A página anterior foi interessante, mas eu ando com tanta preguiça de postar no fórum que ao invés de usar quotes vou tentar responder tudo num post só, sem levar muito em conta quaisquer comentários que vocês tenham feito, sorry 'bout that.
Basicamente, sim, o Morrison revolucionou os X-Men, em inúmeros aspectos - a questão é que ele utilizou diversos elementos icônicos da mitologia da série para criar algo original, e às vezes isso é confundido com valer-se de clichês para resolver problemas - não foi o caso. Esse último arco (foda, aliás) só está confirmando que houve um planejamento meticuloso, que levou a um resultado brilhante).
Primeiro, ele trouxe roteiros ágeis, econômicos e inteligentes para um título que já estava estagnado na mediocridade há um bom tempo. A história do mês do silêncio, por exemplo, foi uma obra-prima lisérgica que eu nunca esperava ler num título da Marvel. Riot At Xavier's foi um arco corajoso, original, selvagem, maluco. Etc. Entre outras coisas, os diálogos em geral nunca soavam forçados, e os roteiros nunca dependeram de recordatórios redundantes para explicar as coisas, sinal de uma narrativa habilmente construída - sinal também de que ele confia na inteligência do leitor, imho.
Segundo, não se trata de só-mais-um-autor-fazendo-sua-passagem - os "Novos X-Men" são uma idéia, que o Morrison apresentou, desenvolveu e concluiu, com várias surpresas no caminho. Até o nome "Novos X-Men" tem um significado, que está tematicamente ligado a todo o conceito que representa: basicamente, os "novos" X-Men não deixam de ser os "velhos" X-Men - o mercado editorial exige renovação, mas é aos ícones que se recorre, de qualquer forma. Há uma boa dose de ironia aí. (Mais irônico ainda é terem voltado com os colantes logo depois da saída do Morrison, o que dá ainda mais ressonância ao ponto que ele estava fazendo.)
Todas as possibilidades de subtexto que o conceito "mutante" já teve foram exploradas, mas sempre com uma reviravolta interessante, dando mais dimensão aos temas. O provavelmente mais relevante trata de puberdade, adolescência e amadurecimento; tema bastante comum nas histórias mutantes, surgimento de poderes representando mudanças físicas e psicológicas da adolescência, inadequação, incapacidade de lidar com as recém-adquiridas "habilidades", etc.
A Escola Xavier como campo de preparação de "discípulos" dos X-Men também não é novidade (i.e. Novos Mutantes, Geração X, etc); o que o Morrison fez foi aumentar a amplitude desse conceito até o ponto onde a escola tem tantos alunos quanto uma escola normal, e, diferente dos Novos Mutantes e da Gen. X, esses alunos não estão necessariamente sendo preparados para se tornarem os "Novos X-Men" (percebem como as coisas começam a se encaixar?), mas sim sendo preparados para a vida em geral, como uma escola comum (o que faz muito mais sentido do ponto de vista dos ideais do Xavier - a escola antiga era uma panelinha, afinal, e isso meio que contradiz todo o papo de harmonia e integração).
Alguns podem observar que essa nova visão da escola foi algo emprestado do filme, e embora o filme tenha só esbarrado nas possibilidades que o Morrison explorou a fundo, isso não deixa de ser verdade. A questão é que o Morrison não parou por aí. A cereja no topo foi a "turma especial" - os excluídos dos excluídos, os mutantes feios e nojentos que necessitam de cuidados especiais, alguns inclusive com poderes aparentemente inúteis. "Classes especiais" existem na vida real, e colocar uma na Escola Xavier foi um toque de mestre - de repente nós percebemos que os mutantes haviam se tornado algo glamouroso demais, que havia ficado difícil acreditar que aqueles super-heróis estilosos que mais pareciam astros de Hollywood eram aquelas tais pessoas que os humanos "temiam e odiavam".
Bem, o Morrison fez o favor de mostrar o outro lado - o lado assustador e perigoso de ser mutante, algo que está intimamente ligado com todo esse lance da adolescência sobre o qual eu estou falando. Um bom exemplo é a história onde o Wolverine conhece a Angel, e a garota tem que lidar com o afloramento de sua mutação, que, entre outras coisas, a obriga a fazer muitas coisas como um inseto faria, o que pode gerar graves problemas se você é um humano (todo mundo viu "A Mosca", certo?).
