Ciro Gomes disse que seria capaz de receber "a turma do Moro" à bala. Anos depois, caos generalizado no Ceará, e é o seu irmão que leva bala, após uma iniciativa irresponsável que pode ser caracterizada como tentativa de homicídio.
[1][2] O governo federal, através do ministério justamente de Moro, foi crucial para restabelecer a ordem no estado. Ainda assim Ciro fica de bravata contra Sergio Moro. Mas hoje recebeu uma resposta:
Essa situação no Ceará me remete a
uma entrevista de 2016, em que um entrevistador perguntou ao Ciro por que razão, apesar de Sobral
ser Wakanda ter alguns bons índices sociais (
mas alguns destes de importância questionável, diga-se de passagem), ainda assim a cidade tinha uma taxa de homicídios elevadíssima, e mencionou de passagem
os bons resultados de São Paulo. Ciro falou que São Paulo maquia os resultados e o Ceará não (tá aí uma afirmativa que era bem-vindo que justificasse), e conjecturou que o que ocorre em Sobral é uma violência fruto do tráfico de drogas, fruto do aumento de usuários de drogas, que por sua vez seria resultado, em última instância, da "perversão neoliberal" e da "destruição da política".
Daí para justificar essa tese segue um mantra simplista, anti-capitalista, de que a globalização da propaganda (que cria aspiração ao consumo) não teria sido acompanhada pela globalização da capacidade de consumo, e isso levaria à infelicidade (daí o aumento de usuários de drogas), oposto a antigamente que, com as comunidades menos globalizadas, a busca pela felicidade faria referência a elementos locais e estaria à mão, dentro do que era acessível pela própria comunidade. Dessa forma, anteriormente a identidade brasileira estaria atrelada a elementos locais e factíveis, enquanto agora, devido à globalização, o brasileiro buscaria (especialmente através do consumo) uma identidade que não é a sua e é inalcançável. Chega a ser cômico o Ciro pensar em culpar esse suposto fenômeno pelos insucessos do Ceará, como se o governo tivesse menos culpa, e a maior culpa fosse do capitalismo ou da globalização...
E é o mesmo mantra que ele vem entoando desde há muito tempo, como no debate com o Constantino ou no debate com o Tom Palmer, ambos em 2008. Na ocasião, Constantino apontou que a população deve estar naturalmente preparada para lidar com propagandas de todo o tipo sem que isso represente ameaça a sua identidade, do contrário também estaria suscetível a propaganda de ditadores ou de populistas. Tom Palmer apontou que é absurdo falar que a identidade brasileira precisaria de protecionismos, dizendo, por exemplo, que os estonianos continuam estonianos mesmo integrados à comunidade internacional, e que o que Ciro faz, em última instância, é conectar de forma profunda a identidade brasileira com elementos anticapitalistas, como burocracia.
[3] Daí o Ciro me saiu com o monólogo com mais lero-lero e cirices da história:
Ciro: Eu devo ser sido mal interpretado, porque eu definivamente em nenhuma hipótese permitira que a nossa tradução por omissão ou ação entendesse que eu afirmei que burocracia, corrupção, ineficiência faz parte da identidade brasileira.. Isso foi mal traduzido. E agora eu vou falar em português porque talvez tenha sido meu péssimo inglês. Não é disso... mas o assunto é... é... foi mencionado nessa exiguidade de 20 min... mas é objeto de uma reflexão minha de algum tempo, parte dela no período que eu fui visiting scholar na Law School de Harvard... Cambridge, Massachusetts... E basicamente a questão da identidade tem muito mais a ver com a transição... e isso é uma digressão absoluta do nosso encontro aqui, mas talvez valha como uma semente para outros momentos... a digressão que eu quero, que eu ando especulando filosoficamente nas minhas angústias existenciais, é que a felicidade humana... por favor me perdoem, apenas porque a questão da identidade nacional consulta mais isso do que aquilo que nós estávamos falando... crescentemente transita de valores espirituais, subjetivos, românticos, poéticos, para o consumo, para quanto da minha expectativa de consumo excitada por uma comunicação global eu dou conta de praticar com a renda que disponho. Essa é a chave de inteligência não reacionária, não esquerdoide, não burocrática, não totalitária, não autoritária, não cubana, não venezuelana, se quiserem caricatura, da inteligência do que seria o papel de um homem de Estado, de uma concepção de economia moderna, não reacionária, e que incorporasse a melhor virtude do ideário liberal... a melhor virtude do ideário liberal não é a negação do estado, a mehor virtude do ideário neoliberal é a defesa da liberdade e do pluralismo... E plurarismo significa amar o método ao invés de amar a posição, significa humildade intelectual para não imaginar que a vida humana, na sua complexidade, se resume no retorno ótimo a recursos escassos, que melhor do que ninguém sabe fazer o mercado. Até porque eu não sou intelectual, sou operador da vida pública, decente, não tenho nenhum precedente nas minhas antecedências de amor à burocracia, detesto estado autoritário, odeio burocracia... E.... Só falo isso para voltar aqui à reflexão. Então repare bem... (...)
