Edição crítica de ‘Minha luta’, de Hitler, em francês contextualiza o livro e repete estilo ruim do original
O volume, de 900 páginas, com um rico conjunto de notas, textos explicativos e uma nova tradução, foi publicado em francês após uma década de preparativos
Adolf Hitler revisa edição de 'Minha luta' ('Mein Kampf'), em uma fotografia sem data. AFP [um verdadeiro desperdício de papel]
MARC BASSETS
Paris - 31 MAI 2021 - 15:47 BRT
Não é um livro que tenha sido publicado para vender maciçamente, nem sequer para facilitar sua leitura. A edição crítica de Mein Kampf (Minha luta) em francês é um volume atípico — e não apenas por seu conteúdo.
Quase três quilos de peso e cerca de 900 páginas num formato de 24,5 x 30 cm, parecido com o dos livros de arte que repousam sobre as mesas de algumas salas. O preço: 100 euros (637 reais). A capa, branca e com o título e os créditos em letras pretas, parece mais com a de uma tese de doutorado que com a de uma das novidades da temporada.
O que o leitor tem nas mãos não é a obra publicada em duas partes, em 1925 e 1926, e na qual Adolf Hitler expôs a visão de mundo e as obsessões — a primeira delas, o ódio aos judeus — que levariam à pior tragédia do século XX: a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto. Para começar, o título não é Mein Kampf (Minha Luta), mas outro: Historiciser le mal (historicizar o mal). Na capa não figura o nome de Hitler.
Publicado pela editora Fayard, propriedade do grupo Hachette, o livro envolveu uma década de trabalho. Um grupo de historiadores liderados por Florent Brayard preparou, juntamente com o tradutor Olivier Mannoni, uma edição em que o texto de Hitler, numa nova versão fiel ao estilo tosco e confuso do original, vem acompanhado por uma introdução geral e outra para cada um dos 27 capítulos, além de cerca de 3.000 notas. As notas e introduções têm o dobro da extensão do Mein Kampf original. “O ‘Main Kampf’”, disse Brayard ao EL PAÍS, “é uma fonte fundamental para a história do século XX: permite entender não apenas o personagem Hitler e o político Hitler, mas também, e sobretudo, a política bárbara e criminosa que ele levou a cabo a partir de 1933 [quando chegou ao poder na Alemanha], pois o livro, em muitos aspectos, anuncia grande parte das políticas que serão desenvolvidas sob o nazismo, com as terríveis consequências para a Europa que conhecemos.”
Brayard, um dos principais especialistas da França sobre o nacional-socialismo e autor de Auschwitz: Investigación Sobre Un Complot Nazi (Auschwitz: investigação sobre um complô nazista), expõe os motivos para a forma particular do volume, com as notas que envolvem na página o original de Hitler e a abundância de textos introdutórios. “Por um lado, é um texto escrito há 100 anos e que remete a uma realidade histórica que não é a nossa e nos parece história antiga. Por isso, é preciso contextualizar o que Hitler diz, para poder entender com profundidade”, explica. “Por outro lado, ele é um demagogo que não hesita em mentir e manipular. Por isso era fundamental, no aparato crítico, apontar e corrigir todas as suas mentiras e erros, pois ele fala de um número inverossímil de temas que não domina e comete erros sobre biologia, sobre história, sobre várias coisas. De modo que corrigimos de forma sistemática não apenas as mentiras, mas os erros.”
Brayard explica que, até 2016, o Ministério das Finanças da Baviera era proprietário dos direitos morais e literários de Hitler, e proibia qualquer reedição. Na Alemanha circulavam apenas velhas edições prévias a 1945, o ano final da Segunda Guerra Mundial e da derrota do regime nazista. Na França não se podia publicá-lo numa nova edição, mas era possível reimprimir e vender a tradução de 1934, acessível, como acontece com outros idiomas, na internet ou distribuída por editoras de extrema-direita.
Em 2016, 70 anos depois da morte de Hitler, o copyright ficou livre, o que abriu a possibilidade de preparar uma edição crítica. O Instituto para a História Contemporânea de Munique publicou a primeira edição crítica de Mein Kampf. Foi a base para a versão francesa, codirigida por Brayard e Andreas Wirsching, diretor do instituto de Munique. Antes da francesa, novas edições haviam sido publicadas na Itália, na Polônia e na Holanda.
Um obstáculo para a edição francesa foi a tradução. A de 1934 corrigia, lapidava e às vezes embelezava o original, repleto de repetições, frases intermináveis e incoerências: uma escrita deficiente que não impediu que o livro fosse difundido maciçamente e que suas ideias mudassem o curso da história. O objetivo do tradutor e da equipe de historiadores era seguir da forma mais fiel possível o texto de Hitler. “O difícil era conseguir uma tradução ruim: era a única que podia ser boa”, diz Mannoni por telefone. “Mantivemos todos os defeitos do texto original, porque os defeitos fazem parte de sua substância.”