Mas a adolescência é uma fase, e o Bico está ali justamente para enfatizar isso - durante praticamente toda a fase Morrison, o Bico foi um moleque inútil, patético e feio pra cacete - ele tinha penas e um bico, então aparentemente era uma espécia de ave, mas não podia voar e sua aparência geral lembrava uma galinha desengonçada. No arco atual nós descobrimos que ele cresce para se tornar um híbrido perfeito de águia e humano, forte e ágil, dotado de um poder de vôo e ataque predatório fenomenal. Mas como aquela coisinha feia se tornou esse cara fodão? Ora, vocês já viram filhotes de águia? Eles são feios pra cacete, têm penas ralas e claras e mal sabem andar, quanto mais voar. Mas eles crescem e se tornam uma das máquinas de matar mais perfeitas da natureza, assim como adolescentes feios e desengonçados podem eventualmente crescer e se tornar astros de Hollywood ou atletas de sucesso ou whatever.
Isso tudo faz total sentido ao se analisar a proposta inicial - o Morrison já havia dito que a primeira coisa que ele queria fazer era colocar os X-Men de volta na Escola, e mostrar as conseqüências que isso teria; não é de se espantar, então, que o primeiro arco, E is for Extinction, se concentre no Xavier - a primeira referência à mitologia dos X-Men em "Novos X-Men" está ligada à gênese do grupo, e a subversão opera em diversos conceitos pré-estabelecidos:
A priori, há o aspecto sci-fi dos mutantes, o conflito gerado por um ponto de vista fundamentalista que classifica o processo evolucionário como algo antinatural - nesse sentido, o Morrison estabeleceu que há um gatilho para a extinção no genoma da raça humana, e que, do ponto de vista biológico, a supremacia mutante é inevitável. Esse conceito é apresentado, narrativamente falando, da forma mais tradicional possível: a partir do surgimento de um novo antagonista que quer acelerar esse processo (Cassandra Nova) e de um evento trágico (Genosha). Mas a Cassandra, como viemos a descobrir depois, não passa de uma parte do Xavier - a questão é: trata-se de um espelho distorcido ou da revelação de uma parte inconsciente de sua própria natureza (afinal, ele é um mutante, independente de sua ideologias pessoais)? Esse tipo de ambigüidade é o cerne temático dos conflitos que fazem essas histórias continuarem atuais: humanos x mutantes, ciência x deus, igualdade x supremacia, etc.
Segundo, a nova abordagem torna os X-Men menos super-heróis e mais educadores, um ponto de vista mais adequado aos novos tempos (a mudança dos uniformes simboliza justamente isso), mas logo de cara eles são obrigados a agir mais uma vez como super-heróis, e esse tipo de coisa continua acontecendo sem parar - os próprios personagens mais de uma vez mencionam a existência de algo inefável que parece fazer esse tipo de conflito surgir à sua volta por mais que eles tentem evitá-lo, como num círculo vicioso; trata-se de um comentário sobre a impossibilidade de lutar contra a própria natureza ou uma observação metalinguística sobre a realidade editorial? Ou as duas coisas? Seja como for, essas questões ecoam por todas as histórias, e conseqüentemente os conflitos cada vez mais surgem de dentro, e não de fora.
Isso já começa de forma arrebatadora no segundo arco, Imperial - em um twist atípico, descobrimos que o antagonista que aparentemente tinha acabado de ser derrotado estava na verdade escondido bem debaixo do nariz de todo mundo... dentro do Xavier (notem como um padrão começa a se formar). Esse arco traz de volta outro elemento clássico da mitologia-x, o Império Shiar - novamente há uma forte ligação com o Professor X (Lilandra), e as conseqüências definitivamente começam a se tornar mais perenes do que estávamos normalmente habituados - isso foi outra contribuição importante do Morrison: havia uma sensação de perigo real nas histórias dele, e uma certeza de que, por mais que nada seja realmente definitivo nesse tipo de publicação, pelo menos enquanto os "Novos X-Men" durassem o sentimento de tudo-pode-acontecer estaria lá.
Facilitar as coisas por meio de catarse óbvia é algo que o Morrison definitivamente não queria fazer, e a confusão emocional existe em vários pontos, como no momento tragicômico em que o mensageiro do Império Shiar cai no meio de um pasto e só as vacas ouvem seu aviso. Foi algo bastante explorado no terceiro arco, New Worlds - provavelmente um dos mais fracos, mas foi nele que o Morrison fez o maior número de contribuições à mitologia dos X-Men, com revelações sobre o programa Arma X, Fantomex e E.V.A. (sim, eles são cool na minha opinião), etc. Um arco meio prejudicado pela inconstância a arte (um dos poucos problemas da fase Morrison em geral), mas ainda assim interessante o suficiente.
