• Caro Visitante, por que não gastar alguns segundos e criar uma Conta no Fórum Valinor? Desta forma, além de não ver este aviso novamente, poderá participar de nossa comunidade, inserir suas opiniões e sugestões, fazendo parte deste que é um maiores Fóruns de Discussão do Brasil! Aproveite e cadastre-se já!

[Desafio] Quanto vale uma imagem?

  • Criador do tópico Criador do tópico Palazo
  • Data de Criação Data de Criação
(Um sobre um homem em luto)

Uma cidade cinzenta, repleta de sorrisos monótonos se esgueirava entre os olhos de Gregório. Um gato parou para observá-lo. Um mendigo também. Ele andava como quem sonambula, adormecido na dor que, oposta ao tempo, nunca quis passar.

Gregório já não se lembrava dos pequenos detalhes da vida com ela, talvez nem mais o interessassem essas pequenices. Havia se entregado ao sofrimento e era essa a sua motivação na vida. Pouco importava o cheiro dos doces da padaria ao lado, muito menos o florido do vestido de uma menina ruiva que atravessava a rua segurando a boneca pelo calcanhar, enquanto seu desgrenhado cabelo sintético varria aos pulos a faixa de pedestres. Um pedreiro em jeans duros de cimento ressecado assoviava uma polka de sua juventude, lançando as colheradas de reboco na parede seguindo o ritmo que marcava com os pés. Gregório limitou-se a desviar do andaime, sem olhar pra cima.

Até que chegou àquele cruzamento. As nuvens faziam do asfalto uma palheta de luz e sombra, causando sucessivos arrepios de frio e incômodos de calor, mas ele sequer reparou que há duas semanas não chovia em Praga. E foi graças ao estio que Gregório escapou de ser encharcado pelo carro que, louco como qualquer veículo que ultrpassa um bonde e estaciona em seguida, descarregava apressado alguns quilos de carne de porco para um restaurante cujo dono era judeu.

Entrou no prédio ao lado, para chegar ao topo e ver aquele cruzamento do alto. O som de seus passos arrastados se fazia mudo só porque a melodia de um piano em andante maestoso ecoava pelas escadas, acompanhado pela voz firme da professora de balé. Não contou os degraus, mas chegando ao centésimo quinto, avistou uma claridade incerta e resolveu ir ao seu encontro. A luz vinha de uma janela estreita e alta, que dava acesso à fachada do edifício. Gregório, sem receio nem bravura, destravou o trinco e colocou-se fora. Por um instante, sentiu que alguma coisa tremia dentro do peito, e por baixo da pele, e entre os dedos. Olhou longamente aquele cruzamento. Foi ali que ele não teve tempo de despedir-se da mulher, que morreu atropelada com uma sacola de compras na mão. Chegou-se mesmo à beira, deixando a ponta do sapato para fora do limiar. Então sentiu uma lágrima descer quente pelo rosto,seguida por outra e essa seguida por tantas outras. Já não sentia tremor, apenas a umidade das faces que já atingia a gola da camisa. Começou a não sentir os pés, nem o enxuto da calça, só um estranho jorro de água a molhar-lhe o corpo inteiro. Faltou-lhe ar. Instintivamente abriu a boca, mas a respiração ainda assim era pesada. Sentiu arderem-lhe as costas, contorceu-se todo o corpo, molhado, asfixiado, desesperançado. Então lembrou-se do sorriso que sua mulher lhe deu após o primeiro beijo trocado, bem ali, naquela esquina. A doçura da lembrança aprumou o corpo agonizante e aliviou o sofrimento do rosto. Com serenidade, ergueu-se com brandura, como se avistasse um amor nascente alguns metros abaixo. Não sentia mais seu próprio corpo, muito menos as asas de que fora revestido. Foi assim que Gregório transformou-se na única gárgula humana de Praga. E voltou a chover sobre a cidade.

573 palavras
 
Um passo e não precisarei mais respirar esse ar denso, suportar a estupidez humana, a violência desses animais, o sangue que corre pelas ruas e é ignorado por esses seres vis e sem espírito. Um passo para a... Ué, por que não estou caindo? Já sei...

Malditas asas.

