Recusa em debater o neoliberalismo mostra isolamento da economia
Abrir diálogo com as ciências sociais poderia refinar abordagens e sofisticar capacidade de interpretação da disciplina
3.abr.2021 às 23h15
Lauro Gonzalez
Professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV e coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da mesma instituição
Daniel Pereira Andrade
Professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV
[RESUMO] Recusa de parte significativa dos economistas em debater o neoliberalismo, ignorando suas implicações políticas e sociais, reflete o processo de isolamento da economia em relação às ciências sociais, o que reduz o alcance de seus métodos de pesquisa e de sua capacidade de interpretar os grandes desafios de hoje, como a pandemia, as desigualdades e as ameaças à democracia.
Nas últimas décadas, um tema importante surgiu na intersecção entre a economia e as demais ciências sociais:
o debate sobre o neoliberalismo. Como parte dessa discussão, as ciências sociais fizeram um esforço de recuperação e definição do conceito, com importantes avanços teóricos e empíricos nos últimos 30 anos.
No mesmo período, o termo teve um destino inverso na economia, embora originalmente formulado nesta disciplina. Parte considerável dos economistas renega o conceito, visto como um rótulo vago aplicado a múltiplas situações sociais.
É preciso reconhecer que a utilização do termo neoliberalismo como um clichê político tenha esticado a corda e diminuído o rigor conceitual das argumentações, sobretudo no mundo frenético das militâncias virtuais. No entanto, há grande distância entre reconhecer essa vulgarização e estendê-la indevidamente a todo o debate acadêmico.
Em geral, os críticos não discutem as obras e os autores de referência, preferindo adotar um expediente fácil: oferecer um anedotário de usos exóticos ou esvaziados do termo. Evitando os argumentos mais consistentes, criam uma falsa equivalência com o objetivo de deslegitimar a discussão. Acabam, assim, por reproduzir o mesmo procedimento que julgam criticar: a criação de um espantalho.
Para que a interlocução entre as disciplinas se tornasse produtiva, ainda que em termos críticos, seria interessante que fosse adotada uma postura semelhante à
do sociólogo Pierre Bourdieu em sua incursão pela economia. Afirmando se tratar de uma ciência com diversas perspectivas, reconhecia que muitas críticas formuladas pelas ciências sociais já haviam sido antecipadas no debate interno da economia.
Quando Bourdieu se detinha em um autor, escolhia um representante consagrado do campo. Lia então suas principais obras, evitando distorcer ou estereotipar a sua argumentação. Somente então procedia à crítica, buscando oferecer uma perspectiva sociológica original. Seria inimaginável pensar em Bourdieu pinçando polêmicas do Twitter ou debates laterais em revistas de grande circulação como forma de apresentar o estado da arte do que for.
Retornando ao estudo do neoliberalismo, dentre as contribuições das ciências sociais, dois caminhos se destacam. Primeiro, a reconstituição da história das escolas de pensamento econômico e filosófico que se identificavam com o termo, traçando a linha de continuidade dessas doutrinas até o presente.
Se certos críticos lessem livros como o de Philip Mirowski e Dieter Plehwe, “The Road from Mont Pèlerin”, ou de Jamie Peck, “Constructions of Neoliberal Reason”, poderiam ter a surpresa de se deparar com um espelho das próprias visões teóricas de mundo.
Segundo caminho, as ciências sociais buscaram enraizar a economia no mundo social, tomando por objeto o chamado neoliberalismo realmente existente. Nesta abordagem, o neoliberalismo passou a ser lido não apenas como um modelo de política econômica, mas também como uma forma social. Essa forma social é uma pré-condição para o funcionamento desse modelo econômico, já que sem a construção social de instituições e de condutas ele simplesmente não existiria.
Ao mesmo tempo, o próprio modelo econômico
produz efeitos na organização da sociedade, como, por exemplo, na desigualdade. As ciências sociais estenderam assim o adjetivo neoliberal a formas de cultura, de subjetividade, de normatividade, de poder, de gestão, de construção institucional, de espaço urbano, de políticas públicas etc.
Não se trata aqui de Estado mínimo ou de autorregulação, mas sim do desenho de instituições visando insular mercados, o que pode produzir um capitalismo imune aos movimentos democráticos ou ainda criar um ordenamento de modo a conter outras motivações humanas que não as econômicas.
Ao contrário do que prega sua retórica, o neoliberalismo não se opõe às formas de regulação, sendo antes uma delas, voltada para a construção de mercados (ou quase mercados) e de concorrência. Essas construções podem se dar no âmbito da governança global, como mostra o excelente livro de Quinn Slobodian sobre a Organização Mundial do Comércio (“Globalists: the End of Empire and the Birth of Neoliberalism”), ou transnacional, como o artigo de Etienne Schneider e Sune Sandbeck sobre a zona do euro.
