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Cientificidade da economia

  • Criador do tópico Criador do tópico Haran
  • Data de Criação Data de Criação
Não descaracteriza, mas torna a hipótese científica a ser feita inevitavelmente mais complexa.

Se os resultados variam de acordo com a condição social do local, então sua teoria terá que discorrer sobre a variação do funcionamento da economiade sociedade para sociedade.
 
Morfindel disse:
Caracteriza. Uma característica do método científico é a repetição dos resultados. Se sob mesmas condições surge um novo resultado os resultados passados "não servem pra nada".

A questão é que não são sob as mesmas condições.

ExtraTerrestre disse:
Se os resultados variam de acordo com a condição social do local, então sua teoria terá que discorrer sobre a variação do funcionamento da economiade sociedade para sociedade.

Naturalmente, assim você busca os fatores determinantes do local do estudo.
 
@Morfindel Werwulf Rúnarmo
Sob mesmas condições, você falou bem, quando se muda o local já muda as condições.
O que eu disse que o fato de um modelo funcionar no Brasil e não funcionar no EUA não significa que o modelo deixa de ser científico.
 
A questão é que não são sob as mesmas condições.



Naturalmente, assim você busca os fatores determinantes do local do estudo.
@Morfindel Werwulf Rúnarmo
Sob mesmas condições, você falou bem, quando se muda o local já muda as condições.
O que eu disse que o fato de um modelo funcionar no Brasil e não funcionar no EUA não significa que o modelo deixa de ser científico.
Certo, mas então as condições nunca são iguais, o que quer dizer que sempre terá que se começar do zero, não? Pois como apontado, o fato de tal teoria ter funcionado previamente não garante que irá funcionar no futuro, pois mesmo no mesmo país as situações mudam com o tempo.
 
As condições diferentes por si só não são um problema, pq existem variáveis de controle que podem ser usadas nas pesquisas econômicas para tentar isolar apenas do fenômeno desejado. O problema é que as condições diferentes costumam refletir processos históricos complexos que não necessariamente são fáceis de modelar.

O exemplo do trabalho da @Pearl é diferente do problema econômico: Cada indivíduo que ela estuda é como se fosse uma nova realização de uma variável aleatória cujo processo gerador é desconhecido - em outras palavras, a variável aleatória é o risco de demência e o processo gerador é o que ela quer descobrir, como uma função de vários fatores. É claro, cada indivíduo pesquisado também tem um histórico psico-emocional que ela dificilmente consegue capturar o mensurar, mas existe uma população grande de indivíduos, de modo que o estudo dela é beneficiado pela lei dos grandes número, ou seja, tem uma chance de grande de convergir para as probabilidades "verdadeiras".

No caso das ciências econômicas, não tem novas realizações das variáveis aleatórias que queremos estudar. Para problemas macroenômicos, por exemplo, os países são os "indivíduos", mas não temos novos países nascendo. É uma analogia tosca, mas o caminho é mais ou menos esse.
 
Pois como apontado, o fato de tal teoria ter funcionado previamente não garante que irá funcionar no futuro, pois mesmo no mesmo país as situações mudam com o tempo.

Pois é, esse é um ponto. Por mais brilhante que tenha sido elaborada uma teoria econômica no século XX, no momento que ela foi elaborada nem se imaginava o surgimento e/ou consolidação da Internet que no século atual viria a mudar hábitos de consumo e ser um parceiro valioso no processo de globalização.
 
No caso das ciências econômicas, não tem novas realizações das variáveis aleatórias que queremos estudar. Para problemas macroenômicos, por exemplo, os países são os "indivíduos", mas não temos novos países nascendo. É uma analogia tosca, mas o caminho é mais ou menos esse.

Então poderíamos dizer que microeconomia está mais livre dessa dificuldade um tanto quanto intransponível e é portanto mais científica? Eu estudei pouquíssimo microeconomia, e não me parece muito claro em que ponto mesmo ela pode ser testada, parece-me mais uma linguagem ou uma ferramenta, como a cinemática na Física. Mas decerto é pouco conhecimento da minha parte mesmo.