Mais tarde, Palmer observa a hipocrisia de que esse "protecionismo cultural" se aplica ao povo comum, mas não ao próprio Ciro Gomes:
Palmer: O Sr. Gomes sugeriu que o consumo é parte da identidade. Eu acho que estou do lado de um homem muito rico pelos padrões brasileiros...
Ciro interrompe e diz que é da "middle class, just to inform you".
Palmer: Por favor, vamos lá, por favor. Ele foi pra Cambridge, foi para Londres, foi para Nova York. Mas outras pessoas não devem fazer parte do clube, outros brasileiros, eles querem consumir demais (...)... mas nós, os especiais, a elite que faz as políticas, podemos ir para Cambridge, para Harvard, para Paris, para Londres, nós podemos ter esse tipo de vida, mas não vamos corromper os brasileirinhos, os pequenininhos lá, não vamos corrompê-los com riqueza, deixando eles comprarem produtos baratos da China, do Japão, da Europa (...), vamos deixar eles lá no lugarzinho deles, de forma que nós, a elite privilegiada, possamos desfrutar de nossos privilégios. Dizer que isso é parte da identidade brasileira? Bom, você deveria ter vergonha.
E qualquer semelhança com a fala anti-liberal de Paulo Guedes, sugerindo que os brasileiros não deveriam ir (tanto) à Disney, mas à cidade onde Roberto Carlos nasceu,(!) não é à toa. A mentalidade é a mesma: câmbio alto, dinheiro brasileiro praticamente todo aqui, felicidade e referências praticamente só aquelas que cabem aqui, não é viável que todos tenham aspirações internacionais... O próprio Bresser-Pereira, economista por trás da difusão do novo desenvolvimentismo, escola heterodoxa seguida pelo Ciro,
[4] pergunta se o Paulo Guedes haveria se convertido, repentinamente, ao novo desenvolvimentismo... e ainda que ao final conclua que não é o caso, não deixa de apontar que a fala de Paulo Guedes, provavelmente a fala mais mal-recebida de Guedes até o momento, "mostra apenas que [Guedes] é inteligente"....!
[5] Enfim, a diferença crucial é que a fala de Guedes mostra mentalidade estranha ao liberalismo, especialmente ao movimento liberal brasileiro pós-2013, e por isso Paulo Guedes foi malhado. Mas já na ideologia de Ciro Gomes, essa mentalidade é uma característica recorrente e duradoura, mas como em geral soa mais paternalista e menos Caco Antibes, passa batido...
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Aliás, falando em São Paulo maquiar números, não é de hoje que o Ciro diminui São Paulo para elevar o Ceará, me lembra GRRM comparando-se a Tolkien. A última que me recordo foi dizer que o Abraham Weintraub (professor da Unifesp de Osasco
) não seria ninguém no Ceará, como se o ambiente acadêmico cearense fosse, em algum aspecto, mais bem preparado. Qual aspecto será esse?
O que pode jogar uma luz nesse ponto é um artigo do H. M. Nussenzveig,
[7] importante físico brasileiro, artigo de tom autobiográfico, e que discute a dificuldade de se fazer ciência no Brasil. O artigo fala das perseguições durante o governo militar, critica marajás, cutuca o governo Temer... Mas não é que, surpreendentemente, mesmo sendo uma figura menor nesse cenário todo, nosso político favorito conseguiu também se destacar?
Fui convocado pela SBPC para duas missões. A primeira, quando estava sendo discutida a criação das FAP’s em todos os estados, foi para ir ao Ceará, juntamente com Alberto Carvalho da Silva. Fomos recebidos pelo governador Ciro Gomes e recomendamos que propusesse para a nova fundação um estatuto idêntico ao da FAPESP. Ele respondeu que “nunca se submeteria à ditadura dos mestres e doutores.”