Essas formas de governança internacional não excluem, antes implicam Estados nacionais, que são colocados em concorrência entre si, eles próprios desenvolvendo leis internas com o mesmo objetivo, como demonstra o artigo de Ian Bruff sobre o neoliberalismo autoritário.
A construção de mercados se dá também por meio de narrativas sobre o seu funcionamento. Essas histórias orientam a ação dos agentes econômicos e moldam a construção de instrumentos financeiros, os quais, por sua vez, condicionam retroativamente as condutas e o funcionamento dos mercados.
O trabalho da historiadora da economia Mary Poovey, por exemplo, discute como a hipótese do mercado eficiente e as narrativas que enfatizavam contraditoriamente o papel de indivíduos autodeterminados e o funcionamento de um sistema econômico autorregulado foram decisivas para dirigir ações e para construir instrumentos de análise de risco que acabaram por desencadear as crises que pretendiam evitar.
Poovey mostra ainda como a manutenção dessas mesmas narrativas impediu a compreensão das razões profundas das crises, levando a uma análise reducionista que atribuía as suas causas ao comportamento imoral de indivíduos no mercado.
Além disso,
o neoliberalismo se alimenta da crença de que os mecanismos de mercado podem ser adaptados para resolver qualquer problema, sendo aplicados como instrumentos de desenho de políticas públicas ou como estratégias de recursos humanos. Com isso, o próprio Estado é reformado segundo o modelo de mercado, introduzindo a concorrência e a lógica de gestão da empresa privada no seio da administração pública.
Seja por meio da construção de mercados, seja por meio da introdução da lógica do mercado em esferas da vida fora do mercado, o neoliberalismo se define como um modelo normativo de sociedade e de subjetividade. Os indivíduos, submetidos a situações de concorrência por toda parte, acabam por aderir à lógica gerencial na maneira de lidar com a própria vida.
É preciso que cada um realize investimentos em seu capital humano, zele pela própria disciplina e faça marketing pessoal de modo a vender a si mesmo. Cada indivíduo acaba assim por se tornar um empreendedor de si, vendo os demais trabalhadores não como companheiros de atividade ou de luta, mas como empresas concorrentes.
A grade de leitura gerencial acaba se estendendo para todas as esferas da existência, como fica claro na proliferação contemporânea de coachs, que utilizam técnicas empresariais como forma de desenvolver os indivíduos profissional e pessoalmente. Sobre a construção da sociedade de mercado e do sujeito neoliberal, três trabalhos já são considerados clássicos: “O Nascimento da Biopolítica”, de Michel Foucault; “A Nova Razão do Mundo”, de Pierre Dardot e Christian Laval; e “Undoing the Demos”, de Wendy Brown.
No neoliberalismo, portanto, o modelo de mercado e o empreendedorismo operam como normas centrais que organizam o conjunto da sociedade. Por se converterem em valores, eles podem ser idealizados e reafirmados como soluções mágicas, inclusive para problemas que o seu próprio funcionamento desencadeia.
Essas contribuições são suficientes para demonstrar que o descarte a priori do debate sobre o neoliberalismo pela economia não faz sentido. A relutância de parte dos economistas decorre, na verdade, do processo histórico de isolamento da disciplina em relação às ciências sociais.
O insulamento pode ser capturado, por exemplo, a partir da análise do número de citações cruzadas entre economia, ciência política e sociologia. Dentre outros, um levantamento do período entre 2000 e 2009 mostra que a American Political Science Review cita cinco vezes mais artigos das principais publicações de economia do que o contrário, ou seja, do que as citações da American Economic Review a artigos dos principais periódicos de ciência política. Retrato semelhante é obtido ao se incluir a American Sociological Review na análise.
Outros levantamentos, que expandem a pesquisa englobando um conjunto maior de periódicos de cada área, trazem resultados semelhantes.
É certo que parte da explicação para o isolamento da economia relaciona-se à divisão e à especialização do trabalho acadêmico engendradas, dentre outras coisas, a partir da lógica “publish or perish” (publicar ou perecer). As diferentes abordagens metodológicas também cumprem seu papel.
Menos óbvio é o fato de haver uma hierarquia interna mais rígida na economia do que em outras áreas, produto tanto do maior consenso em torno dos principais temas quanto da influência relativamente concentrada em poucas instituições de prestígio, sobretudo quando comparada às demais ciências sociais, tipicamente mais decentralizadas.