Aqui vejo um análogo com a questão de micro e macroevolução. Não há uma teoria da "macroevolução" propriamente dita, a macroevolução é entendida como uma soma histórica de microevoluções, mas não há um modelo para extrapolar como as espécies que existem hoje macroevoluirão, pois há fatores históricos e não meramente físicos e biológicos envolvidos. É esperado que simulações computacionais deem conta de explicar certos aspectos históricos das espécies (como por exemplo, o trabalho aqui descrito, mas contando infelizmente com um vídeo de qualidade bem porca), e que o sucesso dessas simulações caminhem com a evolução da tecnologia em si, mas parece ainda bem futurista pensar que simulações explicarão ou preverão a história da evolução das espécies, mesmo em aspectos não tão específicos, ou terão uma capacidade preditiva apreciável no que diz respeito a espécies específicas existentes... Nesse caso, para aspectos mais macros restaria apenas uma investigação histórica (segundo a paleontologia, genética, etc) sem tanta pretensão preditiva.

Nesse sentido, não seria mais razoável, ao modo da macroevolução, deixar a macroeconomia de lado como um ramo de estudo a parte, no que concerne a pretensão científica de descrever os fenômenos econômicos de forma abstrata, preferindo uma abordagem meramente histórica?
 
Última edição:
Independentemente da opinião política, se eu recebesse esse gráfico como revisor de paper, eu mandava de volta para os autores como um "Major corrections" em vermelho sangue.
Onde já se viu fazer linhas de tendência em dados tão aleatórios sem apresentar incertezas e o escambau?


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Detalhe que todos nós sabemos que a inflação de 2013/14 é bem maior do que está neste gráfico de araque aí.
É o PT maqueando os dados.
 
Ridículo. Os números não mentem, já quem interpreta...

E como o @fcm disse, essa inflação tem preços controlados.
 
Eu dei uma olhada nesse livro do Blanchard, que é um livro de macroeconomia usando em graduações, e ele tem uma postura bem mais otimista do que a que foi mostrada no tópico. Talvez ele esteja querendo vender o peixe do campo de estudo dele, mas a visão dele, com respeito à falseabilidade e à contraposição de diferentes escolas econômicas, é: a falseabilidade não só é possível, como uma unificação entre as diferentes escolas econômicas está feita em um grau bastante razoável e em alguns anos é possível que esteja completa. De fato, iniciei o tópico perguntando....

Nesse sentido, por que visões tão diferentes de fenômenos econômicos (por exemplo, o keynesianismo e a visão da escola de Chicago) coexistem sem aparentemente expectativas ou projetos que visam contrapor essas duas visões de forma mais definitiva? Isto é, identificar um ponto fortemente divergente dessas duas visões, e confrontá-la com a experiência (em um sentido lato)? Ou, se isso já foi feito, por que persistem essas visões altamente divergentes?

...e o próprio livro bebe igualmente de Keynes e Friedman, o que pra mim como leigo em economia foi uma surpresa, na minha visão anterior eles eram como água e óleo, ou você seguia as ideias de um ou de outro... mas a contraposição de ideias dos dois não só é possível como, de certa forma, uma certa unificação está feita no livro. Grosso modo, as ideias de Keynes valeriam para uma escala de tempo de "curto prazo", mas pra "médio prazo" seria necessário incorporar as críticas de Friedman.

Mas no âmbito público parece não haver essa tal unificação, economistas se manifestam e atuam em direções bastantes diferentes uns dos outros.... Talvez isso indique que a macroeconomia não seja tão unificada assim, ou talvez o seja mas a unificação se perde no âmbito prático, devido às dificuldades peculiares da economia que foram expostas no tópico e que dificultariam previsões exatas*... Também devido a finalidades diversas com que é empregada, muitas vezes políticas...