Para um tradutor reconhecido como Mannoni, que verteu para o francês autores como Sigmund Freud, Stefan Zweig e Peter Sloterdijk, mas também outros autores nazistas, traduzir Hitler não foi agradável. “Nunca consegui passar mais de duas horas diárias sobre esse texto. É impossível”, recorda. “Você tem a impressão de que está andando na lama, sem avançar. Encontrei um e-mail que enviei ao editor quando entreguei a segunda parte, em que lhe contava que nunca havia sofrido tanto com uma tradução. E não porque fosse difícil, mas porque era horrível: intelectualmente vazio, muito enfadonho no estilo e com um fundo monstruoso. Você avança muito lentamente. E não há nenhum prazer.”
Se o estilo é o homem, e talvez também a ideologia, então o de Mein Kampf é revelador de tudo o que veio depois. “É um texto que mostra como a confusão da linguagem pode conduzir ao totalitarismo”, diz Mannoni. “Para mim, como linguista e tradutor, isso é importante. É preciso estudar a técnica que consiste em adormecer a razão para desembocar em palavras de ordem e teorias da conspiração muito simples: a acumulação de frases vazias, de fatos não verificados, não demonstráveis. É preciso aprender a reconhecer essa linguagem, que hoje em dia encontramos com bastante frequência.”
Lucros serão destinados à Fundação Auschwitz-Birkenau
A receita obtida com a venda de Historiciser le mal’ — a edição crítica do livro de Adolf Hitler, que será lançada na França em 2 de junho — será destinada à Fundação Auschwitz-Birkenau, encarregada de preservar os campos de concentração e extermínio. Assim explicou a diretora-geral da editora Fayard, Sophie de Closets, numa carta aos livreiros franceses datada de 13 de maio. A Fayard tem sido extremamente cautelosa após as críticas recebidas no início do projeto por publicar uma das obras mais destruidoras da história. A editora escreveu que, ao contrário do que é habitual, os 10.000 exemplares do livro não serão distribuídos para as livrarias de forma automática. Os livreiros é que terão de encomendá-lo.
Fonte: El País
Um excelente exemplo da importância do trabalho editorial, pra quem acha que a "autopublicação" vai acabar com as editoras...
PS1: Pena que eu não falo francês...
PS2: Pena que é caro pra burro...
PS3: Pena que por aqui ninguém fará um troço parecido...
O volume, de 900 páginas, com um rico conjunto de notas, textos explicativos e uma nova tradução, foi publicado em francês após uma década de preparativos
Adolf Hitler revisa edição de 'Minha luta' ('Mein Kampf'), em uma fotografia sem data. AFP [um verdadeiro desperdício de papel]
MARC BASSETS
Paris - 31 MAI 2021 - 15:47 BRT
Não é um livro que tenha sido publicado para vender maciçamente, nem sequer para facilitar sua leitura. A edição crítica de Mein Kampf (Minha luta) em francês é um volume atípico — e não apenas por seu conteúdo.
Quase três quilos de peso e cerca de 900 páginas num formato de 24,5 x 30 cm, parecido com o dos livros de arte que repousam sobre as mesas de algumas salas. O preço: 100 euros (637 reais). A capa, branca e com o título e os créditos em letras pretas, parece mais com a de uma tese de doutorado que com a de uma das novidades da temporada.
O que o leitor tem nas mãos não é a obra publicada em duas partes, em 1925 e 1926, e na qual Adolf Hitler expôs a visão de mundo e as obsessões — a primeira delas, o ódio aos judeus — que levariam à pior tragédia do século XX: a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto. Para começar, o título não é Mein Kampf (Minha Luta), mas outro: Historiciser le mal (historicizar o mal). Na capa não figura o nome de Hitler.
Publicado pela editora Fayard, propriedade do grupo Hachette, o livro envolveu uma década de trabalho. Um grupo de historiadores liderados por Florent Brayard preparou, juntamente com o tradutor Olivier Mannoni, uma edição em que o texto de Hitler, numa nova versão fiel ao estilo tosco e confuso do original, vem acompanhado por uma introdução geral e outra para cada um dos 27 capítulos, além de cerca de 3.000 notas. As notas e introduções têm o dobro da extensão do Mein Kampf original. “O ‘Main Kampf’”, disse Brayard ao EL PAÍS, “é uma fonte fundamental para a história do século XX: permite entender não apenas o personagem Hitler e o político Hitler, mas também, e sobretudo, a política bárbara e criminosa que ele levou a cabo a partir de 1933 [quando chegou ao poder na Alemanha], pois o livro, em muitos aspectos, anuncia grande parte das políticas que serão desenvolvidas sob o nazismo, com as terríveis consequências para a Europa que conhecemos.”
