Ciro Gomes tem a mania de ficar se vendendo em discussões, ao mesmo tempo um argumento de autoridade e uma propaganda política. Por exemplo, é extremamente rotineiro ele declarar que é "professor de Direito". E ainda que ele fosse o professor mais capacitado do mundo, seria uma atitude bocó... quem é professor, cientista, filósofo, engenheiro, seja o que for, evidencia a capacitação naturalmente, não precisa ficar dando carteirada...
Mas enfim, isso me traz a duvida: Ciro Gomes tem mesmo a capacitação para ser professor de Direito? Olhando a wiki dele, se formou bacharel em Direito em 79, e logo em seguida foi professor:
[1]
O pré-candidato à Presidência da República Ciro Gomes (PPS) foi professor de direito tributário, na Unifor (Universidade de Fortaleza), em Fortaleza, e de instituições do direito público e privado, na UVA (Universidade Vale do Acaraú), em Sobral.
Na Unifor, o ex-ministro da Fazenda foi professor do curso de direito. Na UVA, foi docente do curso de ciências contábeis.
(...)
O professor Judicael Pinho, que coordenava o curso de direito na época da admissão de Ciro, em 85, disse que um dos quesitos para ensinar a disciplina é que o professor tenha amplo conhecimento da legislação de direito tributário do país.
(...)
Ciro ensinou na UVA em 1979. Nessa época, ele era também assessor político de seu pai, José Euclides Ferreira Gomes, que era o então prefeito de Sobral pelo PDS. (...)
E parte dessa atuação como professor coincidiu com seu mandato de deputado estadual (83-89). Quer dizer, é uma situação atípica para os padrões de hoje né, um bacharel em economia não teria capacitação para lecionar economia a nível universitário, por exemplo... Mas ok, prossigamos.
Só bem mais tarde, em 95, ele foi pra Harvard, e por causa disso é claro que também já deu umas carteiradas... Ciro foi "visinting scholar". Do que se trata esse posto? Pesquisando...
[2]
Each year the Graduate Program hosts some 30 to 35 Visiting Scholars and Visiting Researchers (“Visitors”) from around the world. A Visiting Scholar is generally a Professor of Law at another institution; a Visiting Researcher is generally someone who is working towards a graduate degree or doing postgraduate work at another institution. In recent years our Visitors have included a Justice of the Supreme Court of Norway, a professor in a cyberlaw research institute at the University of Tokyo, the Director of the Graduate Programme in Law at Osgoode Hall Law School, and graduate students from all over the world.
The program provides Visitors access to Law School facilities (including the Law School’s libraries as well as other libraries at Harvard University) so that they can conduct research on an approved topic while in residence. Visitors may audit Law School courses on a non-credit basis with the permission of the course instructor and the Registrar’s Office. They may be able, from time to time, to consult with faculty members interested in their fields of study. The Graduate Program arranges a number of informal functions for Visitors at which they are able to present their work and meet each other as well as other members of the Law School community.
Visitors must be sponsored by a faculty member who is willing to act as an advisor to the proposed research project, and it is the responsibility of a prospective Visitor to contact appropriate faculty members and arrange for such sponsorship. Visitors do not have faculty status, nor do they have access to office space, telephones, or secretarial services. Please note that “Visiting Student” status is not available at Harvard Law School.
Percebe-se que é um vínculo extremamente precário, oficialmente sequer é disponível um espaço para trabalho. Apesar de Ciro Gomes ora ou outra dizer que é "harvadiano", "visitors do not have faculty status", afinal, são visitantes.... Quer dizer, o cara tem meramente acesso aos recursos comuns da universidade, como a biblioteca, o que qualquer 1º anista de graduação teria. Não por acaso, o texto faz questão de notar que o status de "visiting student" não existe, já que o que o texto descreve é de fato bem parecido com o que se esperaria para um mero estudante visitante... E mais: do contrário do que muitos pensam quando Ciro Gomes diz que estudou em Harvard, não se trata de uma pós-graduação ou algo análogo, o sucesso da pesquisa não é avaliada em nenhum sentido, não passa por nenhuma banca ou avaliação. É um mero "chega aí" apenas.
