TRÉPLICA DA DEFESA:
Vamos estabelecer a tréplica respondendo à defesa, e fazendo considerações finais.
Uma perda grande, que como foi exposto com a perda de sua mãe, poderia ter gerado efeitos negativos em suas emoções. Entretanto, nesse momento ainda não gozava de consciência efetiva. Podendo então reduzir a possibilidade de distúrbios.
A força vital de Míriel estava em Fëanor. A ligação dele com a mãe é algo muito profundo, e nos é demonstrada pelo fato de que Míriel abnegou de sua vida após dar a luz ao filho, pois seu corpo e seu espírito estavam consumidos. Míriel vivia em Fëanor não apenas na lembrança, dado que esta poderia ser diminuta por causa da brevidade do convívio de ambos, mas muito mais no espírito.
Acrescentamos a isso o fato de que a morte ainda não era conhecida pelos elfos. Apesar da imortalidade, elfos podem morrer por causa de graves lesões à seus corpos. Mas morrer por adoecimento era algo ainda não pensado. Fëanor conheceu a morte de uma maneira dura, trágica. Desde o início de sua vida ele precisava entender os motivos pelo qual sua mãe tivera que morrer, coisa que jamais acontecera com ninguém em Aman até então. Impossível negar que essa realidade tenha causado um profundo impacto negativo sobre ele.
Finwë desposou uma nova mulher, sem nenhum motivo que o impedisse ou que condenasse tal atitude. Sua mulher anterior havia deixado os círculos do mundo, e diferente ou não de Míriel, isso não deveria trazer conseqüências, tendo em vista o que foi dito anteriormente: Fëanor perdeu sua mãe ainda sem consciência, sem a capacidade de uso da razão, então sem poder avaliar por si essas diferenças.
Dado o que falamos anteriormente, fica claro que o fato de que, quando Finwë resolveu desposar Indis, o significado de Míriel para Fëanor foi trazido à tona de maneira muito intensa. Afinal, de alguma forma Indis estava ocupando o lugar que fora de sua mãe. Por conta disso, Fëanor resolveu se tornar ainda mais solitário, vivendo distante de Indis e seus meio-irmãos. Este é o verdadeiro ponto de cisão dentro da casa de Finwë.
Lembramos então que havia Melkor, grandioso, poderoso Vala e ainda assim ganancioso e invejoso. E no exercício de seus sentimentos negativos, realizou mais um dos atos vis: O roubo das criações mais importantes de Fëanor e um dos maiores estopins de toda a tragédia, gerando no coração de fogo o ódio que a partir de então iria consumi-lo, corrompê-lo.
Reiteramos que o verdadeiro motivo que despertou o ódio em Fëanor e seu desejo de vingança contra Melkor foi o assassinato de seu pai, a quem ele amava muito acima das Silmarilli.
Esse é o ponto da mudança. Ora, já vimos que Fëanor conhecera a morte de uma maneira muito próxima quando perdera sua mãe. Era a primeira morte em Aman, e isso marcou Fëanor profundamente. E eis que então Fëanor perde também seu pai. E de uma maneira muito mais dura: assassinado por quem ele mais odiava! Como mensurar essa dor? Como entender o que se passava na cabeça do elfo? Impossível. Fëanor vivenciou as duas primeiras mortes de Aman como ninguém. Eram sua mãe e seu pai! A terra sagrada e imortal certamente já não era motivo de felicidade para Fëanor. Quem conseguiria viver onde seus pais morreram, principalmente sendo um deles assassinado covardemente por um Vala? Mais do que nunca Fëanor desejou então abandonar Aman.
E aqui já podemos dizer, que antes dos elfos e das Silmarilli, os Valar já criavam e trabalhavam para a o engrandecimento de Arda. Entre suas criações, as árvores de luz tinham sido a obra mais grandiosa concebida pela Valier Yavanna. Árvores maravilhosas, que iluminavam e enchiam de energia e esplendor o espaço, o coração, a alma e a mente daqueles que às deslumbravam. E Melkor, em sua maldade conseguiu destruir essa criação singular e tão inigualável quanto as pedras e nem isso corrompeu a Valier, sequer foi tomada pelo ódio. Ao contrário, em humildade recorreu ao elfo, para que ajudasse a recuperar sua criação.
Obviamente não podemos comparar a altivez e humildade de Yavanna, calma em sua própria natureza, com Fëanor. Suas árvores foram destruídas, sim, mas Yavanna não teve o precedente do elfo. Além disso, ela era uma Valië. Possuía certamente um entendimento muito superior a qualquer filho de Eru, e só equiparado ou ultrapassado por outros de sua raça. Essa é uma comparação que não acrescenta nada ao julgamento.