51 Palavras
 
Caindo, caindo, caindo, caindo...nossa vou pegar um livro porque ainda continuo caindo e parece que não vai acabar nunca essa queda...Droga, ainda estou com minhas asas...
 
Olhe só as pessoas lá embaixo, nem imaginam que em poucos minutos suas vidas comuns e efêmeras presenciará dor, tristeza e sentimento de perda poucas vezes presentes no mundo. Mas uma, apenas uma deve ser poupada, e eu não sei o que fazer.

43 palavras.
 
[align=justify]Ele rompeu com todos, com tudo que conhecia, rompeu consigo próprio. Era seu afoito ato de libertação, sua liberdade que não podia mais ser adiada.

Despiu-se dos deveres e obrigações, e retirou, desejo por desejo, a construção de décadas que vinha por igual tempo sufocando-lhe o peito. Amassou feito papel suas inclinações, todas fementidas, pois queria voltar a encontrar a raiz do todo, a folha em branco intocável e ainda por ser escrita.

Triturou, rasgou, quebrou, estraçalhou, sedimentou em pó o que era sua existência aprisionada. Destruiu tanto que chegou até seu eu livre, um eu inédito, aquele eu de asas e de roupas sem vaidades.

E quando achou que ia sorrir do alto da liberdade, das alturas daquele prédio por poucos explorados, sentiu um traiçoeiro vento gelado, desses que chegam do sul de nossas dúvidas e nos põe a tremer. Algo faltava, e podia ser tudo. Foi então que o cinza do horizonte vazio lhe tocou dolorosamente. Não gemeu nem franziu rosto; para extravasar a dor limitou-se perguntar, perdido, por uma direção: Deus, e agora?[/align]

