Não reli Dom Casmurro nos últimos três anos, o que significa que minhas impressões a respeito da obra não são tão estanques, e podem sofrer alterações, tão logo eu releia o romance. Mas se tem um viés de leitura que eu acho bastante embasado é o de que o livro não é sobre traição, é sobre ciúme. Isso meio que desanuvia um pouco as coisas. Nessa perspectiva, é sempre bom lembrar da intertextualidade que se pode estabelecer entre Dom Casmurro e Otelo.
Para mim, Capitu não traiu Bentinho, mas eu acredito que parte da genialidade de Dom Casmurro reside no fato de que a obra foi escrita de modo a sugerir que isso tenha acontecido. Não pelos motivos usuais, mas para que se pudesse construir uma personagem caput, isto é, cabeça, origem do nome da protagonista. Ela encabeça não um triângulo amoroso, mas toda uma possível leitura de crítica ao destino das mulheres que ousassem ser algo além do que lhes era permitido ser.
Na construção dessa personagem que, inicialmente, parece ser a adúltera perfeita, o narrador é uma estratégia bastante eficaz. Ele chama a atenção dos leitores para o fato de que "há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de repetição." Sempre que aparece uma oportunidade, Bento Santiago tenta reforçar a imagem de uma Capitu inteligente, atenta, minuciosa, "mais mulher do que Bentinho homem", entre outros. Isso, culturalmente, prepara o terreno para que possamos, a partir do desenrolar dos eventos do livro, chegar à conclusão de que Capitu, astuta e sempre atenta, enganou Bentinho, que era manipulável.
(Agora, vem a minha leitura da coisa toda: não acho que Machado criou Capitu como adúltera, acho que a ideia dele foi a de alfinetar isso de que a mulher que não age conforme o esperado acaba sendo tida como vilã. Tem um detalhe, quando Bento fala sobre Capitu ainda criança, que eu acho muito importante, pois exibe uma crítica sutil. Ele fala que ela não aprendeu a fazer renda, como as outras mulheres aprendiam.)
O livro é narrado em primeira pessoa, por um advogado (a função do advogado é convencer), ciumento, que acusa a mulher de adultério e advoga em causa própria. Bento — como um promotor — acusa, mas se sente culpado. Ele tenta, a qualquer custo, se convencer e, no processo, nos convencer, da culpa de Capitu porque se ela não for culpada, de quem é a culpa da tragédia familiar? Pois é: ele.
Bento Santiago quer, na velhice, reconstruir sua vida, como uma forma de provar a si mesmo (e a nós, leitores, júri) que não estava errado em expulsar Capitu de casa e renegar o filho. Sua narrativa, portanto, pode ser vista como uma forma de catarse. Porém, quando ele decide contar a história de sua vida, todas as pessoas sobre as quais ele vai falar estão mortas.
Nós somos apresentadas a elas pela ótica dele. Tão somente pela ótica dele... a ótica de alguém que dizia: "cheguei a ter ciúmes de tudo e todos". A ótica de alguém que tinha, em seu nome, a junção de Santo com Iago (personagem de Otelo, de Shakespeare, que provoca o ciúme do mouro e faz com que ele assassine a esposa).
Uma das leituras possíveis para Dom Casmurro é a de que Bento pode ser visto como o modelo de burguês enciumado: o seu amor por Capitu é, também, a conquista de uma identidade social, moral e religiosa. Amá-la significa possuí-la, conforme os padrões do meio. Daí, quando a mulher não procede estritamente de acordo com os padrões com que é amada, ela provoca ciúmes, e pode estar incorrendo em traição. O desfecho da história assegura a vitória conservadora, com o poder nas mãos de quem, por tradição, o detém. Capitu foi punida por ser um mulherão da porra.