Chegamos então em um ponto crucial. A maior contradição do artífice. Fëanor que nutria um ódio sem precedentes por Melkor que roubou, enganou, iludiu, traiu e conspirou contra seu povo, resolveu dar-lhe ouvidos. E deixou-se acreditar a partir daí nas palavras do usurpador de sua criação e assassino de seu pai, a quem mais amava.
Se Fëanor odiava tanto Melkor, por que se deixou ludibriar por suas mentiras?
Essa não foi a maior contradição de Fëanor simplesmente por um motivo: ele já não dava mais ouvidos à Melkor. Não sabemos onde a acusação enxergou tal fato, mas certamente não corresponde à verdade. É fato claro que após Fëanor bater a porta na cara de Melkor, ele nunca mais acreditou no Vala. Inclusive, entre aqueles Noldor que algum dia deram ouvidos à ele, Fëanor foi o primeiro a perceber suas reais intenções. Durante anos muitos entre os Noldor foram ludibriados, mas Fëanor foi o primeiro a desvendar a real intenção de Melkor.
Por que Fëanor decidiu abandonar Aman? Por que acreditava no que Melkor havia dito? Claro que não! Fëanor era o ser que mais odiava Melkor. Fëanor decide abandonar Aman justamente para perseguir Melkor, rever suas pedras e obter sua vingança. Nada mais. Onde isso pode ser entendido como “dar ouvidos à Melkor”? Em momento algum.
Vale lembrarmos mais uma vez o contexto em que estava inserido nesse momento: Vivia em uma cidade que tentava se reconstruir depois da devastação causada pelos atos de ódio, rancor, inveja e ganância. E os Valar mais que todos estavam entristecidos com a destruição que sofreram.
No entanto, os Valar certamente não padeciam mais que Fëanor. Pois enquanto aqueles lamentavam a perda de suas obras (que ainda que não possam ser refeitas, são objetos), Fëanor lamentava a perda de seu
pai. Ele estava vivendo em uma terra onde seu pai fora cruelmente assassinado, pela ganância de um Vala. Fëanor foi motivado, mais do que nunca, a abandonar a terra daqueles que pertenciam à família do assassino de seu pai. Está certo que os Valar, apesar de serem da mesma estirpe de Melkor, não eram malignos como este. Mas Fëanor já estava cego pela dor, e não podia mais obter esse entendimento. Ele apenas viu que ali não podia mais viver, ali onde um Vala assassinara seu pai.
Além disso, a rebelião dos Noldor não é obra exclusiva de Fëanor. Todos entre seu povo escolheram ir por vontade própria. Concordaram com o que Fëanor dissera, e por sentirem-se condoídos por seu sofrimento, e por seu rei morto, resolveram segui-lo. Mas em nenhum momento algo foi imposto, tanto é que alguns resolveram permanecer em Aman.
Na posição de líder da rebelião, Fëanor guiou-os a Alqualondë. Percebeu então que suas palavras não teriam o mesmo efeito aos Teleri que causou nos Noldor e esperou. Quando julgou que suas hostes superavam as de Olwë investiu à força contra os Teleri roubando seus barcos e ceifando suas vidas, de forma calculada, cruel e friamente planejada.
De forma "calculada, cruel e friamente planejada", diz a acusação. Essa é uma acusação caluniosa. Os noldor tentaram levar os barcos sem autorização sim, mas só entraram em conflito físico contra os Teleri após serem atacados por estes. Os Teleri agiram com violência, os Noldor revidaram, e aí iniciou-se a tragédia. Em momento algum Fëanor planejou assassinatos.
Além disso, como já foi dito acima, Fëanor incitou seu povo a acompanhá-lo, mas jamais os obrigou a seguir viagem, se não desejassem - quem dirá participar de uma chacina. É simples acusar Fëanor, que era o líder e que resolveu se rebelar. Difícil é acusar todos os Noldor, que por vontade própria agiram ao lado de seu líder, com o agravante de não estarem padecendo do mesmo sofrimento dele. Fëanor pode ser a figura central, mas sozinho jamais teria feito coisa alguma.
E não podemos esquecer que assim como as Silmarilli são obras que nunca mais serão feitas novamente, também são singulares as embarcações dos Teleri, maravilhas de inspiração divina e que para eles eram grandiosas, importantes e simbólicas como as gemas de luz para os Noldor.
Acreditamos ser errôneo comparar as embarcações com as gemas. E, ainda que os Teleri pudessem ter tanto apego aos barcos quando Fëanor tinha às Silmarilli (o que é improvável), a comparação não justifica nada, e não implica em culpabilidade. Fëanor não era capaz de discernir o verdadeiro valor que os barcos poderiam ter aos Teleri.
