A temperatura em Brasília não passou de 27ºC naquela sexta-feira, mas o ambiente estava tórrido no gabinete presidencial, no Palácio do Planalto. Ainda pela manhã, Jair Bolsonaro fora informado que o ministro Celso de Mello, o decano do Supremo Tribunal Federal, consultara a Procuradoria-Geral da República para saber se deveria ou não mandar apreender o celular do presidente e do seu filho Carlos Bolsonaro. Era uma formalidade de rotina, decorrente de uma notícia-crime apresentada por três partidos, mas a mera possibilidade de que seu celular viesse a ser apreendido deixou Bolsonaro transtornado. No seu gabinete, a reunião das 9 horas começou com um pequeno atraso. Estavam presentes dois generais: o ministro-chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, e o ministro-chefe da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos. O terceiro general a participar do encontro, Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, achando que aquele 22 de maio de 2020 seria um dia tranquilo, marcara uma consulta médica na parte da manhã. Foi o último a chegar à reunião. Agitado, entre xingamentos e palavrões, o presidente saiu logo anunciando sua decisão:
– Vou intervir! – disse.
Bolsonaro queria mandar tropas para o Supremo porque os magistrados, na sua opinião, estavam passando dos limites em suas decisões e achincalhando sua autoridade. Na sua cabeça, ao chegar no STF, os militares destituiriam os atuais onze ministros. Os substitutos, militares ou civis, seriam então nomeados por ele e ficariam no cargo “até que aquilo esteja em ordem”, segundo as palavras do presidente. No tumulto da reunião, não ficou claro como as tropas seriam empregadas, nem se, nos planos de Bolsonaro, os ministros destituídos do STF voltariam a seus cargos quando “aquilo” estivesse “em ordem”. A essa altura, ele já tinha decidido também que não entregaria seu celular sob hipótese alguma, mesmo que tivesse que descumprir uma ordem judicial. “Só se eu fosse um rato para entregar meu celular para ele”, disse, fazendo uma comparação que voltaria a usar, em público, no transcorrer do dia.
– Vou intervir! – repetiu.
Apesar da extrema gravidade do anúncio, o general Luiz Eduardo Ramos, amigo de Bolsonaro há mais de quatro décadas, recebeu bem a intenção do presidente de partir para um confronto de desfecho catastrófico. Achava que intervir no Supremo era, de fato, a única forma de restabelecer a autoridade do presidente, que vinha sendo abertamente vilipendiada pelo tribunal. No seu raciocínio, a decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF, que proibira a posse de Alexandre Ramagem como diretor-geral da Polícia Federal, já tinha sido um abuso inaceitável. Braga Netto e Augusto Heleno concordavam que Moraes fora longe demais. Também achavam que a decisão do ministro fora uma interferência inadmissível em ato soberano do presidente, mas tinham dúvidas sobre a forma e as consequências de uma intervenção. A certa altura, o general Heleno tentou contemporizar e disse ao presidente:
– Não é o momento para isso.
A piauí reconstituiu os detalhes da reunião com quatro fontes que pediram anonimato para não contrariar o presidente. Duas delas testemunharam a reunião. O clima era tenso, as pessoas entravam e saíam do gabinete presidencial, enquanto os garçons, aparentemente alheios ao ambiente carregado, serviam água e café preto, com as opções de açúcar, adoçante ou leite em pó. Entre a decisão de Bolsonaro de intervir no STF e o conselho apaziguador de Heleno, deu-se um debate sobre como a intervenção poderia acontecer legalmente. Apesar da brutalidade autoritária de uma intervenção, havia a preocupação de manter as aparências de uma medida dentro da lei.
A reunião prolongou-se e acabou se fundindo com a reunião seguinte, prevista para as 10 horas na agenda presidencial. Os participantes do compromisso das 10 horas – os ministros André Mendonça (Justiça) e Fernando Azevedo (Defesa), além de José Levi, titular da Advocacia-Geral da União – se incorporaram à discussão de como dar legalidade a uma eventual intervenção. A conversa girou em torno do artigo 142 da Constituição.
