois, li As coisas que perdemos no fogo. Gostei, tanto, da escrita da moça, que queria ser amiga dela.
Há algum tempo, em determinado episódio de Criminal Minds, um personagem mencionou que quando um serial killer agredia a vítima em casa, ele estava tirando todas as defesas dela, porque a casa, em teoria, é o lugar em que nos sentimos protegidos. Ao tomar isso como ponto de partida, posso dizer que os contos de As coisas que perdemos no fogo têm a construção do terror pautada em dois elementos: espaço/lugar (para Yu-fu Tuan, o espaço se transforma em lugar quando ele adquire significado. E isso só acontece por intermédio da experiência. ) e cotidiano. E trata-se, aqui, do intrincamento do lugar: seja ele físico, emocional, social, econômico de gênero com o cotidiano. O terror se constitui, para Mariana Enriquez, do próprio ato de viver e de ser privado de algum direito.
Aqui, é importante deixar claro que o texto da escritora argentina, em momento algum, é panfletário. Nós, latino-americanos, conectamo-nos com os contos (e com o medo das personagens) por questões culturais e histórico-sociais, mas é isso. Por exemplo, tem um conto, em que uma narradora conta uma história vinte anos depois do acontecimento. Tudo no conto é um talvez. TUDO. Uma das personagens inventava mil histórias para o problema que tinha no braço, e a narradora nunca sabe o que realmente aconteceu. Nós, leitores, também não. A casa que a narradora, a moça do braço e o irmão da narradora ficavam olhando (e sobre a qual ouviam mil histórias estranhas) também fica na conta do disse-me-disse. O que aconteceu em determinado ponto da história nunca fica claro, e a própria narradora diz não se lembrar.
NADA NO CONTO fala em política ou ditadura, mas é um conto memorialístico, em que não há registros, em que há desaparecimento, em que há a instauração do medo de algo que não se sabe o que é, em que há uma casa que todos fingem que nada aconteceu lá, que as pessoas não falam sobre o que aconteceu lá. Aquele passado sobre o qual não se fala. Enfim, li um trecho de uma entrevista da Mariana Enriquez, que ela falou um trem que eu gostei muito: "narrativamente, o fenômeno de um corpo desaparecer é de uma sofisticação literal do horror, porque criam-se fantasmas sociais". Fantasmas sociais não são o que ditaduras também criam?
O conto que dá nome ao livro, e que é o meu preferido (ele tem uma pegada distópica que me deixou fascinada!), por exemplo, é daqueles cujo título é uma chave de leitura: a primeira coisa que perdemos no fogo é o ar, e sentimo-nos sufocados durante a leitura. Sentimo-nos engasgados por engolirmos as cinzas de uma sociedade que trata tão mal as mulheres. (Tenho muito mais coisas a falar sobre o meu conto preferido do livro, inclusive sobre o fato de ele não ser nada maniqueísta, mas se eu disser, dou spoiler.)
Há algum tempo, em determinado episódio de Criminal Minds, um personagem mencionou que quando um serial killer agredia a vítima em casa, ele estava tirando todas as defesas dela, porque a casa, em teoria, é o lugar em que nos sentimos protegidos. Ao tomar isso como ponto de partida, posso dizer que os contos de As coisas que perdemos no fogo têm a construção do terror pautada em dois elementos: espaço/lugar (para Yu-fu Tuan, o espaço se transforma em lugar quando ele adquire significado. E isso só acontece por intermédio da experiência. ) e cotidiano. E trata-se, aqui, do intrincamento do lugar: seja ele físico, emocional, social, econômico de gênero com o cotidiano. O terror se constitui, para Mariana Enriquez, do próprio ato de viver e de ser privado de algum direito.
Aqui, é importante deixar claro que o texto da escritora argentina, em momento algum, é panfletário. Nós, latino-americanos, conectamo-nos com os contos (e com o medo das personagens) por questões culturais e histórico-sociais, mas é isso. Por exemplo, tem um conto, em que uma narradora conta uma história vinte anos depois do acontecimento. Tudo no conto é um talvez. TUDO. Uma das personagens inventava mil histórias para o problema que tinha no braço, e a narradora nunca sabe o que realmente aconteceu. Nós, leitores, também não. A casa que a narradora, a moça do braço e o irmão da narradora ficavam olhando (e sobre a qual ouviam mil histórias estranhas) também fica na conta do disse-me-disse. O que aconteceu em determinado ponto da história nunca fica claro, e a própria narradora diz não se lembrar.
NADA NO CONTO fala em política ou ditadura, mas é um conto memorialístico, em que não há registros, em que há desaparecimento, em que há a instauração do medo de algo que não se sabe o que é, em que há uma casa que todos fingem que nada aconteceu lá, que as pessoas não falam sobre o que aconteceu lá. Aquele passado sobre o qual não se fala. Enfim, li um trecho de uma entrevista da Mariana Enriquez, que ela falou um trem que eu gostei muito: "narrativamente, o fenômeno de um corpo desaparecer é de uma sofisticação literal do horror, porque criam-se fantasmas sociais". Fantasmas sociais não são o que ditaduras também criam?
O conto que dá nome ao livro, e que é o meu preferido (ele tem uma pegada distópica que me deixou fascinada!), por exemplo, é daqueles cujo título é uma chave de leitura: a primeira coisa que perdemos no fogo é o ar, e sentimo-nos sufocados durante a leitura. Sentimo-nos engasgados por engolirmos as cinzas de uma sociedade que trata tão mal as mulheres. (Tenho muito mais coisas a falar sobre o meu conto preferido do livro, inclusive sobre o fato de ele não ser nada maniqueísta, mas se eu disser, dou spoiler.)
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