Enfim, de qualquer forma, não tenho bagagem pra analisar criticamente o autor e sequer pra saber se o que eu conclui é coerente com o livro todo, já que não completei a leitura e não vou fazê-lo tão cedo...


*Outra coisa que fiquei surpreso nesse primeiro contato é como medidores macroeconômicos básicos, como o PIB e a inflação, tem arbitrariedades já embutidas antes de tudo na sua própria definição, diferente das ciências exatas, em que as grandezas básicas são razoavelmente definidas sem grandes arbitrariedades, e as incertezas se dão sobretudo na medição. Quer dizer, nem Deus deve ter em mente a previsão do PIB com precisão numérica, afinal não foi Ele que definiu o negócio... :lol:
 
Última edição:
A provocação do tópico é excelente. Sempre fiquei intrigado como em economia existem escolas antagônicas, que parecem absolutamente incompatíveis, mas cada qual referendada por economistas respeitáveis. Veja se um grupo de astrônomos que levantasse a bandeira de que a Terra é plana mereceria algum respeito! Para minha visão leiga, parece mesmo que não é da natureza das ciências econômicas admitir respostas com alto grau de incontestabilidade.

Só não acho que isso se dê porque um dos lados esteja contaminado por má fé, como alguns sugerem. Há alguns meses li o artigo de um liberal insinuando que só existem economistas mais favoráveis a regulação estatual por interesse em ganhar notoriedade entre políticos e assumir cargos no governo. Certamente existem desses, mas acho isso um reducionismo tremendo. Da mesma forma é o discurso de uma parte da esquerda de que todo economista liberal tem o propósito consciente de sufocar interesses nacionais.
 
Última edição:
Sobre diferentes metodologias e escolas em economia
Por Lucas Favaro. Fonte.​
Muito se fala que a economia possui várias metodologias, várias escolas de pensamento, e portanto querer estudar apenas uma vertente é estreitar os seus horizontes. Acontece que os pesquisadores de economia mais citados e que mais produzem -- as maiores referências da área -- seguem uma única escola: a escola dos modelos formais testáveis. Essa é a metodologia que domina o mainstream econômico. Qualquer escola que utilize outra metodologia é virtualmente nula dentro dos grandes centros produtores de pesquisa de ponta.​
Veja, por exemplo, o ranking de pesquisadores da IDEAS/RePEc *, um ranking minucioso que classifica os pesquisadores da área de economia conforme as suas publicações e citações. Nele, dominam os pesquisadores que se valem amplamente de modelos formais testáveis.​
No top 5% dos maiores pesquisadores desse ranking existem 2911 economistas. Desses, apenas 6 são pós-keynesianos. São eles: Thomas Palley, na posição 439, Randall Wray (967), Marc Lavoie (980), Anthony Thirlwall (1631), Paul Davidson (2182) e Jan Kregel (2183). Ou seja, entre os top 5% economistas que produzem nos melhores periódicos e que são mais citados, apenas meros 0,17% são pós-keynesianos.​
E isso que o pós-keynesianismo é a escola heterodoxa que mais domina tal ranking. No top 5%, há apenas dois marxistas: John Roemer, em 386, e Duncan Foley, em 1571. E há tão-somente um único austríaco, Randall Holcombe, na posição 2417.​
Ou seja, apesar das escolas heterodoxas serem barulhentas na mídia e na internet, no mundo acadêmico o que predomina de forma absoluta é a metodologia ortodoxa, aquela que se vale de modelos matemáticos e econométricos e que utiliza dados para testar suas teorias.​
Você pode pensar que isso que eu falei apenas retrata um comportamento tribalista dos economistas da academia, que excluem quem tem opinião divergente e não dão ouvidos a resultados que contestam suas teorias. Mas isso não é verdade. Basta observar, por exemplo, a posição de Dani Rodrik no ranking já mencionado. Ele ocupa a soberba posição de número 56. Isso quer dizer que seus trabalhos são MUITO relevantes para a área. Acontece que grande parte da sua pesquisa chega a conclusões que desafiam o pensamento hegemônico mainstream, como a ideia de que a abertura ao comércio internacional feita por países pobres pode ser prejudicial para os mesmos. Ocorre que Rodrik chega nesses resultados utilizando a metodologia-padrão da ortodoxia: ele constrói modelos e tenta confrontá-los com a realidade.​
Se for ver, mesmo aqueles pesquisadores pertencentes a escolas heterodoxas e que estão no top 5% do ranking utilizam-se majoritariamente de modelos formais para construir suas teorias. É o caso, por exemplo, de John Roemer, que matematizou as teorias marxistas, trazendo-as mais próximas da escola neoclássica.​
Portanto, se quiser estudar as escolas heterodoxas de economia, sinta-se à vontade. Mas recomendo fazer isso só depois de ter estudado MUITO a escola dos modelos formais testáveis. É essa escola que domina de forma quase completa as pesquisas de ponta.​
 