No dia 28 de maio, o jurista Ives Gandra da Silva Martins, de 85 anos, publicou um artigo no Consultor Jurídico, um site de notícias jurídicas. O título do artigo já mostrava a tese central: Cabe às Forças Armadas Moderar os Conflitos entre os Poderes. O jurista dizia que o artigo 142 da Constituição permite que qualquer dos três poderes, caso se sinta “atropelado por outro”, peça que as Forças Armadas “ajam como poder moderador” com o objetivo de restabelecer “a lei e a ordem”. A ideia do jurista não era propriamente uma novidade, mas a publicação do artigo ajudou a dar visibilidade a uma tese que já circulava no meio militar e, nos últimos tempos, vinha aparecendo nas manifestações que a militância bolsonarista promove habitualmente contra o Congresso e o Supremo.
A interpretação de que as Forças Armadas têm o papel equivalente ao de um “poder moderador” encontra terreno nos clubes militares e entre oficiais da reserva, mas costuma ser rechaçada pelo alto-comando das armas. Em 2016, o professor Dehon Padilha Figueiredo, do Quadro Complementar de Oficiais do Exército, e o oficial do Exército Renato Rezende Neto publicaram um estudo jurídico cujo título é o seguinte: Direito Operacional Militar: Análise dos Fundamentos Jurídicos do Emprego das Forças Armadas na Garantia da Lei e da Ordem. O estudo se encarrega de mostrar que o papel moderador da Forças Armadas está na combinação de quatro artigos da Constituição: 34, 136, 137 e 142. “Fica claro que a função primordial das Forças Armadas é garantir os poderes constitucionais, inclusive a independência entre eles”, disse Figueiredo, um dos autores do estudo, em conversa com a piauí. “Se houver algum risco de quebra dessa ordem, o chefe do poder que se viu atingido pode requerer uma intervenção.”
O estudo, embora realizado em 2016, só foi publicado em janeiro passado e, desde então, começou a circular no Palácio do Planalto e nos grupos de WhatsApp de reservistas que defendem uma saída autoritária. A combinação dos quatro artigos chegou a ser mencionada na reunião com Bolsonaro, para mostrar que haveria um respaldo constitucional na intervenção. Nessas franjas militares, é antiga a tese de que a Constituição submete o poder civil ao poder militar. Quando ainda era candidato, o vice-presidente, general Hamilton Mourão, ao responder uma pergunta hipotética, falou sobre o assunto. Disse entender que, em caso de “anarquia”, a Constituição prevê que o presidente dê um golpe militar em seu próprio favor. “É um autogolpe, você pode dizer isso.”
No meio jurídico, o estudo dos quatro artigos não é conhecido, mas o texto de Gandra Martins disseminou-se rapidamente e causou espanto. Em uma decisão judicial sobre uma ação movida pelo PDT, que pedia um esclarecimento sobre o papel dos militares, o ministro Luiz Fux, do STF, disse textualmente que a missão institucional das Forças Armadas “não acomoda o exercício de poder moderador”. O ministro Gilmar Mendes disse que, para confundir a missão dos militares com a de poder moderador, é preciso percorrer “uma distância abissal”. O ministro Luiz Roberto Barroso, em outra decisão, classificou a interpretação dos defensores da intervenção militar como “terraplanismo constitucional”. “Esse poder moderador que o presidente confere às Forças Armadas não existe”, disse um graduado general, que pediu para ficar anônimo porque os militares da ativa não podem emitir opiniões políticas. “Você não vai encontrar essa função em nenhum livro ou manual das escolas militares.”