194 palavras
 
O laboratório é um enorme galpão, tão grande que uma névoa embaça a visão de suas extremidades. O ar é pesado e tem cheiro de assepsia. As paredes são recobertas com chumbo e há uma fina película oca, cheia de H2O2, água pesada, para barrar emissões de raios x ou partículas de alta energia.
Quando o acelerador finalmente fixou as emissões de grávitons no menor comprimento possível, de Planck, a máquina emitiu um bipe.
Os grávitons foram polarizados, os neutrinos, antineutrinos, elétrons, anti-elétrons, pósitrons, anti-pósitrons, todas as formas e partes da matéria foram emparelhadas. As até agora absolutas leis da conservação da energia e a da entropia universal estavam sendo quebradas, uma a uma.
A equação da velocidade e inércia, e seu conseqüente refinamento, E=MC2, estava se verificando.
Dentro do galpão um horizonte de eventos distorce a luz ao redor da bolha. Seus efeitos destroçariam qualquer coisa num raio de três metros. Meu corpo está formigando.
Simultaneamente a tudo isso meus pensamentos se perdem nas glórias advindas dessa descoberta. Chamarei ela assim: Singularidade auto-controlada não-colapsável de Donnavan.
Mesmo sabendo que ainda precisava trabalhar muito a parte “autocontrolada” e “não-colapsável”.
_Matriz! _ falo ao computador. _ Iniciar processo de escaneamento.
“STARTING NEXT DIMENSIONAL AREAS SCANNING.”
“TARGET LOCKED. CAPTURE?"
Eu respiro. Quero um cigarro. Tenho alguns no bolso do sobretudo na bancada, mas o capacete não me deixaria fumar. Respiro.
_ Capture! – digo finalmente.
“STARTING CAPTURE OF NON-TANGIBLE ENTITY.”
Raios de energia brilham eclodindo da bolha. E, num movimento rápido, estilhaçam o teto do galpão quando ascendem em direção ao céu.
Faz dois dias que o raio se mantêm subindo da Terra em direção ao espaço, mas felizmente, ele só pode ser visto na luz ultravioleta.
Há 18 horas a entidade foi localizada e capturada em algum ponto do Universo. Está sendo arrastada para cá pelas ondas gravitacionais. Chegará a qualquer minuto.
O raio retorna à bolha e nela se entrevê uma figura humana. Ela grita de dor e bate nas paredes internas da bolha, que resistirá, por enquanto, mas não foi planejada para este tipo de pressão.
Vejo que a figura aprisionada possui asas. É exatamente o que eu esperava encontrar.
A criatura tenta conversar comigo. Diz coisas ininteligiveis. O computador grava suas palavras e as armazena num banco de dados especulativo. Em certo momento o computador me avisa.
“Complete speculative database of Unknown language”.
“Loading translator. Loading voice emulator”.
Eu me aproximo da bolha. Já posso ser capaz de entendê-lo.
_ Ah... dor... como dói... _ o computador traduz em tempo real a criatura.
_ Deveria se acostumar com a dor, anjo. Nós a sentimos desde o primeiro momento em que nascemos.
_Quem é você¿ O que quer¿ _ o anjo está assustado, recua dentro da bolha. _ Por favor, faça parar essa dor!
_ Cala a boca !!! _ eu grito, dentro do capacete está sufocante. _ Onde está a sua dignidade agora, anjo¿ Cadê aquela atitude superior que esperamos ver em criaturas elevadas¿
_Do quê está falando¿ ... Por favor, faça parar a dor...
Eu desligo o raio gravitacional. A temperatura dentro da bolha deve baixar.
_ Você e todos os da sua espécie, são uma lástima. Não sentem fome. Não sentem medo. Não sentem desejo nem qualquer outra coisa. No entanto, se sentiram nos direito de nos ditar regras de comportamento incabíveis. “Não roubarás”¿ Como assim, não roubarás¿ Você já sentiu fome, anjo¿
_ Nos planos de meu pai...
_ Cala a boca e me responde! _ irado, injeto uma onda remanescente de plasma na bolha, o anjo grita e se contorce. _ Responde!
_ Não!... Tudo bem... Você está certo. Nunca senti medo ou desejo. Nunca senti fome, assim, nunca entendi o porquê que vocês homens mentem, roubam, ou matam. Não sei a real implicância de tudo isso.
_ Eu já sabia disso. Menosprezo essa superioridade arrogante com que ditaram essas regras de comportamento.
_ Não é simples assim, Marcus. Nos planos do senhor está escrito que...
_ Chega! Chega!!! Eu te trouxe aqui por um só motivo. Esse plano que você diz... Quero saber que plano é esse. Quero saber tudo que há para saber. Saber o porquê disso tudo.
_ Não posso, Marcus. Nunca seria perdoado.
_ Tenho aqui umas coisinhas que podem te persuadir a colaborar.
Aperto um botão. A bolha é inundada com plasma. O anjo abre as asas, elas são enormes, e forçam as paredes da bolha que começa a trincar e estalar. Debruço-me sobre o computador. Digito vários comandos a fim de restabelecer a harmonia. Mas não dá certo. Das rachaduras feixes de plasma e energia escapam e esburacam as paredes do laboratório. Um esguicho de gás a altíssima temperatura abre uma cratera no chão e o derrete rapidamente.
O anjo, com as mãos, força uma fissura. A energia radioativa começa a vazar, e luzes de emergência tingem o laboratório de vermelho. Uma cápsula de emergência se abre no piso. Entro nela e sou ejetado dali numa velocidade altíssima pelo subsolo.
A cápsula me deixa a vários quilômetros, numa estação de trem abandonada. Tiro a roupa, provavelmente contaminada. No horizonte vejo um enorme cogumelo atômico subindo ao céu.
Caminho na estrada deserta em direção á cidade. Fazia tempo que não andava a pé. Está um calor escaldante e estou suando em bicas. Vejo vários helicópteros e aviões do governo irem em direção a explosão.
Duas horas depois chego num posto de gasolina onde há apenas um velho e uma criança. Ambos estão vidrados na televisão. Mas ao contrário do que pensava, não estão vendo noticias sobre a explosão no deserto.
Na televisão, um repórter em um helicóptero, arfante de tanto que falava, apontava a uma figura de pé no beiral de um prédio do centro da capital. Não era um homem. Era o anjo. Estava vestido com meu sobretudo. Parecia atordoado.
Com a cidade aos seus pés, e o prédio em que estava sendo sobrevoado por aviões e helicópteros, ele tirou do bolso um dos meus cigarros e o acendeu.
As pessoas escapavam em pânico do prédio e nas ruas reinava um verdadeiro caos.
_ É, meu filho, _ o velho disse ao garoto _ parece que finalmente chegou o final dos tempos. Sinto muito, você é tão jovem.
O garoto manteve os olhos vidrados na televisão, sem saber o que falar.
_Besteira! _ disse, e enquanto o velho e o garoto estavam distraídos com a televisão, roubei a chave de um velho GM e tomei rumo à capital.