Aí a coisa fica complexa. Com o quarto arco, Riot At Xavier's o Morrison não só explora todos os temas supramencionados, mas também adiciona outras questões bastante polêmicas à mistura, e faz isso com um estilo totalmente maníaco e uma narrativa impecável. Novamente o conflito surge a partir de uma ameaça interna cuja origem está intimamente ligada ao Xavier; a diferença desta vez é que os antagonistas são os próprios alunos da Escola, o que faz a situação assumir as proporções de um conflito civil. A parte genial é como os diferentes elementos são mesclados – tudo tem sua origem num confronto ideológico, o aluno super-inteligente utilizando a imagem do Magneto e tudo que ela representa (ou seja, mesmo depois de morto o eterno antagonista do Professor X continua dando problemas - a sombra de Magneto nunca deixa de pairar sobre os X-Men) como base de uma revolução contra a filosofia supostamente ultrapassada do Xavier. O uso da droga que aumenta o desempenho dos poderes mutantes é um ponto importante: nesse caso o aumento dos poderes pode simbolizar tanto a liberdade de ação que uma pessoa drogada sente - a adrenalina e as alterações no humor levando a atitudes impensáveis, quanto a prática hoje em dia comum entre jovens de utilizar drogas para aumentar o desempenho sexual. O jovem mutante usa a droga para “turbinar” sua gangue o suficiente para que eles tomem o Instituto de assalto e imponham sua supremacia, tornando-se, assim, os “Novos X-Men” (percebem?), mas no final se descobre que tudo que ele queria era impressionar uma garota.
É interessante observar que durante o conflito a Turma Especial estava fora da escola com o Xorn. Pois é, o Xorn. Eu não mencionei até agora mas trata-se definitivamente de uma das maiores criações do Morrison, especialmente porque ele foi criado com o intuito de ser destruído, e ninguém esperava aquilo. "Por que, Grant? Por que você foi obliterar totalmente da existência justo o melhor personagem?" A resposta é simples: para arrancar exatamente essa reação dos leitores. De qualquer forma, nos dois penúltimos arcos o padrão do "inimigo interno" se repete novamente; Murder at Mansion serviu mais para preparar as coisas para o gran finale, e enfatizar aquilo que foi a maior mostra de que o Morrison não estava ligando muito pra cronologia quando pegou o título: em New X-Men a Jean é a Fênix, a Jean sempre foi a Fênix, com todas as conseqüências que isso representa. Desta forma e a Fênix simboliza o renascimento não só da Jean, mas também do próprio grupo - "Novos X-Men", mais uma vez.
Isso só fica realmente claro em Planet X, onde mais uma vez a mitologia clássica se faz presente no desenvolvimento da história - tudo começou com um confronto contra o Magneto, afinal, e as coisas sempre acabam voltando a isso mais cedo ou mais tarde. Claro que é um Magneto diferente do que estamos acostumados; desequilibrado ele sempre foi, mas agora a coisa está mais pra "completamente maluco e decadente" - obviamente o destino de Genosha não fez bem pra cabeça dele. (Sobre ele ter se tornado um "junkie": na verdade o Magneto é viciado em poder, não na droga em si. Ele já havia usado uma muleta para o próprio poder anteriormente - o Acólito Cortez -, então não há nada de absurdo no fato dele agora utilizar a droga.) De qualquer forma, sua nova "Irmandade" não passa de um bando de freaks que nem sabem direito porque estão ali (e aqui a Turma Especial ganha uma nova dimensão - pensem nas implicações temáticas disso, considerando tudo que eu já falei), e que obviamente podem se voltar contra ele tão rápido quanto se aliaram, mas o Magneto está tão cego pelo poder que nem percebe o que está acontecendo à sua volta. E é por isso que sua derrota se dá principalmente no campo psicológico, através de um engodo muito bem arquitetado (trabalho de equipe nem sempre significa "você atira nisso, eu esmago aquilo, etc"). Mas por puro capricho e vingança ele dá um último golpe, que nos leva a um desfecho bastante familiar...
E esse último arco... bem, é a história "alternativa" do Morrison, à la "Days of Future Past", "Era do Apocalipse", etc. É onde ele está concluindo todas as idéias. Acho que já falei bastante delas.