P
Paganus
Visitante
Paegge
Fazia um calor intenso, abrasador, quente como os infernos subterrâneos da antiga Valíria. Paegge não se lembrava de dias tão quentes em Bravos desde que era garoto, no auge do que se supunha ser o Grande Verão, na época que parecia tão distante de paz nas Cidades Livres, paz em Westeros, paz até no Leste, época de calor e paz. Mas agora o calor lhe parecia agourento, tenebroso, uma alta temperatura na pele e corações gelados. Bravos não estava em paz.
Paegge estava sentado à porta da Casa do Preto e Branco, observando o movimento declinante das ruas poeirentas e o movimento dos próprios pensamentos, suas lembranças, memórias de dias antigos e de dias recentes, dias em que observou os pequenos fatos que eclodiram nos grandes eventos da Guerra dos Cinco Reis, que ainda rugia. Lembrou do dia em que o Rei Robert Baratheon partira de Porto Real, e ele partira com ele, rumo ao Norte gelado e ominoso. Detestava Porto Real.
Partira de Bravos em um navio do próprio Senhor, comissionado pela Ordem e tripulado por corsários experimentados, partira em direção a Westeros, terra de sua mãe, terras vastas e belas que sempre amava visitar. Dessa vez vinha a trabalho. O Gentilomem fora claro:
- Você irá a Westeros, a Porto Real. De lá acompanhará a comitiva do rei seguindo pela estrada do mesmo rei até Winterfell. - decretara o sábio e inexpressivo homem, a quem Paegge respeitava como o próprio Deus.
- Qual a missão, senhor? - perguntara, ansioso.
- Observar. - respondera ele.
- Observar? Mas o que exatamente...
- Silêncio. Jack irá com você, zarparão juntos mas não se manterão juntos. Ele o informará de tudo.
Depois de dez anos fazendo o que fazia, Paegge estava mais que acostumado à laconicidade da figura enigmática do Gentilomem para questionar suas ordens, ou mesmo pedir esclarecimentos. E haveria Jack, seu melhor amigo no mundo, seu companheiro, comparsa, confidente, sua sombra. Ele lhe informaria de tudo. E o mar é sempre o mar, sempre haverão ondas, e o sol escaldante, e a travessia perigosa do Água Negra. E Jack.
Paegge nasceu em Porto Real, em um bordel fétido de prostitutas baratas, entre as quais se encontrava sua mãe, uma visível dothraki, com seus trapos de couro, sua pele dura e acobreada, seus grandes olhos e cabelos negros como a noite. Seu pai era um desconhecido. Sua mãe provavelmente fora capturada por um khalasar inimigo do que ela se encontrava, fora estuprada e vendida como escrava na Baía de Escravos, dali recomprada por algum mercador de uma das Cidades e assim exportada a Porto Real. Os grandes senhores dos ândalos podiam se gabar de sua honra mas apreciavam carnes tenras e às vezes exóticas e pagavam caro por elas. Mas sua mãe não tivera sorte, fora adquirida por um proprietário de bordeis baratos da Baixada das Pulgas e era montada por todo tipo de gente, de ralé e bichos imundos, e o pequeno Paegge se acostumara àquela vida. Mas não por muito tempo...
Ele fugira da maldita cidade e da sua mãe puta escondendo-se em uma galé mercante de Bravos e veio parar como uma mercadoria indesejada na famosa cidade. Ali escapou dos mercadores e gatunos, passou a roubar para viver e foi crescendo em graça e vigor, senão em virtude. Conheceu outro pequeno gatuno, Jack, o terror mirim das rameiras e dos quitandeiros de toda sorte, figura conhecida. Conforme ia vivenciando melhor a cidade, acabou na Casa do Preto e Branco, e aos poucos, através de inúmeras provas e pequenas missões, foi iniciado nos mistérios do Deus de Muitas Faces e se tornou um honorável membro da Ordem, cumprindo missões cada vez mais arriscadas e sujando mais e mais as mãos. Mas não se importava. O que o movia era a gratidão ao Gentilomem que sempre o livrou de poucas e boas e mais que tudo: a fidelidade à Ordem, seus objetivos, planos e uma diligência que nenhum dos Sem Face esperaria possível de um rato de esgoto como aquele.