Quer dizer, essa experiência pode ser pessoalmente enriquecedora, mas não parece algo que capacite para o ofício de professor universitário de Direito, né? Ainda mais no caso do Ciro Gomes, em que ele foi escrever um livro com o Mangabeira Unger, livro ideológico, ou, sendo benevolente, livro de filosofia política...
No final das contas, Ciro Gomes é um bacharel em Direito com uma passagem pouco importante em Harvard - não tão diferente do Felipe Neto nesse último ponto.
[3] Talvez eu esteja perdendo de vista alguma peculiaridade do ramo do Direito, mas parece uma capacitação muito menor do que aquela esperada para um professor de Direito, professor que necessariamente é universitário (diferente da História, por exemplo, que admite o professor de nível médio).
Tirando a situação do contexto do nível superior em Direito, e inserindo-a no contexto do nível médio em História... Imagine um sujeito inteligente que se forma no ensino médio e passa a dar aulas de História por uns quatro, cinco anos - anos 80, região precária, falta de professor... situação bem plausível. Mais ainda se o sujeito em questão é de uma família super tradicional e é vereador da cidade. Mais tarde, ele faz um curso livre sobre Antiguidade Clássica em uma universidade bem renomada. Ainda sim, seria desonesto se ele, para validar seus posicionamentos, ficasse toda hora arrotando que foi professor de História, afinal não teria a formação que se espera para essa posição, ainda que de fato tenha sido professor de História...
Enfim, em geral seria uma questão pouco relevante, não me cabe julgar carreiras, mas no caso do Ciro é diferente já que ele rotineiramente usa esse fato para validar retoricamente seus argumentos.
Também no campo de administração pública o Ciro parece adotar esse tipo de estratégia. Sua carreira meteórica lembra Jânio Quadros... Engraçado, por exemplo, que ele fala toda hora que foi prefeito "da quinta maior capital do Brasil", como se tivesse tido uma longa experiência administrativa como prefeito. Deixa de falar que tal experiência foi no distante ano 1989 e que ele abandonou o cargo em pouco mais de um ano.... Convenhamos, mesmo que a experiência tivesse sido excelente, esse tempo é muito diminuto para avaliar mais seriamente... Se a prefeitura fosse uma faculdade, nem iria entrar no currículo...
Nesse sentido, quem ouve ele falar que foi secretário, prefeito, governador, ministro duas vezes, chuta que ele deve ter uns 12, 15, quiçá 20 anos de experiência no Poder Executivo. Mas, nos anos 90, prefeitura, governo e ministério somaram apenas 5 anos, foi um cargo encaixado na outro. Deixou de ser prefeito (1.25 ano) para ser governador (3.5 anos), e depois deixou de ser governador para tampar buraco no cargo de ministro da Fazenda por apenas 4 meses (0.33 ano). Ministério que não foi notável na história do Plano Real.
[4] Posteriormente, nos anos 2000, foi ministro do Lula por 3.25 anos e secretário da saúde sob o governo estadual do irmão (cerca de 1.25 ano,
aparentemente*). Enfim, o cara tem menos experiência no Poder Executivo do que um Fernando Haddad (prefeito por 4 anos e ministro por 6.5 anos*), mas não é o que parece pelo que se ouve por aí né, tem-se a impressão que o Haddad é um professor que se aventurou na política, e o Ciro, esse sim, experiente administrador público.
*A passagem de Ciro Gomes na secretaria parece tão esquecível que é difícil achar fontes confiáveis a respeito, sequer na wiki do Ciro são dados os pontos de início e término dessa secretaria. De qualquer forma, também Haddad tem passagens menos importantes em cargos não-eletivos, como na prefeitura de São Paulo de Marta Suplicy (2001-3), no ministério do Planejamento de Guido Mantega, no ministério da Educação de Tarso Genro, etc.
