CLÉANTE
Meu irmão, não me julgo um doutor reverenciado, nem todo o saber do mundo concentrou-se em mim. Mas, em uma palavra, sei que toda a minha ciência consiste em distinguir o falso do verdadeiro. E como não conheço nenhuma espécie de herói que mereça mais louvor do que os devotos perfeitos, e que nada no mundo existe de mais nobre e mais belo que o santo fervor de zelo verdadeiro, assim também não sei de nada que seja mais odioso do que a aparência emplastrada de um zelo especioso, do que esses rematados charlatões, do que esses devotos de praça pública, cuja carantonha sacrílega e enganadora ilude impunemente e zomba à vontade daquilo que os mortais têm de mais santo e sagrado; essas pessoas, por terem a alma submissa ais interesses, fazem da devoção profissão e mercadoria, pretendendo adquirir crédito e dignidade às custas de falsas piscadelas e entusiasmos dissimulados; essas pessoas, afirmo, que se vêem correr, com ardor pouco comum, ao encalço da fortuna pelo caminho do Céu, que, ardente e suplicantes, rezam diariamente e pregam o retiro no meio da própria corte, que sabem acomodar o zelo aos vícios, são espertas, vingativas, sem fé, cheias de artifício e, para perder alguém, mascaram insolentemente o orgulhoso ressentimento são tantos mais perigosos, porquanto lançam mão de armas que todos temem e a paixão que os impulsiona, e que todos aprovamos, leva-os a querer assassinar-nos com um ferro sagrado. (...)