Por que saída de Reginaldo Leme da TV Globo é marco para automobilismo brasileiro
28 de nov de 2019 08:07
Jornalista que não faz mais parte da cobertura do automobilismo da Globo é a maior referência entre aqueles que trabalham na imprensa especializada
O automobilismo brasileiro ficou em choque nesta quarta-feira, com a notícia de que, após 41 anos, Reginaldo Leme deixará as transmissões de automobilismo do Grupo Globo. Já neste fim de semana, quando acontece o GP de Abu Dhabi de
Fórmula 1, o jornalista de 74 anos não estará comentando as ações da pista de Yas Marina.
‘Regi’ é considerado a maior referência na mídia do esporte a motor do Brasil e não só pelo período em que esteve nas transmissões televisivas. Apesar de não ter feito a cobertura do bicampeonato de Emerson Fittipaldi para a TV, ele a fez durante passagem pelo jornal
O Estado de S.Paulo, veículo em que começou a trabalhar em 1968. Na emissora carioca desde 1978, ele acompanhou de perto os seis títulos mundiais de Nelson Piquet e Ayrton Senna.
Em uma época em que o staff dos pilotos não impunha tantas barreiras, Regi era quem conseguia trazer as grandes novidades da F1 direto das fontes. O trabalho bem feito rendeu alguns resultados que poucos conseguiram, como a confiança de Nelson Piquet, que reconhecidamente não costuma falar com a imprensa.
Foram vários os casos de informações exclusivas de 'Nelsão', tanto na época da F1 como no grave acidente em Indianápolis. Outro caso notório foi a amizade com Ayrton Senna, às vezes estremecida pelo fato de o profissional conseguir separar trabalho e companheirismo.
Na cabine de transmissão, Regi esteve, na maioria das vezes, ao lado de Galvão Bueno, outra referência de F1 na mídia brasileira. A parceria com Galvão é a mais longeva entre todos os esportes que o narrador já transmitiu, o que mostra todo o entrosamento e confiança entre a dupla.
Outro marco da carreira de Leme na Globo foi o Sinal Verde, quadro que mostrava uma faceta além do que acontecia na pista antes de cada corrida, com curiosidades de cada local visitado. Além, claro, das informações, algo nunca desprezado por quem ama a profissão. A volta do quadro à TV em 2016 foi motivo de grande orgulho.
Um dos grandes feitos de Regi, já experiente, foi o furo jornalístico mundial do chamado ‘
CrashGate’, quando Nelsinho Piquet acabou batendo sua Renault propositalmente no GP de Singapura de 2008, em benefício de Fernando Alonso, após ordem de Flavio Briatore, chefe da Renault. O jornalista brasileiro foi o primeiro a noticiar o que havia acontecido quase um ano depois, durante o GP da Bélgica. Em entrevista ao
Motorsport.com, ele explicou como tudo aconteceu.
"O Nelsão [Piquet] estava rodeado por jornalistas no GP da Hungria, e antes do início de um treino, a turma foi embora. Mas ele disse uma frase que me deixou com a pulga atrás da orelha e fui procurá-lo de novo. Falei sobre essa pulga e ele me disse: 'Você é um cara que conheço e que merece. Você foi o único que sacou isso. Então vou te contar a história e guarde ela, que eu vou dando todas as atualizações. Só que, para o seu bem, você não pode divulgar isso antes da hora. Por enquanto não temos prova de nada, vou te mantendo informado'. E foi o que fiz".
"Quando chegou no GP da Bélgica, no sábado, ele ligou pra mim e aquela era a hora. A FIA havia mandado gente para investigar o Flavio Briatore e várias pessoas da Renault. E falei na corrida. Eu não havia dividido isso com ninguém, nem com o Galvão. No GP da Itália, quando cheguei na pista, o Briatore estava dando uma entrevista, dizendo que tudo aquilo 'era mentira do jornalista', que ele iria provar. Amigos meus que estavam nessa entrevista disseram que estavam preocupados comigo. No domingo, a Renault emitiu um comunicado dizendo que o Briatore estava demitido."
Em 2013, Reginaldo recebeu uma homenagem oficial da F1, com uma medalha representando os 500 GPs cobertos pelo comentarista. A honraria veio direto das mãos do chefão da categoria na época, Bernie Ecclestone.
Sobre pilotos, Regi falou com exclusividade, na ocasião dos 40 anos de carreira na TV, sobre aqueles que mais o marcaram. Citou Senna, Piquet, Alonso, Michael Schumacher e Fittipaldi, mas admitiu que quem o fez amar o esporte foi Jim Clark, lamentando a falta de oportunidade em não cobrir suas corridas como fez com os outros citados.
Nos últimos anos, as transmissões das provas da F1 começaram cada vez mais a serem feitas do Brasil, com a Globo tendo apenas repórteres
in loco, mas Regi continuava comentando todas as provas ao lado de Galvão e Luciano Burti.
Em outro momento, o comentarista refletiu sobre os principais momentos que marcaram sua carreira na cobertura da F1, além falar sobre como conheceu Senna.
GP de Mônaco de 1984
Photo by: Sutton Motorsport Images
Em seu primeiro ano de F1, Senna assombrava o mundo com seu desempenho nas ruas de Monte Carlo, em prova vencida pelo seu futuro grande rival, Alain Prost. Em uma época que a comunicação era bem diferente dos dias de hoje, Leme teve a tarefa de apresentar o piloto brasileiro à imprensa mundial.