Brayard, um dos principais especialistas da França sobre o nacional-socialismo e autor de Auschwitz: Investigación Sobre Un Complot Nazi (Auschwitz: investigação sobre um complô nazista), expõe os motivos para a forma particular do volume, com as notas que envolvem na página o original de Hitler e a abundância de textos introdutórios. “Por um lado, é um texto escrito há 100 anos e que remete a uma realidade histórica que não é a nossa e nos parece história antiga. Por isso, é preciso contextualizar o que Hitler diz, para poder entender com profundidade”, explica. “Por outro lado, ele é um demagogo que não hesita em mentir e manipular. Por isso era fundamental, no aparato crítico, apontar e corrigir todas as suas mentiras e erros, pois ele fala de um número inverossímil de temas que não domina e comete erros sobre biologia, sobre história, sobre várias coisas. De modo que corrigimos de forma sistemática não apenas as mentiras, mas os erros.”
Brayard explica que, até 2016, o Ministério das Finanças da Baviera era proprietário dos direitos morais e literários de Hitler, e proibia qualquer reedição. Na Alemanha circulavam apenas velhas edições prévias a 1945, o ano final da Segunda Guerra Mundial e da derrota do regime nazista. Na França não se podia publicá-lo numa nova edição, mas era possível reimprimir e vender a tradução de 1934, acessível, como acontece com outros idiomas, na internet ou distribuída por editoras de extrema-direita.
Em 2016, 70 anos depois da morte de Hitler, o copyright ficou livre, o que abriu a possibilidade de preparar uma edição crítica. O Instituto para a História Contemporânea de Munique publicou a primeira edição crítica de Mein Kampf. Foi a base para a versão francesa, codirigida por Brayard e Andreas Wirsching, diretor do instituto de Munique. Antes da francesa, novas edições haviam sido publicadas na Itália, na Polônia e na Holanda.
Um obstáculo para a edição francesa foi a tradução. A de 1934 corrigia, lapidava e às vezes embelezava o original, repleto de repetições, frases intermináveis e incoerências: uma escrita deficiente que não impediu que o livro fosse difundido maciçamente e que suas ideias mudassem o curso da história. O objetivo do tradutor e da equipe de historiadores era seguir da forma mais fiel possível o texto de Hitler. “O difícil era conseguir uma tradução ruim: era a única que podia ser boa”, diz Mannoni por telefone. “Mantivemos todos os defeitos do texto original, porque os defeitos fazem parte de sua substância.”
Para um tradutor reconhecido como Mannoni, que verteu para o francês autores como Sigmund Freud, Stefan Zweig e Peter Sloterdijk, mas também outros autores nazistas, traduzir Hitler não foi agradável. “Nunca consegui passar mais de duas horas diárias sobre esse texto. É impossível”, recorda. “Você tem a impressão de que está andando na lama, sem avançar. Encontrei um e-mail que enviei ao editor quando entreguei a segunda parte, em que lhe contava que nunca havia sofrido tanto com uma tradução. E não porque fosse difícil, mas porque era horrível: intelectualmente vazio, muito enfadonho no estilo e com um fundo monstruoso. Você avança muito lentamente. E não há nenhum prazer.”
Se o estilo é o homem, e talvez também a ideologia, então o de Mein Kampf é revelador de tudo o que veio depois. “É um texto que mostra como a confusão da linguagem pode conduzir ao totalitarismo”, diz Mannoni. “Para mim, como linguista e tradutor, isso é importante. É preciso estudar a técnica que consiste em adormecer a razão para desembocar em palavras de ordem e teorias da conspiração muito simples: a acumulação de frases vazias, de fatos não verificados, não demonstráveis. É preciso aprender a reconhecer essa linguagem, que hoje em dia encontramos com bastante frequência.”
Lucros serão destinados à Fundação Auschwitz-Birkenau
A receita obtida com a venda de Historiciser le mal’ — a edição crítica do livro de Adolf Hitler, que será lançada na França em 2 de junho — será destinada à Fundação Auschwitz-Birkenau, encarregada de preservar os campos de concentração e extermínio. Assim explicou a diretora-geral da editora Fayard, Sophie de Closets, numa carta aos livreiros franceses datada de 13 de maio. A Fayard tem sido extremamente cautelosa após as críticas recebidas no início do projeto por publicar uma das obras mais destruidoras da história. A editora escreveu que, ao contrário do que é habitual, os 10.000 exemplares do livro não serão distribuídos para as livrarias de forma automática. Os livreiros é que terão de encomendá-lo.
Fonte: El País
Um excelente exemplo da importância do trabalho editorial, pra quem acha que a "autopublicação" vai acabar com as editoras...
PS1: Pena que eu não falo francês...
PS2: Pena que é caro pra burro...
PS3: Pena que por aqui ninguém fará um troço parecido...