Entre os militares da reserva, estão os saudosos da ditadura militar. Eles defendem a radicalização do governo, inclusive com a adoção de medidas de exceção. A situação é outra entre os atuais comandantes, que têm tropa e poder. Esses querem distância da polarização política e rejeitam qualquer hipótese de intervenção militar. Nos três últimos meses, enquanto Bolsonaro minimizava a pandemia e apoiava manifestações radicais na frente de quartéis, as três forças – Marinha, Exército e Aeronáutica – se encarregaram de adotar um comportamento oposto, participando das ações de combate à Covid-19. No mesmo dia em que Bolsonaro fez pronunciamento na tevê dizendo que a pandemia era um problema sério na Itália, mas não no Brasil, o comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, publicou um vídeo dizendo que a crise sanitária “talvez seja a missão mais importante de nossa geração”.
Dois argumentos ajudaram a acalmar Bolsonaro na reunião. O primeiro: não havia ordem para apreender seu celular, apenas uma consulta do ministro do STF, de modo que ainda havia a possibilidade de que a apreensão não ocorresse. (De fato, dez dias depois, Celso de Mello arquivou o pedido de apreensão, mas, em sua decisão, fez questão de mandar um recado ao presidente, dizendo que o descumprimento de uma ordem judicial “configuraria gravíssimo comportamento transgressor”.) O outro argumento: o governo daria uma resposta contundente ao STF na forma de uma nota pública. Combinou-se na reunião que o general Heleno assinaria a nota. Além de concordar com a queixa de Bolsonaro segundo a qual a Corte Suprema estaria ferindo a independência entre os poderes, Heleno é responsável pela proteção física e pela defesa do presidente. Ficou acertado que a apreensão do celular do chefe do Executivo poderia ser considerada uma forma de atentado, não físico, mas contra a sua autoridade.
A Nota à Nação Brasileira, escrita pelo próprio general Heleno e divulgada no início da tarde daquela sexta-feira, veio em tom pesado. O general disse que o pedido de apreensão era “inconcebível e, até certo ponto, inacreditável” e consistia em “uma afronta à autoridade máxima” do presidente. Encerrava o texto curto com um aviso ameaçador: “O Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República alerta as autoridades constituídas que tal atitude é uma evidente tentativa de comprometer a harmonia entre os poderes e poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional.”
A nota ajudou a serenar os ânimos de Bolsonaro, mas atiçou os ânimos do país. Seu tom foi duramente criticado por políticos e juristas. Nos dias seguintes, general Heleno recebeu aplausos de organizações militares e dos seus colegas de turma da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), que lançaram uma nota alarmista, alertando para o risco de “guerra civil” e acusando os ministros do STF de falta de “decência” e de “patriotismo”. Heleno agradeceu a nota dizendo-se “emocionado”. Dias depois, com a crise do celular já superada pela decisão de Celso de Mello, o general voltou a falar da nota publicamente. Afirmou que, naquele dia, não quis ameaçar ninguém e lembrou que não citara o nome de nenhuma autoridade. No Planalto, assessores disseram que a expressão “consequências imprevisíveis” devia ser interpretada nos seguintes termos: “Tudo pode acontecer, inclusive nada.”
Na tarde daquela mesma sexta-feira, o ministro Celso de Mello autorizou a divulgação do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, na qual Bolsonaro claramente reclama que suas tentativas de interferir na Polícia Federal para proteger familiares e amigos não vinham obtendo sucesso. A repercussão do vídeo – com seu linguajar rasteiro, os palavrões, as ameaças vulgares – ajudou a elevar a temperatura. A divulgação do vídeo, no entanto, não transtornou Bolsonaro, que já esperava que o sigilo fosse levantado e apostava que, no fim das contas, seu eleitorado até ficaria satisfeito com o conteúdo.
Aintervenção foi descartada naquele dia, mas não morreu. Seis dias depois da reunião do golpe, quando Gandra Martins publicou seu artigo, o presidente divulgou uma entrevista do jurista em uma de suas redes sociais. No mesmo dia, inconformado com a operação policial contra seus aliados realizada na véspera, disse: “Acabou, porra! Me desculpem o desabafo. Acabou! Não dá para admitir mais atitudes de certas pessoas individuais.” E prometeu: “Não teremos outro dia igual a ontem. Chega. Chegamos ao limite.” Um dia antes, o deputado federal Eduardo Bolsonaro também abordara o assunto em um vídeo que se encontra no YouTube. Disse que era “inadmissível” o que os ministros Alexandre de Moraes e Celso de Mello estavam fazendo “com a democracia brasileira” e afirmou que já não havia mais dúvida de que haverá uma “ruptura”. Disse ele: “Não é mais uma opinião de ‘se’ mas ‘quando’ isso vai ocorrer.” Eduardo Bolsonaro é aquele que, antes da eleição do pai, disse que bastavam um cabo e um soldado para fechar o STF.