É interessante notar que as críticas a esse alheamento da economia em relação a outras ciências não provêm apenas de cientistas sociais ou economistas heterodoxos.
Paul Krugman e Dani Rodrik constantemente se queixam dos rumos tomados pela economia, recomendando que a disciplina deveria escapar da camisa de força dos princípios universais e do pensamento único.
No Brasil,
os artigos de André Lara Resende são um exemplo recente dessa crítica. Ao destoar do discurso único em relação à restrição financeira do Estado que emite dívida em sua própria moeda, Lara Resende foi parar na geladeira do pensamento mainstream.
Em alguma medida, as críticas “internas” se assemelham àquelas dos cientistas sociais. Ambas caminham no sentido de defender a necessidade de enraizar a economia socialmente, discutindo as bases culturais e valorativas das condutas econômicas, a importância das instituições, os interesses políticos e as regulações jurídicas no funcionamento dos mercados, as formas variadas de racionalidades, de representações sociais e de formas de conhecimento que moldam a cognição dos agentes econômicos.
Vale dizer que um menor isolamento poderia beneficiar a própria abordagem econômica mainstream, sobretudo diante dos grandes desafios do presente, tais como a pandemia e seus efeitos, as mudanças climáticas, o combate à pobreza e à desigualdade e as ameaças à democracia.
Do ponto de vista dos estudos empíricos, é difícil imaginar que a interpretação de resultados econométricos não seja enriquecida e aprofundada a partir de conceitos das demais ciências sociais. A interpretação dos dados à luz de uma lente mais variada de teorias pode ser tão importante quanto uma estratégia de identificação de causalidade adequada.
Nos estudos sobre microfinanças e inclusão financeira, para ficar apenas em um exemplo, conceitos antropológicos relacionados ao uso e ao significado do dinheiro são fundamentais não somente para a interpretação de resultados obtidos pelos modelos, mas também para a própria especificação dos mesmos.
Do ponto de vista teórico, a contribuição de outras ciências permite tanto o refinamento quanto o descarte de abordagens pouco realistas. Esse pode ser o caso, por exemplo, do estudo dos mercados por meio de contribuições da sociologia e da antropologia econômica.
Da mesma maneira, diversas análises sobre ética poderiam ganhar com abordagens filosóficas, psicológicas e antropológicas que questionam, por exemplo, a visão de
Milton Friedman a respeito do objetivo das empresas e da redução do comportamento dos indivíduos unicamente ao autointeresse.
Com isso, amplia-se a compreensão sobre o papel das organizações em questões relacionadas ao meio ambiente ou à desigualdade social, de gênero e racial. A própria economia política clássica poderia colaborar metodologicamente para a construção de teorias que reintroduzam as questões éticas e sociais nos modelos econômicos.
Abrindo diálogo com as ciências sociais, inclusive com a temática do neoliberalismo, a economia ganharia com reflexões críticas sobre alguns de seus pressupostos epistemológicos e éticos. Ao incorporar a análise social da ordem econômica contemporânea, poderia refinar suas abordagens, identificar outras formas de causalidade, definir novos objetos, sofisticar a interpretação dos dados obtidos e, principalmente, adquirir novas perspectivas.
A recusa prévia do conceito de neoliberalismo diz mais sobre as posições apriorísticas dos economistas e seu isolamento do que sobre a qualidade do debate feito por outras disciplinas.
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Dialoga um pouco com o que falei sobre certa distância cultural entre a academia de economia e a de outras ciências, o que leva a muitos cientistas naturais cerrarem fileiras com economistas heterodoxos e desprezarem a cientificidade da economia,
[1] e também com uma crítica (imerecida, a meu ver) que é feita contra a "classe dos economistas".
[2]
Sobre o texto, sei lá, acho fácil falar que a ciência X poderia "refinar suas abordagens", ser mais realista, etc etc., o difícil é ir lá e fazer. Em geral os próprios cientistas são os que mais estão cientes dos pontos menos realistas de seus trabalhos, pois são esses pontos que são atacados quando o trabalho é criticado, e eventualmente são pontos que podem render trabalhos futuros. A melhor prova de que os economistas tão comendo bola seria um grupo de economistas tomarem a bola e chutarem pro gol. Daí o debate deixa de ser sobre a economia em si e passaria a ser sobre algum assunto econômico - quer dizer, viraria um debate econômico, no interior da economia. Se isso não fosse pra frente, daí das duas umas, ou uma classe de cientistas teria seus bons trabalhos injustamente menosprezados por razões X ou Y, ou os trabalhos não são tão bons assim em melhor descrever a realidade econômica...