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Recusa em debater o neoliberalismo mostra isolamento da economia​

Abrir diálogo com as ciências sociais poderia refinar abordagens e sofisticar capacidade de interpretação da disciplina

3.abr.2021 às 23h15​
Lauro Gonzalez​
Professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV e coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da mesma instituição​
Daniel Pereira Andrade​
Professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV​
Folha de São Paulo - Link original
[RESUMO] Recusa de parte significativa dos economistas em debater o neoliberalismo, ignorando suas implicações políticas e sociais, reflete o processo de isolamento da economia em relação às ciências sociais, o que reduz o alcance de seus métodos de pesquisa e de sua capacidade de interpretar os grandes desafios de hoje, como a pandemia, as desigualdades e as ameaças à democracia.​
Nas últimas décadas, um tema importante surgiu na intersecção entre a economia e as demais ciências sociais: o debate sobre o neoliberalismo. Como parte dessa discussão, as ciências sociais fizeram um esforço de recuperação e definição do conceito, com importantes avanços teóricos e empíricos nos últimos 30 anos.​
No mesmo período, o termo teve um destino inverso na economia, embora originalmente formulado nesta disciplina. Parte considerável dos economistas renega o conceito, visto como um rótulo vago aplicado a múltiplas situações sociais.​
É preciso reconhecer que a utilização do termo neoliberalismo como um clichê político tenha esticado a corda e diminuído o rigor conceitual das argumentações, sobretudo no mundo frenético das militâncias virtuais. No entanto, há grande distância entre reconhecer essa vulgarização e estendê-la indevidamente a todo o debate acadêmico.​
Em geral, os críticos não discutem as obras e os autores de referência, preferindo adotar um expediente fácil: oferecer um anedotário de usos exóticos ou esvaziados do termo. Evitando os argumentos mais consistentes, criam uma falsa equivalência com o objetivo de deslegitimar a discussão. Acabam, assim, por reproduzir o mesmo procedimento que julgam criticar: a criação de um espantalho.​
Para que a interlocução entre as disciplinas se tornasse produtiva, ainda que em termos críticos, seria interessante que fosse adotada uma postura semelhante à do sociólogo Pierre Bourdieu em sua incursão pela economia. Afirmando se tratar de uma ciência com diversas perspectivas, reconhecia que muitas críticas formuladas pelas ciências sociais já haviam sido antecipadas no debate interno da economia.​
Quando Bourdieu se detinha em um autor, escolhia um representante consagrado do campo. Lia então suas principais obras, evitando distorcer ou estereotipar a sua argumentação. Somente então procedia à crítica, buscando oferecer uma perspectiva sociológica original. Seria inimaginável pensar em Bourdieu pinçando polêmicas do Twitter ou debates laterais em revistas de grande circulação como forma de apresentar o estado da arte do que for.​
Retornando ao estudo do neoliberalismo, dentre as contribuições das ciências sociais, dois caminhos se destacam. Primeiro, a reconstituição da história das escolas de pensamento econômico e filosófico que se identificavam com o termo, traçando a linha de continuidade dessas doutrinas até o presente.​
Se certos críticos lessem livros como o de Philip Mirowski e Dieter Plehwe, “The Road from Mont Pèlerin”, ou de Jamie Peck, “Constructions of Neoliberal Reason”, poderiam ter a surpresa de se deparar com um espelho das próprias visões teóricas de mundo.​
Segundo caminho, as ciências sociais buscaram enraizar a economia no mundo social, tomando por objeto o chamado neoliberalismo realmente existente. Nesta abordagem, o neoliberalismo passou a ser lido não apenas como um modelo de política econômica, mas também como uma forma social. Essa forma social é uma pré-condição para o funcionamento desse modelo econômico, já que sem a construção social de instituições e de condutas ele simplesmente não existiria.​
Ao mesmo tempo, o próprio modelo econômico produz efeitos na organização da sociedade, como, por exemplo, na desigualdade. As ciências sociais estenderam assim o adjetivo neoliberal a formas de cultura, de subjetividade, de normatividade, de poder, de gestão, de construção institucional, de espaço urbano, de políticas públicas etc.​
Os estudos sobre neoliberalismo discutem, por exemplo, como se dá a construção jurídica e institucional de mercados de maneira a blindá-los das demandas democráticas e das interferências políticas no sentido de justiça social e igualdade redistributiva.​