Ainda, afirmamos que enquanto a motivação dos Teleri se fundamenta em seu apego aos barcos, a verdadeira motivação de Fëanor era seu amor por Finwë, seu pai. E é incomparável o amor dele por seu pai, do que o amor de qualquer outro ser por qualquer objeto. Não queremos com isso imputar culpa nos Teleri, apenas esclarecer que a perda deles não se compara à perda de Fëanor, e se eles agiram daquela forma por terem seus barcos roubados, o que esperar de um elfo consumido pela paixão extrema transformada em ódio cego por perder seu pai, a quem amava acima de tudo?
Aceitar que por qualquer condição - cego de raiva, de ódio, iludido, desiludido ou qualquer outro ímpeto - tenha tomado essa atitude não só não justifica como ainda assume a culpa, julga e condena o mentor da ação.
Aqui há um grande engano. As bases da imputabilidade estão consistentemente condicionadas à saúde mental e a normalidade psíquica do sujeito. Somente é imputável de culpa, dolo, aquele que tem a capacidade de realizar um ato com pleno discernimento. Para haver imputabilidade, é condição essencialmente necessária haver integridade da cognição. Através de inúmeros exemplos, contando inclusive com a concordância da acusação, percebemos claramente que essas condições primordialmente necessárias à imputabilidade de dolo não estão presentes em Fëanor.
Na seqüência de atos desastrosos, a situação seguinte não se dá por ação mas sim por omissão que é de igual valor em júri. Liderava seu povo e a seu irmão - que seguia os preceitos de honra e assumia seu papel abaixo dos comandos do primogênito de Finwë e apesar de sua retidão e disciplina foi deixado a definhar sobre o gelo de Helcaraxë.
Voltamos a dizer que a escolha de ter atravessado o gelo excruciante de Helcaraxë não foi uma imposição de Fëanor. Seu irmão não somente o seguia por ser parente tão próximo, mas ele próprio acreditava na causa pela qual Fëanor lutava, ainda que pensasse ser inconseqüente.
A todo o momento, a hoste que acompanhava Fëanor teve a escolha de voltar, e não o fizeram por vontade própria. O elfo nunca induziu ninguém a segui-lo forçosamente.
Fëanor não abandona ninguém à morte, não se tratando portanto de omissão. A condição de risco de vida para os que ficaram para trás se dá somente depois que eles resolvem seguir em frente, e adentrar em Helcaraxë. A partir de onde haviam sido deixados, todos poderiam ter voltado e se salvado. Não o fizeram por pura vontade própria.
Assumindo que Fëanor condenou à morte muitos de seus irmãos durante e depois de sua vida através sua liderança, por seu atos criminosos e suas omissões e tentando justificá-las por incapacidade mental, a própria defesa compõe então um conjunto derradeiro de provas em favor de sua condenação.
Voltamos a afirmar que esse é o erro essencial da acusação. É fato claro que pessoas morreram e sofreram por causa de alguns atos de Fëanor (e não somente dele), mas daí para a imputação de dolo há muitas questões que devem ser levadas em conta no exercício de um julgamento. E a acusação parece esquecer-se do que acabamos de mencionar: Somente é imputável de culpa, dolo, o indivíduo que tem a capacidade de realizar um ato com pleno discernimento, possuindo integridade mental e psíquica.
Respondidos os argumentos da acusação, finalizamos o processo da defesa com mais alguns esclarecimentos que julgamos que sejam necessários se levar em conta para a realização de um julgamento justo, imparcial e consciente.
Pois parece à defesa que Fëanor possui uma carga de pré-conceitos contra si, que encontram motivos no resultados de seus atos, mas não são o espelho da verdade. Acusar é tarefa fácil, buscar a compreensão é muito mais difícil. É essa compreensão que a defesa busca estabelecer. E a compreensão só se adquire quando retiramos de nossas mentes todos os julgamentos pré-estabelecidos, e buscamos encarar novamente os fatos e as razões alheias, e aí sim emitir nossa opinião.
Há uma tênue linha que separa a genialidade da insanidade, a paixão do ódio. Encontramos Fëanor justamente sobre essa linha: o maior gênio jamais nascido entre os filhos de Eru, que infelizmente decaiu para a maior das insanidades. O Elfo mais apaixonado que já pisou em Arda, cuja paixão foi transformada em ódio cego. E a partir do momento em que Fëanor cai em insanidade, infelizmente ele não é mais capaz de julgar com consciência seus atos, muitos dos quais funestos e lamentáveis.
Culpá-lo não seria nada mais do que remover a culpa do verdadeiro responsável por todas as mazelas ocasionadas no processo, que não é outro senão Melkor. Morgoth, do vazio, certamente irá rir alto, ainda que não possa ser ouvido, quando souber que sua culpa foi transferida para Fëanor, sua vítima, a quem ele com sucesso conseguiu levar para a insanidade, despertando-lhe o mais profundo ódio e desejo de vingança através de seus atos de malignidade extrema.