PALAVRAS: 1079
 
imagem 9 da nova era:2628 Palavras


JLM - 34
Tayana - 111 +28
Vail Martins - 515 + 1079
Manu M. - 573
Palazo - 51
aces4r - 43
Franco - 194
 
Imagem 10 da nova era

I_Wish_I_May....._I_Wish_I_Might....jpg


Novas Regras
1. Imagens serão publicadas quinzenalmente (Sábado sim, sábado não)
2. Qualquer um pode participar, com o texto no tamanho que sua imaginação e inspiração permitirem. Liberdade é a palavra de ordem aqui (pegando carona na idéia do JLM)
3. Publique somente textos inspirados nas imagens e em prosa.
4. Lembre-se de indicar o número de palavras que contém o seu texto.
5. Para contar o numero de palavras do texto clique aqui.
 
Um sopro e lá se foi o dente de leão... agora temos que achar outrodente de leão.
Clarinha? Clarinha? CLARINHAAA, sai já da jaula do LEÃO!

29 palavras
 
*Extraído do filme "Horton e o Mundo dos Quem"*

- AHHHHHHHHHHHH! CORRAM TODOS!!!! SALVEM SUAS VIIIDAS!! CORRAM PARA AS MONTANHAS!!!!

10 palavras :dente:
 
Conta-se que o vento nasceu séculos atrás quando uma princesa suspirou e assoprou um beijo aos céus em busca do seu amado. Desde então, o vento multiplicou-se com todos os assopros e suspiros apaixonados.

34 palavras
 
Daiane corria à frente enquanto eu carregava os equipamentos. Apesar de falar várias vezes para não se afastar era inútil. Embrenhava-se pelos caminhos do bosque como um Pan; sorrindo e saltitando.
Quando, com algum esforço, cheguei ao alto do monte lá estava ela parada, observando o campo que de um florido amarelo vivo, como vimos duas semanas antes, estava forrado com uma monótona penugem branca.
_ Pai! Onde estão os dente-de-leão que vimos outro dia?
_ Estão todos ai, querida. Cada um deles; os dentes-de-leão quando amadurecem, de amarelos ficam brancos. E ficam felpudos assim _ tirei umas das flores _ para que quando o vento sopre, possa carregar as sementes para longe, bem longe; e quando eles caírem no chão, irão brotar como aqueles dentes-de-leão amarelos que vimos outro dia.
Soprei a flor bem em frente a seu rosto. Ela esbugalhou os olhos enquanto via as sementes flutuarem no ar.
_ As sementes voam de pára-quedas!!!
_ Há lugares em que chamam esse pequeno pára-quedas de “esperança”_ disse a Daiane, nesse momento os seus olhinhos ficaram um pouco estrábicos e perderam o foco; podia jurar que pude ver em seus pensamentos a esperança nascer de uma plantinha e ser levada pelo vento aos quatro cantos da terra.
Ela voltou os olhos à pequena nuvem e a acompanhou. Ia falar para ela olhar para onde anda; não ficar como boba perambulando enquanto olha para cima; não deu tempo.
Puft! Ela caiu por cima das flores e fez com que uma nuvem das grandes de sementes levantasse vôo. Mas não chorou, como temia, ao contrário, seu sorriso se abriu de um jeito que eu nunca esquecerei.
Ela se levantou e correu tentando ficar no centro felpudo da nuvem.
A tarde inteira, enquanto estudava, vi Daiane correr de um canto a outro, ajudando o vento a soprar todo aquele monte esperança que havia nascido ali.

Palavras: 313
 
Os homens de sorte dizem que essa imagem não tem nada demais.
Já os azarados veem aí um problema muito sério.

É especialmente para estes que desenvolvemos o Tônico Capilar Anti-Calvície dos Laboratórios Franco!

Um produto de quem sabe que calvície não é brincadeira de criança.

51 palavras
 
O sopro é o beijo silencioso do vento.
Enquanto ela sopra o dente-de-leão, o tempo passa e aquilo para ela basta, pois o simples da vida encontra-se nas pequenas coisas.