Não se trata aqui de Estado mínimo ou de autorregulação, mas sim do desenho de instituições visando insular mercados, o que pode produzir um capitalismo imune aos movimentos democráticos ou ainda criar um ordenamento de modo a conter outras motivações humanas que não as econômicas.​
Ao contrário do que prega sua retórica, o neoliberalismo não se opõe às formas de regulação, sendo antes uma delas, voltada para a construção de mercados (ou quase mercados) e de concorrência. Essas construções podem se dar no âmbito da governança global, como mostra o excelente livro de Quinn Slobodian sobre a Organização Mundial do Comércio (“Globalists: the End of Empire and the Birth of Neoliberalism”), ou transnacional, como o artigo de Etienne Schneider e Sune Sandbeck sobre a zona do euro.​
Essas formas de governança internacional não excluem, antes implicam Estados nacionais, que são colocados em concorrência entre si, eles próprios desenvolvendo leis internas com o mesmo objetivo, como demonstra o artigo de Ian Bruff sobre o neoliberalismo autoritário.​
A construção de mercados se dá também por meio de narrativas sobre o seu funcionamento. Essas histórias orientam a ação dos agentes econômicos e moldam a construção de instrumentos financeiros, os quais, por sua vez, condicionam retroativamente as condutas e o funcionamento dos mercados.​
O trabalho da historiadora da economia Mary Poovey, por exemplo, discute como a hipótese do mercado eficiente e as narrativas que enfatizavam contraditoriamente o papel de indivíduos autodeterminados e o funcionamento de um sistema econômico autorregulado foram decisivas para dirigir ações e para construir instrumentos de análise de risco que acabaram por desencadear as crises que pretendiam evitar.​
Poovey mostra ainda como a manutenção dessas mesmas narrativas impediu a compreensão das razões profundas das crises, levando a uma análise reducionista que atribuía as suas causas ao comportamento imoral de indivíduos no mercado.​
Além disso, o neoliberalismo se alimenta da crença de que os mecanismos de mercado podem ser adaptados para resolver qualquer problema, sendo aplicados como instrumentos de desenho de políticas públicas ou como estratégias de recursos humanos. Com isso, o próprio Estado é reformado segundo o modelo de mercado, introduzindo a concorrência e a lógica de gestão da empresa privada no seio da administração pública.​
Seja por meio da construção de mercados, seja por meio da introdução da lógica do mercado em esferas da vida fora do mercado, o neoliberalismo se define como um modelo normativo de sociedade e de subjetividade. Os indivíduos, submetidos a situações de concorrência por toda parte, acabam por aderir à lógica gerencial na maneira de lidar com a própria vida.​
É preciso que cada um realize investimentos em seu capital humano, zele pela própria disciplina e faça marketing pessoal de modo a vender a si mesmo. Cada indivíduo acaba assim por se tornar um empreendedor de si, vendo os demais trabalhadores não como companheiros de atividade ou de luta, mas como empresas concorrentes.​
A grade de leitura gerencial acaba se estendendo para todas as esferas da existência, como fica claro na proliferação contemporânea de coachs, que utilizam técnicas empresariais como forma de desenvolver os indivíduos profissional e pessoalmente. Sobre a construção da sociedade de mercado e do sujeito neoliberal, três trabalhos já são considerados clássicos: “O Nascimento da Biopolítica”, de Michel Foucault; “A Nova Razão do Mundo”, de Pierre Dardot e Christian Laval; e “Undoing the Demos”, de Wendy Brown.​
No neoliberalismo, portanto, o modelo de mercado e o empreendedorismo operam como normas centrais que organizam o conjunto da sociedade. Por se converterem em valores, eles podem ser idealizados e reafirmados como soluções mágicas, inclusive para problemas que o seu próprio funcionamento desencadeia.​
Para ficar em um único caso, é possível mencionar como as políticas de incentivo ao empreendedorismo são apresentadas como solução para a desigualdade social e a vulnerabilidade que a precarização das leis trabalhistas causa.​
Essas contribuições são suficientes para demonstrar que o descarte a priori do debate sobre o neoliberalismo pela economia não faz sentido. A relutância de parte dos economistas decorre, na verdade, do processo histórico de isolamento da disciplina em relação às ciências sociais.​