Frente a isso, não consigo deixar de concordar com FHC quando ele diz que Ciro "tem a petulância própria do impostor". "É muito pretensioso, as pessoas que não são muito preparadas são pretensiosas. Fez esse cursinho lá em Harvard, e já veio todo assim, dava lições de economia e dizia coisas que ele não entende, e resolveria todos os problemas do Brasil".
E pode parecer forçado, mas vejo nessa pretensão algo de muito parecido com o que ocorre com o Olavo de Carvalho. Também Olavo teve várias experiências - não administrativas, mas intelectuais. Ele, com uma retórica afiada, é capaz de discorrer sobre muitas áreas do conhecimento, e passa a impressão de ser um grande estudioso de todas elas, um verdadeiro polímata. Mas uma análise acurada constata que todas essas experiências, ainda que numerosas, não surpreendem - quer dizer, Olavo teve leituras em variadas áreas, mas ainda assim não se compara a um intelectual médio que se interessa apenas por uma ou duas áreas.
Apesar disso, Ciro e Olavo atraem um bocado de gente. Para tanto, uma estratégia, tanto de Ciro quanto de Olavo, é se colocar como o único que presta, equidistante de todos os demais que cometem ora esse erro, ora aquele. Isso passa a impressão de independência intelectual/partidária, e de ser uma força bastante particular, que emitiria "luz própria" e dispensaria rótulos e grupos, ou, como o Ciro gosta de dizer, "manuais". O termo é bem sintomático, já que os manuais não evidenciam algum tipo de limitação intelectual - pelo contrário, Thomas Kuhn chega a apontar que o aparecimento de manuais é um sintoma de que um ramo de estudo tornou-se científico, em que uma espécie de tradição consensual emergiu, uma parte do conhecimento encontra-se solidificado, e o pesquisador está dispensando da necessidade de justificar esse conhecimento em questão, isto é, de retornar, pessoalmente, aos princípios do ramo de estudo em que trabalha, como os filósofos antigos faziam. O desprezo por "manuais" é, em última instância, o desprezo por um conhecimento científico ou de aspecto científico, em nome de um conhecimento mais particular, fruto de iluminação e experiências pessoais. Enquanto o desprezo por "manuais" (conhecimento científico ortodoxo) aparece em Olavo no ramo das ciências naturais, em Ciro aparece no ramo das ciências econômicas.
[5][6]
Isso posto, não parece coincidência que os dois tenham trocado simpatias...
Pode até não ser verdade que o Ciro tenha elogiado nessa ocasião, mas não vejo motivo para duvidar - observe que se trata de 2016, nessa época o Olavo era apenas um "intelectual" e não estava associado ao Bolsonaro... Tanto é verdade que,
em outra ocasião, teria existido um momento em que o Ciro disse ao Olavo que "tudo o que você disse é verdade, mas eu não posso reconhecer isso em público"... abordaram o Ciro em palestra e perguntaram se realmente foi dito, e ao invés de rechaçar o fato de imediato como seria natural de algo exagerado que foi inventado a seu respeito, o que ele fez foi desconversar bonito e inclusive admitir que "tem admiração" pelo Olavo e que gosta de Olavo porque ele "sabe ler".
Se o Olavo sabe ler, sabe estudar, agora entendo com que parâmetro o Ciro afirma que
estuda astrofísica**...
**por sinal, reforçando o que discuti no início do post sobre passar uma impressão diferente da realidade sem necessariamente mentir, engraçado que nesse post antigo eu pareço acreditar que o Ciro tinha múltiplos títulos acadêmicos antes de ir pra Harvard, quer dizer, coisas como mestrado e doutorado, porque era professor de Direito...