Como o migo
@Bartleby é o nosso especialista em Nobel, e já leu bastante coisa da Ernaux, queria saber a opinião dele sobre
Paixão Simples (sim, fiquei empolgada por causa da abertura das Olimpíadas). Sei que ele já leu o livrinho, mas não me lembro
se gostou ou não.
Teve Ernaux na abertura? ou é só pq o livro é francês, daí a ligação? rs
Enfim, se gostei? Adorei! Tanto que até o presenteei à
@Ana Lovejoy no último migo oculto.
Eu na verdade tô devendo muito ainda em leituras da autora - preciso muito ler os livros muito importantes dela sobre os pais, por exemplo; por mais curtos que sejam, não foram os que mais me chamaram a atenção de pronto, acabei lendo uns que dela tratam da paixão, que ela escreve com grande imediatismo e intensidade e arroubos de emoção, tudo numa prosa lúcida, controlada.
Bem, sobre o
Paixão Simples: é um livro bem curto que ela escreveu a partir de anotações que manteve em um diário (mais sobre ele adiante) quando, num período de dois anos, se não me engano, teve um romance com um diplomata russo casado. Isso no final dos anos 80, sem celulares, no máximo mandando umas cartas quando ele estava de viagens, na maioria do tempo sem poder estabelecer contato com ele por chamadas, a não ser quando ele ligava, marcando o encontro. É um retrato bem conciso de uma longa e exaustiva estação em que Ernaux se entregou, por completo, a essa dependência do contato físico com o homem. O mais interessante é, além dela não se punir nem julgar, meramente expor seus desejos, sem pudor nem vergonha nem crítica, mostrando os fatos, ela também tece uns comentários sobre o ato de escrever, a escrita como sede, como necessidade de expressão de uma vivência. É coisa boníssima!
Aí eu falei do tal do diário ali em cima, né?
Paixão foi escrito logo após o fim desse caso, em 1992. Em 2000, a escritora decidiu publicar as notas que dia a dia foi tecendo enquanto estava em constante espera do russo, que é o livro em francês
Se Perdre (li-o em inglês, traduzido como
Getting Lost; em Portugal,
Perder-se). Se em
Paixão, suas habilidades de edição são uma grande parte do que a diferencia (o livro tem umas 60 páginas), analisando cirurgicamente a matéria-prima que é sua vida, sua experiência, nesse diário, como vemos as impressões na forma que foram escritas, um texto para si, aqui jorram as emoções em ainda maior quantidade; é um livro bem mais longo (umas 200 páginas), inerentemente indisciplinado, governado pela repetição atordoante da ausência como presença; acaba sendo quase como que um romance em forma de diário, daqueles românticos, mas modernista - aqui é como um se ouvíssemos não um Tchaikovsky ou um Rachmaninov, mas um desses compositores contemporâneos cujas peças agonizam nas mesmas notas por minutos sem fim; ou um filme de Bresson ou Godard, com muitos planos quase vazios, focando em pernas, braços, mas sem rostos, novamente, com a repetição enfatizando o tempo gasto desejando o outro; um ganho também é a maior amplitude de acontecimentos e ações (mais interiores do que exteriores), mostrando as coisas que ela fazia, seja sozinha, à deriva, ou os dois amantes juntos, ou quando com amigos, acrescentando mais contexto à sua história pessoal. É apenas mais material, e entendo por quê pode ser prejudicial (pode ser cansativo ler meio que para sempre a mesma coisa). Eu adorei os dois textos.
Paixão Simples é esta investigação muito precisa e cinzelada do desejo;
Se Perdre é sua matéria-prima.