O insulamento pode ser capturado, por exemplo, a partir da análise do número de citações cruzadas entre economia, ciência política e sociologia. Dentre outros, um levantamento do período entre 2000 e 2009 mostra que a American Political Science Review cita cinco vezes mais artigos das principais publicações de economia do que o contrário, ou seja, do que as citações da American Economic Review a artigos dos principais periódicos de ciência política. Retrato semelhante é obtido ao se incluir a American Sociological Review na análise.​
Outros levantamentos, que expandem a pesquisa englobando um conjunto maior de periódicos de cada área, trazem resultados semelhantes.​
É certo que parte da explicação para o isolamento da economia relaciona-se à divisão e à especialização do trabalho acadêmico engendradas, dentre outras coisas, a partir da lógica “publish or perish” (publicar ou perecer). As diferentes abordagens metodológicas também cumprem seu papel.​
Menos óbvio é o fato de haver uma hierarquia interna mais rígida na economia do que em outras áreas, produto tanto do maior consenso em torno dos principais temas quanto da influência relativamente concentrada em poucas instituições de prestígio, sobretudo quando comparada às demais ciências sociais, tipicamente mais decentralizadas.​
É interessante notar que as críticas a esse alheamento da economia em relação a outras ciências não provêm apenas de cientistas sociais ou economistas heterodoxos. Paul Krugman e Dani Rodrik constantemente se queixam dos rumos tomados pela economia, recomendando que a disciplina deveria escapar da camisa de força dos princípios universais e do pensamento único.​
No Brasil, os artigos de André Lara Resende são um exemplo recente dessa crítica. Ao destoar do discurso único em relação à restrição financeira do Estado que emite dívida em sua própria moeda, Lara Resende foi parar na geladeira do pensamento mainstream.​
Em alguma medida, as críticas “internas” se assemelham àquelas dos cientistas sociais. Ambas caminham no sentido de defender a necessidade de enraizar a economia socialmente, discutindo as bases culturais e valorativas das condutas econômicas, a importância das instituições, os interesses políticos e as regulações jurídicas no funcionamento dos mercados, as formas variadas de racionalidades, de representações sociais e de formas de conhecimento que moldam a cognição dos agentes econômicos.​
Vale dizer que um menor isolamento poderia beneficiar a própria abordagem econômica mainstream, sobretudo diante dos grandes desafios do presente, tais como a pandemia e seus efeitos, as mudanças climáticas, o combate à pobreza e à desigualdade e as ameaças à democracia.​
Do ponto de vista dos estudos empíricos, é difícil imaginar que a interpretação de resultados econométricos não seja enriquecida e aprofundada a partir de conceitos das demais ciências sociais. A interpretação dos dados à luz de uma lente mais variada de teorias pode ser tão importante quanto uma estratégia de identificação de causalidade adequada.​
Nos estudos sobre microfinanças e inclusão financeira, para ficar apenas em um exemplo, conceitos antropológicos relacionados ao uso e ao significado do dinheiro são fundamentais não somente para a interpretação de resultados obtidos pelos modelos, mas também para a própria especificação dos mesmos.​
Do ponto de vista teórico, a contribuição de outras ciências permite tanto o refinamento quanto o descarte de abordagens pouco realistas. Esse pode ser o caso, por exemplo, do estudo dos mercados por meio de contribuições da sociologia e da antropologia econômica.​
Da mesma maneira, diversas análises sobre ética poderiam ganhar com abordagens filosóficas, psicológicas e antropológicas que questionam, por exemplo, a visão de Milton Friedman a respeito do objetivo das empresas e da redução do comportamento dos indivíduos unicamente ao autointeresse.​
Com isso, amplia-se a compreensão sobre o papel das organizações em questões relacionadas ao meio ambiente ou à desigualdade social, de gênero e racial. A própria economia política clássica poderia colaborar metodologicamente para a construção de teorias que reintroduzam as questões éticas e sociais nos modelos econômicos.​
Abrindo diálogo com as ciências sociais, inclusive com a temática do neoliberalismo, a economia ganharia com reflexões críticas sobre alguns de seus pressupostos epistemológicos e éticos. Ao incorporar a análise social da ordem econômica contemporânea, poderia refinar suas abordagens, identificar outras formas de causalidade, definir novos objetos, sofisticar a interpretação dos dados obtidos e, principalmente, adquirir novas perspectivas.​
A recusa prévia do conceito de neoliberalismo diz mais sobre as posições apriorísticas dos economistas e seu isolamento do que sobre a qualidade do debate feito por outras disciplinas.​

