Não deu para ler a resenha, mas esse aí deve ser interessante, porque eu gosto do diálogo entre o mundo dos vivos e dos mortos. Gosto tanto, que estudei um livro chamado "Palestra para um morto" no mestrado, né?
O escritor norueguês Jon Fosse, nascido em 1959, é um fenômeno literário mundial: já foi traduzido para mais de cinquenta idiomas e acaba de receber o Prêmio Nobel de Literatura. Autor experiente, Fosse publicou seu primeiro romance em 1983 e, desde então, tem apresentado regularmente ao público peças de teatro, coletâneas de ensaios e poemas, contos e livros infantis. Agora chega ao Brasil, em tradução direta de Guilherme da Silva Braga, seu livro "É a Ales", pela Companhia das Letras. Trata-se de um breve romance no qual os mundos dos vivos e dos mortos se confundem, tendo como pano de fundo os fiordes nórdicos.
Neste livro, a ação acontece quase que inteiramente na memória dos personagens. Há pouca descrição dos ambientes ou das paisagens – por outro lado, é notável a ênfase nos diálogos e nas marcas de oralidade (palavras e frases que se repetem, modos singulares de usar a linguagem). “Claro, vá dar um passeio a pé, diz Signe”, começa uma das trocas entre os personagens, seguindo: “Está ventando um horror, e também está muito escuro, mesmo agora, quando o dia está tão claro quanto fica nesta altura do ano, ela diz. É, diz Asle”. No início, é difícil ter uma noção precisa do que está acontecendo, mas a dinâmica entre as vozes se ajusta com o passar das páginas, revelando uma peça de câmara muito bem construída.
A narrativa tem como ponto de partida o desaparecimento de Asle, no mar, em novembro de 1979. Sua mulher, Signe, relembra o fato em março de 2002. Nesse percurso de rememoração e espelhamentos entre temporalidades, surge uma nova dimensão: o dia 17 de novembro de 1897, aniversário de um primeiro Asle, antepassado daquele que desaparece em 1979. Essas três camadas vão, aos poucos, se tocando e se misturando, algo que não se resolve completamente como um relato realista, muito pelo contrário. O estilo ondulante e onírico de Fosse é preciso na criação de um ambiente no qual o leitor não espera fidelidade ao real, e sim um experimento com as possibilidades da imaginação.
“É a Ales”: o título do livro marca também, durante a narração, o momento em que as visões do passado emergem com força total. “É a Ales, ele pensa e vê Ales em pé com os cabelos pretos e bastos, com as pernas curtas dela, com o quadril estreito dela. Ela é Ales. Ela era a mãe do meu bisavô Kristoffer”. Quem está vendo? Quem está relatando o que está sendo visto? Os personagens se movem no interior dessas visões e seus caminhos, eventualmente, se cruzam, sem que fique claro como isso é possível e qual poderia ser o ponto de referência para o desdobramento das visões.
Signe observa Asle; Asle, por sua vez, observa Ales e Kristoffer, seus antepassados. Eles não compartilham o mesmo tempo, mas certamente compartilham o mesmo espaço – a paisagem da costa, o mar revolto, os fiordes. A água é, sem dúvida, uma presença determinante no livro de Fosse, algo apresentado desde o início, com a epígrafe retirada de Derek Walcott: “O mar é História”. Essas presenças que povoam o romance também compartilham um espaço doméstico, a casa da família, chamada “Antiga Casa”, “uma casa antiga e bonita, ele pensa, e que idade tem a casa, não, ninguém sabe, mas é antiga”. Entre a casa e o mar, Fosse monta o cenário das tragédias e alegrias de uma família.
As obras de ficção desafiadoras ao leitor costumam compartilhar uma característica: resistem aos resumos e às descrições sumárias da trama. Em algum ponto além do enquadramento temático encontramos a experiência da leitura, o esforço do leitor de se habituar àquela linguagem específica, àquele universo que está sendo criado ali, diante de seus olhos. É a Ales é um livro desse tipo, uma narrativa que se expande a partir de uma cena inicial, aparentemente simples, mas que, aos poucos, ganha contornos mais delicados e sutis, confiando na potência da linguagem de transformar os dramas alheios em algo próximo.