30 palavras
 
Havia clara diferença entre a personalidade das duas irmãs, embora isso não mudasse em nada o fato de que se gostavam e se admiravam mutuamente.

As duas eram reservadas, quietas.

A diferença vinha na motivação de assim ser: a mais velha era reflexiva, introspectiva. Triste, até. Via na pequena a total pureza de quem não conhecia nada, ou seja, de quem ainda tinha capacidade de achar que a vida poderia ser algo belo. E a amava por isso. A protegia. Via essa como a sua missão: salvaguardar a única alma imaculada que conhecia, mantê-la livre dos maus pensamentos e dos tormentos da consciência.

A mais jovem não parecia se esforçar por querer compreender a existência. Um cheiro, um gosto, uma imagem. Um doce, um carinho, uma palavra. Assim era o seu mundo.

“Vem, mana. Vamos passear”, disse-lhe a irmã mais velha.

Estavam no sítio da avó. Um dos locais preferidos das duas. Pegaram butiás e pêssegos das árvores, foram até um riacho onde se sentaram para comer, sentadas em um tronco tombado.

A irmã mais nova tomou na mão um dente-de-leão. A mais velha a olhou, admirando a sua ingenuidade. Aquela pequena e frágil planta a fez pensar na efemeridade da vida. “Somos como essa plantinha”, pensou. “Diante do universo, até menores. Eventualmente, basta um vento pra nos derrubar. E, mesmo com a melhor das condições, hora ou outra cairemos também. É inevitável.”

“O que você vê nessa plantinha?”, perguntou.
“Como assim?”, retrucou a pequena.
“Bem, vejamos... O que você pensa ao olhar pra ela?”, tentou mais uma vez.
“Ah. Agora, nada. Mas, quando eu sopro pra cima, olha que bonito!”, e soprou com força.

Logo acima das duas, o céu do fim de tarde foi adornado como que por uma explosão de minúsculos pássaros festejando aquele momento.

Enquanto ajeitava o cabelo da irmãzinha, desgrenhado pelo vento, a mais velha olhou para o dente-de-leão caído e concluiu que, ainda que curta, a existência podia ser bela.


________
355 palavras.
 
Promessa é dívida, né? Então tá aqui o texto, antes que a Kika coloque outra imagem amanhã. Desculpa, tá grande, mas perseverem... =)

-----
A irmã muda

O portão de casa já ganhava cores alaranjadas em sua superfície, e começava a soltar lascas na mão de quem o tocasse. Débora não reparou nisso até aquele dia, quando ao abri-lo, a falta de óleo nas juntas fez da fricção do metal um som estridente, que arranhou os ouvidos e arrepiou os ossos. Largou o portão e levou a mão às orelhas, para se recompor, e então viu a ferrugem nas dobras de suas palmas. Limpou-se na blusa e foi caminhando esfomeada em direção à varanda. O portão continuou aberto.

O cheiro de comida que sempre a aguardava na volta da escola pairava no ar, mas dessa vez, empestado de fumaça. Em um tom bem humorado, começou a falar alto desde a sala, para que sua voz a precedesse na cozinha.

- Não acredito que a mãe deixou a comida queimar. Não tem vergonha disso, dona Raquel?

Chegando à cozinha, parou de súbito à porta. Fora surpreendida pela cena que a aguardava.

- Gente, o que é isso? O que está acontecendo?

Silêncio. A mãe pôs uma mecha de cabelo atrás da orelha.

- Ei, vocês estão me ouvindo? Que caras são essas? Onde está o meu irmão?

Novamente, só o eco de suas palavras respondeu.

- Pai, diz alguma coisa! Vocês estão me deixando angustiada!
- O José está na fábrica, ainda não chegou. Está tudo bem, filha.
- Como pode dizer que está tudo bem? Vocês já se olharam? A mãe até queimou a comida... O que está acontecendo? Digam, por favor!

Os pais, que até então mantinham os olhos baixos, vagarosamente dirigiam o olhar para Débora, mas já sabiam o que encontrariam em seu no rosto. Entretanto, no demorado trajeto de suas vistas, o mover de uma cadeira vazia deu alguma vivacidade a seus movimentos. Débora também olhou rapidamente para a cadeira, franzindo as sobrancelhas. Qual não foi a surpresa dos pais ao ver Ana ali, embaixo do assento, encolhida, com os olhos muito abertos e nenhuma expressão no rosto.