No dia 12 de junho, duas semanas depois do “Acabou, porra”, o próprio presidente retomou, agora em público, a ideia de que as Forças Armadas são superiores ao poder civil. Em resposta à decisão de Fux que esclareceu que os militares não formam um “poder moderador”, Bolsonaro divulgou uma nota dizendo que as Forças Armadas não cumprem “ordens absurdas” e não aceitam “tentativas de tomada de poder por outro poder da República, ao arrepio das leis, ou por conta de julgamentos políticos”. O vice-presidente e o ministro da Defesa assinaram a nota com o presidente. Naquele mesmo dia, veio a público o conteúdo de uma entrevista à revista Veja na qual o general Ramos, da Secretaria de Governo, disse que era “ultrajante” a ideia de que militares estão pensando em golpe e, em seguida, completou com o mais explícito golpismo já externado por um militar no governo: “O próprio presidente nunca pregou o golpe. Agora, o outro lado tem de entender também o seguinte: não estica a corda.”
Em 16 de junho, dia em que o Supremo quebrou o sigilo bancário de onze parlamentares bolsonaristas e a Polícia Federal fez uma operação de busca e apreensão contra suspeitos de financiarem ilegalmente atos antidemocráticos, Bolsonaro publicou uma série de dez mensagens numa rede social. Disse que não podia “assistir calado enquanto direitos são violados e ideias são perseguidas”, e argumentou que sua luta destinava-se a defender “a Constituição e a liberdade dos brasileiros”.
Com notas ambíguas ou claras, declarações dúbias ou ameaçadoras, o fantasma de uma intervenção militar não se dissipa. Em maio, o próprio general Heleno teve que mandar um áudio no WhatsApp para desmentir uma versão atribuída a um capitão da reserva, Durval Ferreira, segundo a qual o general vinha defendendo um golpe militar. “Boa noite a todos os amigos do Rio Grande Sul. Quem está falando é o general Heleno, daqui de Brasília”, começa o áudio. Na mensagem, que dura 1 minuto e 50 segundos, o general admite que conhece Durval Ferreira – “conheço, mas não é meu amigo” –, mas diz que o capitão não tem autorização para falar em seu nome. “Não penso como ele”, diz o general. “Não acho que haja clima para uma intervenção militar, muito menos para um golpe de Estado.” Heleno afirma que “medidas graves foram tomadas em discordância da Constituição”, mas que, nessa hora crítica, “temos que ter muito juízo”, e encerra pedindo “muita, mas muita prudência”. Durval Ferreira afirma que nunca disse que Heleno pregava um golpe militar.
A decisão do presidente de intervir no STF pode ser vista como intempestiva, tomada no calor da hora, mas é relevante que os anais da história registrem que o presidente do Brasil, numa reunião no palácio na manhã de 22 de maio de 2020, decidiu ocupar o Supremo com tropas – e foi persuadido a desistir da quartelada. Curiosamente, naquele mesmo vídeo no YouTube em que diz que a “ruptura” é só uma questão de tempo, Eduardo Bolsonaro afirma para sua audiência que o Brasil está no caminho de uma ditadura, orquestrada pelo STF, e explica que um regime autoritário não se materializa de um dia para o outro. Constrói-se aos poucos. Para elucidar seu ponto, Eduardo cita então o exemplo da Venezuela e dá a receita: “[Você] dissolve a Suprema Corte, bota todos bolivarianos indicados pelo Hugo Chávez.”
Ditadura, está claro, é só quando o outro dissolve a Suprema Corte.