Pô, surpreendente né, quando menos se espera, aparece Ciro Gomes fazendo cirice.
Pelo visto um orgão análogo à FAPESP estabeleceria uma "ditadura dos mestres e doutores", mas felizmente lá no Ceará estavam os Ferreira Gomes para impedir isso...
Isso remete imediatamente a uma sabatina que Ciro fez com cientistas na época das eleições.
[8] Claro que Ciro fez uma ode à ciência e disse um monte de coisa que a categoria gosta de ouvir... Mas em determinado momento deixou escapar uma crítica a tal "ditadura dos mestres e doutores" e explana como ele, Ciro Gomes, era o mediador entre classe científica e a classe popular no Ceará. Olha o naipe:
- (...) Aí veja bem. Nós não podemos substituir o nosso povo, é outro erro da nossa elite [científica]. (...) Então a tarefa aqui é pedagógica, uma tarefa humilde, não é de despótico, despotismo esclarecido e tal... Até porque determinados saberes populares, muitos anos depois de serem negados pela Inquisição, revelaram-se profundamente científicos. Toda
homeopatia, toda não sei o que e tal, os chás, as coisas, enfim, são saberes tradicionais. Lá no Ceará, por exemplo, nós tínhamos.. resolvemos apostar pra conhecer o clima... que é crítico para nós, crítico...! Nós temos lá uma regra de seca. Não é uma exceção, é uma regra de seca. E o estado ainda tem 25% da população que vive da economia rural. Então conhecer o clima para nós é crítico, então fomos desenvolvendo supercomputador, acordo com a NASA, com NOAA, com GOES, com Metal Sat (?), com não sei o quê, fomos fazendo, fazendo, fazendo, viramos excelência. Daí todo um bando de garoto que mandamos estudar em Israel, Estados Unidos, Inglaterra e tal, voltam tudo numa arrogância, porque no Ceará tem a tradição dos profetas da chuva. Aí eu obriguei todo ano seminário conjunto dos cientistas com os profetas da chuva. Porque é preciso aprender com o saber popular, porque o profeta da chuva não é exotérico, ele olha a casa do joão-de-barro, e se a casa do joão-de-barro tiver virada pro nascente, de onde chega nossa chuva, que é a convergência inter-tropical, é porque vai ser seca. O joão-de-barro sente e bota a casinha dele de frente, porque não vai entrar água na porta. Então se o sovaco do jumento tá suando, aquilo vai ser inverno. Por quê? Porque aumenta o calor específico em função da umidade. Percebe? Então há uma ciência no saber popular... e eu não valorizo não, eu valorizo é a ciência... mas eu obriguei todo ano ter um seminário. E sai as previsões nos jornais: as dos cientistas e as dos profetas da chuva.
- E estão batendo? Ou não?
- Hein? Quase nunca!
Risada generalizada.
Haha, foda, Ciro falando bem da homeopatia, Ciro forçando os cientistas arrogantes a dividirem espaço com "profetas da chuva", os profetas "quase nunca" acertando...
Por duas vezes eles diz que "obrigou" os cientistas a ouvirem os "profetas da chuva", o que não é só ridículo do ponto de vista científico, mas do ponto de vista institucional.... Revela um comportamento de coronel, no sentido de "grande proprietário
rural de comportamento despótico e patriarcal que, por força do consenso geral de um sistema de obrigações e favores, confunde em sua pessoa atribuições de caráter privativo e público"...
[9] Assim como o irmão no Ceará... Alguém imagina o Alckmin obrigando cientistas da USP a fazer qualquer coisa nesse sentido, ou alguém cedendo uma retroescavadeira a um senador de São Paulo para que ele "em sua pessoa" assuma "atribuições de caráter público" e use a força?
Enfim, Ciro como governador querer dar lição a cientistas é de lascar... Isso também remete ao que falei
aqui sobre um aspecto anti-científico de Ciro Gomes e que é comum ao Olavo de Carvalho: os cientistas seriam "leitores de manuais", mas esses dois seriam personalidades altivas, independentes, com luz própria, capaz de superá-los e guiá-los com suas reflexões e sensibilidades pessoalíssimas.
Lembro que a impressão da entrevista foi ruim, mas os cientistas fizeram boca miúda, porque era mais urgente vencer Bolsonaro - os dois falam bosta, mas o Ciro parecia mais promissor em liberar verba, daí essa pérola ficou esquecida...