- Meu Deus, Ana, há quanto tempo você está aí? Será que ela ouviu nossa conversa, Daniel?
- Que conversa, mãe? De que vocês estão falando? Pai, me diz alguma coisa!! - Débora começava a sentir desespero, uma certa histeria já dominava o tom de sua voz.
- Filha, controle-se, não grite. Vai assustar a Ana.
- Ela é surda, pai!! Ela não ouviu conversa nenhuma, ela não escuta meus gritos, ela não entende nada, é só uma criança!!! Pelo amor de Deus, alguém me diz alguma coisa?!?!

Nesse ponto, a súplica se tinha convertido em choro contido. Débora começava a tremer. Mais uma vez, o silêncio.

- Daniel, fala pra ela de uma vez - foi a voz serena e quase sussurrada da mãe que rompeu a tensão do ambiente. Ana tinha os olhos ainda mais abertos.

O pai tirou a mão da testa, escorregando-a pelos olhos, descendo pelo nariz, encostando à boca, deslizando pela barba, até parar no pescoço, como se estivesse ele mesmo se degolando. Mas não punha força nas mãos porque não a tinha. Uma extrema fraqueza se apoderara de Daniel, e seus olhos vazios denunciavam isso. Ana mexeu-se silenciosamente debaixo da cadeira.

- Pai, por favor...

Débora tinha todos os músculos contraídos. O tremor já havia passado, mas a vibração incontrolável permanecia por dentro, lá no estômago, talvez.

- Débora - suspirou o pai, procurando as palavras no olhar perdido. - Vamos ter que fazer o que mais temíamos.
- Mas o quê, pai? A gente teme tanta coisa... Por favor, diga logo. Já tenho 17 anos, posso suportar. Por favor...

Daniel desfalecia cada vez mais. Tornara-se pálido. A mãe praticamente não estava ali, escutava a conversa sem nada ouvir, seus pensamentos estavam mudos, mais mudos que a própria Ana. A diferença era que Ana não falava porque não conseguia imitar os sons que jamais havia ouvido; a mãe não falava porque não conseguia reproduzir as respostas que desconhecia. Talvez fosse melhor assim.

Foi então que Ana, num movimento brusco, saiu de baixo da cadeira, derrubando-a com muito estardalhaço. Colocou-se no meio da cozinha, mexia a boca e produzia sons guturais, contorcia-se, numa tentativa infértil de dizer à irmã o que se passava. O pai desviou o rosto, envergonhado. A mãe fechou os olhos, não queria sofrer ainda mais. Débora chorava descontroladamente, atônita.

Devido ao fracasso em tentar explicar à irmã o que se passava, Ana tomou Débora pela mão, puxou-a com toda a força em direção ao quintal. A moça não apresentava resistência.

A pequena, em seus passos curtos e firmes, caminhava sem uma direção clara, angustiando ainda mais a irmã, que a essa altura pensava que Ana estivesse com alguma crise nervosa. Um rádio foi ligado dentro de casa, e pouco depois, sem muita certeza, Ana parou, quase no limite da cerca do quintal. Soltou a mão de Débora, e com muita calma, ajoelhou-se na grama. Suas mãos delicadas e infantis iam ao encontro de um dente de leão, que com muito cuidado, arrancaram aquela flor felpuda do talo.

Débora secava as lágrimas. Já não chorava, apenas soluçava, observando intrigada a ação da irmã mais nova. Com olhos penetrantes, Ana pôs-se de pé e encarou Débora, colocando diante de si aquele dente de leão. Suas unhas estavam brancas, de tanta pressão que usava para segurar a planta entre os dedos. Esperou que o soluço de Débora passasse, sem desviar nem abrandar os olhos.

Ao sentir que a irmã estava pronta para receber a notícia, soprou suavemente o dente de leão. Mas só Débora pôde ouvir, lá de dentro de casa, o rádio anunciar entre ruídos que Hitler acabara de cruzar a fronteira.

---------------
1052 palavras
 

Valinor 2023

Total arrecadado
R$2.644,79
Termina em:
Back
Topo