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Dialoga um pouco com o que falei sobre certa distância cultural entre a academia de economia e a de outras ciências, o que leva a muitos cientistas naturais cerrarem fileiras com economistas heterodoxos e desprezarem a cientificidade da economia,[1] e também com uma crítica (imerecida, a meu ver) que é feita contra a "classe dos economistas".[2]

Sobre o texto, sei lá, acho fácil falar que a ciência X poderia "refinar suas abordagens", ser mais realista, etc etc., o difícil é ir lá e fazer. Em geral os próprios cientistas são os que mais estão cientes dos pontos menos realistas de seus trabalhos, pois são esses pontos que são atacados quando o trabalho é criticado, e eventualmente são pontos que podem render trabalhos futuros. A melhor prova de que os economistas tão comendo bola seria um grupo de economistas tomarem a bola e chutarem pro gol. Daí o debate deixa de ser sobre a economia em si e passaria a ser sobre algum assunto econômico - quer dizer, viraria um debate econômico, no interior da economia. Se isso não fosse pra frente, daí das duas umas, ou uma classe de cientistas teria seus bons trabalhos injustamente menosprezados por razões X ou Y, ou os trabalhos não são tão bons assim em melhor descrever a realidade econômica...
 
Última edição:
O ponto delicado e complicado de se discutir economia é quando inevitavelmente a política entra em campo. É aí que todo o possível respeito que os leigos poderiam ter por ela como uma ciência acaba indo embora.
 

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