"O Senna estava entrando naquele ambiente, com uma concentração maior de jornalistas e eu sempre me dei muito bem com os italianos. Fui apresentá-lo para cada um deles, pessoalmente: 'olha, para mim, ele tem tudo para ser um campeão', eu falava isso a eles, alguns já concordando. Isso era no papo, tomando uma cerveja em um casino. A gente jogava muito no número do carro dele (#19 na Toleman) e saia algumas vezes. Diziam que além de tudo, ele tinha sorte."
GP do Japão de 1988
Photo by: Sutton Motorsport Images
No maior momento de sua carreira nas pistas até então, Senna se rendeu a habilidade de Regi de quebrar qualquer tipo de clima ruim.
"Minha briga com o Senna foi de 1990 a 1991, mas em 1988 a gente não estava 100%. Quando ele ganhou o título, eu fui entrevistá-lo. A Betise Assumpção, assessora dele, o avisou que eu estava esperando e ele disse que viria. Ele chegou e disse, 'vamos lá, vamos lá'. Deu uma entrevista muito louca, aquela em que ele olhava o telão. Depois que eu fiz duas ou três perguntas para o Fantástico, eu passei a prolongar o papo para o lado pessoal que iria para outros telejornais. Eu sabia que ele iria se emocionar e ele, de fato, começou a chorar. Ele percebeu que algumas das perguntas que eu fazia tinha a ver com o que tinha se passado entre a gente. Ele saía um pouco da resposta, mas estava sabendo."
GP da África do Sul de 1983
Nelson Piquet, Brabham BMW
Photo by: BMW AG
Nos bastidores, o segundo título de Nelson Piquet evidenciou um lado pouco mostrado pela imprensa, em um momento difícil na vida de Reginaldo Leme, como ele mesmo ressaltou.
"Apesar de iniciar em 1978, eu comecei a cobrir as corridas in loco em 1981. Isso mostra como o Piquet não é tão frio como muitos dizem. Antes de subir para a cabine de transmissão, eu ficava na pista até o último momento. O Piquet estava saindo do banheiro, indo para os boxes e eu bati nas costas dele e desejei boa sorte. Ele, de costas, esticou a mão para mim, me puxando para o grid, com os carros posicionados. Quando ele me puxou, foi um cumprimento, eu tentei soltar e ele não largou, estava com a mão firme, como se houvesse uma troca de energia ali. Soltou de repente, não olhou para trás e foi embora para ser campeão. Terminada a corrida, eu fui o primeiro a chegar no carro do Nelson. No que eu cheguei, o Bernie [Ecclestone] veio também, então nós dois tiramos ele do carro e ali mesmo já começou a entrevista."
GP de Las Vegas de 1981
Nelson Piquet, Brabham BT49C-Ford Cosworth
Photo by: LAT Images
A cobertura do primeiro título de Nelson Piquet teve como principal ingrediente a emoção e a sensibilidade do repórter/comentarista e também do diretor de esportes da Rede Globo.
"Em 1981, no primeiro título do Piquet, ele deu aquele berro, que era direcionado a outra pessoa, e eu fui entrevistá-lo, já formando aquela rodinha de jornalistas. Ele começou a falar com aquela tentativa de se manter frio, agradecendo e tal. E eu perguntei a ele se a ficha já havia caído, que ele era campeão do mundo. Ele esboçou três palavras e emudeceu com tamanha emoção. Ficou mudo uns 40 segundos e eu fiquei com o microfone ali.
Qualquer outro teria aproveitado aquele tempo para fazer outra pergunta. Fiquei ali, respeitando o silêncio dele, com o cinegrafista mostrando a cara dele, já dizendo tudo. Essa matéria foi ao ar assim no Fantástico e o diretor da Globo era o Armando Nogueira e ele fez questão de mostrar a matéria inteira para mostrar a sensibilidade do repórter que soube respeitar o silêncio do entrevistado. O silêncio mostrava muito mais do que qualquer outra palavra."
Como Reginaldo Leme conheceu Ayrton Senna
Photo by: Sutton Motorsport Images
Um sexto momento marcante da carreira do jornalista na Fórmula 1 se faz necessário, ao mostrar a determinação de Ayrton Senna, mesmo sem ser ainda piloto da categoria.
"O Senna já corria de Fórmula Ford e fez uma preliminar para o GP da Alemanha, em Hockenheim. Eu estava em um hotel que era relativamente perto de onde ele estava, eu nunca o tinha visto na vida. Nessa época, eu morava na Inglaterra e ia para as corridas europeias com minha mulher e minha primeira filha. O Ayrton foi até a recepção e subiu, bateu na porta do meu quarto e minha mulher abriu. E ele disse: 'eu sou o Ayrton Senna e vim aqui para conhecer o Reginaldo' e minha mulher disse que eu ainda não havia chegado da pista. Quando eu voltei para o hotel, quase uma hora depois, ele estava sentadinho na recepção me esperando para se apresentar. Isso foi em 1982, na Alemanha."
Confira imagens das ocasiões citadas acima por Reginaldo Leme
GP de Mônaco de 1984
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Foto de: Sutton Motorsport Images
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