4- Whisky e Vodca
- Destilados? – perguntava a pequena senhora, parada em frente ao balcão. Tim não respondeu. Aliás, nem ao menos pareceu tomar conhecimento da pergunta, ainda embasbacado com a mixórdia de formas estranhas que, de alguma forma, se equilibrava na cabeça da mulher.
- Destilados? – insistiu ela.
- Ah, sim. Claro! – acordou Tim. – Terceira prateleira, à esquerda – disse ele, apontando.
A senhora sorriu e dirigiu-se vagarosamente ao local que Tim havia indicado. Este ficou observando-a, tentando definir aquelas formas, esforçando-se em tirar alguma coerência ou propósito daquele penteado, que mais parecia o cruzamento de um peru com um liqüidificador. Um tempo depois ela voltou, trazendo uma garrafa de Jack Daniels, que colocou delicadamente sobre o balcão. Dirigiu-se então à área das geladeiras, que ficava na parede dos fundos, ainda com a mesma lentidão. Tim deu uma olhada para o outro lado da rua, onde Frank, recostado em seu carrinho, enxugava as lágrimas provenientes do acesso de riso a que finalmente conseguira dar um fim. Tim desviou o olhar rapidamente, preocupado em manter-se sério. Sua força de vontade estava sendo posta à prova naquele momento, indubitavelmente. A senhora retornou, após alguns minutos, trazendo uma caixa de suco de laranja, que ela depositou ao lado do whisky, com o mesmo zelo. Sem dizer nada, encaminhou-se novamente ao lugar de onde acabar de vir. Após alguns segundos, Tim esticou o pescoço para ver onde ela estava, um tanto irritado por sua lentidão, mas as prateleiras eram mais altas, e a escondiam.
- A senhora quer ajuda? – perguntou ele, num tom desnecessariamente alto.
- Não, eu estou bem – respondeu ela, de algum lugar. – Não tenho pressa.
Tim deu de ombros, pegou um jornal e começou a folhear, com desinteresse. Sem parar de virar as páginas, olhou para fora novamente e notou que o mendigo havia acordado, e se esforçava para andar em linha reta. Tim parou de virar as páginas e passou a observar o homem, que continuava tentando caminhar, mas tropeçava a cada investida. Ele tinha uma garrafa de vodca na mão, e aparentemente todo seu conteúdo na cabeça. Ajeitou os trapos, passou a mão pelos cabelos ensebados, coçou a barriga e soltou um arroto; deu uma boa olhada na garrafa e então, com um movimento brusco, largou-a no chão. Após fazer isso, ficou parado por um momento, aparentemente pensativo (embora não fosse possível afirmar com certeza). A garrafa não quebrou, mas rolou copiosamente até o meio-fio. Tim acompanhou sua trajetória instintivamente, num daqueles momentos em que a gente faz as coisas sem pensar, apenas para ser interrompido pelo vagabundo que, entusiasmado, começara a gritar algo sobre o fim do mundo. Tim achou que já tinha lhe dado atenção demais, e voltou a olhar o jornal. Nesse momento, a senhora retornava, carregando um pacote de pão. Ela colocou o pacote no balcão, ao lado da caixa de suco, e olhou para fora, onde o mendigo ainda fazia seu discurso apocalíptico.
- Pobre homem – lamentou a senhora.
Tim não respondeu. Limitou-se a olhar novamente o maltrapilho, que tinha parado de gritar e estava momentaneamente estático, com a boca aberta e o dedo indicador em riste, como se, no meio de uma oratória importante, tivesse perdido o fio da meada.
- Um homem tão jovem, nesse estado deplorável – ela continuou. Realmente, o mendigo parecia ser bem novo (para um mendigo, pelo menos). – Não é como você, não é mesmo, meu rapaz? Tenho certeza de que você é um jovem direito e responsável. Eu sei dessas coisas. Aposto que você tem uma namorada.
- Não exatamente – disse Tim, ignorando a impertinência da velha. Qualquer outro dia, a resposta teria sido simplesmente "não". Ele percebeu isso, e se perguntou por que havia respondido daquela forma. Ela ignorou o "exatamente" e disse:
- Ah, mas um moço bonito como você! Tenho certeza de que qualquer moça ficaria... oh! – ela se deteve, de repente, como se atingida por uma constatação constrangedora. Tim não entendeu, e ela continuou: - Você não é gay, é?
- Não, claro que não! – respondeu ele, espantado.
A mulher o olhava, desconfiada.
- Se você quer saber, eu... – ele parou no meio da frase e olhou em volta, sentindo-se observado. – olha, gostaria que não falássemos sobre isso, se fosse possível.
- É claro que é possível, meu jovem. Basta pedir com educação.
Um momento de silêncio constrangedor se seguiu, até que Tim se lembrou de que, de acordo com as regras de conduta dos balconistas, havia algo que ele deveria perguntar:
- Mais alguma coisa?
- Um pacote de Camels – pediu ela.
Ele colocou o pacote no balcão e registrou na máquina. Começou a colocar as compras numa sacola, tentando não olhar diretamente para aquela selva de bobs, grampos e tufos de cabelo que lutavam por um lugar no espaço cefálico da pequena senhora, e falhando categoricamente. Ela percebeu.
- O que você tanto olha, rapaz?
- Desculpe... mas... – disse Tim, apontando receosamente para o penteado alienígena.
Ela fazia cara de quem não estava entendendo. Então, de repente, uma constatação pareceu atingi-la em cheio, como um soco no estômago. A velha ficou branca.
- Eu... esqueci meu chapéu, não? – perguntou ela.
Ah, isso explicava tudo. Tim lembrou-se da garrafa de Jack Daniels – de fato, tirando-se uma média entre idade e hábitos de consumo, tal esquecimento não devia ser um acontecimento isolado.
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