Diligência com a faca e com os livros. Vivia nas diversas bibliotecas da cidade e nas livrarias surrupiando livros e mais livros, anais dos escribas dos Senhores e Arcontes das Cidades, livros famosos de história e ciências dos meistres, volumes consagrados de magia e conhecimentos ancestrais da Cidadela e, mais que tudo, lia os mitos da antiga Valíria e das Cidades e textos sagrados da Fé, das crenças de diversos povos bárbaros, dos deuses dos Primeiros Homens, canções e lendas diversas. Lia pricipalmente sobre Valíria, os Targaryen, a Perdição e a Conquista de Aegon, com especial ardor, a história e objetivos da Ordem, seus ensinamentos e filosofia. Paegge, o Papa-Livros, era como ficou conhecido nas ruas de Bravos.
Jack era membro da Ordem também, astuto e ágil na entrega dos presentes do Deus mas pouco diligente nos estudos.
Quando chegou o dia, uma manhã nublada e igualmente quente, Paegge desceu aos cais e procurou por Jack entre os marinheiros do Senhor, esperando alguma indicação. Depois de muito andar pelos cais e procurar, viu um homem careca e de faces enrugadas lhe acenando de um navio de costado vermelho-tijolo, feio como a flor de uma puta, olhos brancos e cegos, e um movimento de braços pelancudos que lhe era familiar. Maldito imbecil. Jack nunca usava sua verdadeira aparência, era um abusador das Faces, e o próprio Paegge chegou a ficar meses, até um ano, sem lhe ver a verdadeira cara chupada e morena, seus cabelos crespos e negros, os olhos roxos e as sobrancelhas grossas, o porte meio corpulento, os braços e pernas peludos e longos como de um macaco das ilhas. Ele ao natural era estranho, mas raramente estava ao natural. Antigamente vivia sendo espancado pelo Orthon, outro Sem Face, pelas ousadias. Agora lhe chamava:
-Aqui, seu idiota. Você é cego? Ou burro? Estamos quase zarpando sem você, ratinho lerdo. Vem pra cá logo! - gritava o velho asmaticamente.
-Já estou a caminho, seu monte de merda lysena. Está fazendo o que, vestido de velho? É pra se aparecer? Você não sabia que o objetivo as Faces é exatamente o contrário disso? - dizia enquanto caminhava, calmamente, em direção ao navio.
-Ah, vá à merda. - gritou em resposta, o velho, arrancando risadas da tripulação de homens bronzeados e fortes do Fúria Syreana, um dos navios do Senhor de Bravos.
Subindo ao convés, o jovem tratou de se informar sobre a missão com o 'velho' mas antes que dissesse qualquer coisa este apontou para os marinheiros a bordo, indicando o sigilo absoluto da missão. Já era de praxe o uso de sinais e outras formas mais heterodoxas de linguagem entre os Sem Face mas Jack elevara tal arte ao mais alto nível de sofisticação e estupidez. Revirando os olhos, o jovem assassino se encosta na amurada do navio e fita longamente o cais e sente o odor conhecido de merda, sêmen e fumo, cada um dos quais acompanhado de lembranças doces, algumas não tão boas, mas todas que lhe falavam igualmente ao coração, à alma. E suspirou.
-Aposto que sei em quem você está pensando. Foi bem aqui, não? - perguntou Jack, rindo maliciosamente, entre dentes podres e uma boca babenta e enrugada.
-Sua sensibilidade é uma coisa admirável. - respondeu o jovem, enojado. Como pode ser tão boçal?
De qualquer forma, nunca se realiza aquilo que se quer, pensava ele então, antes como hoje. Amara muito, amara demais, mas sabia que nada disso tinha valor, nada que vive tem valor, dura, permanece, tudo volta ao nada e somente no Nada se plenifica.
Estava nessas reflexões contemplando a baía enquanto o capitão dava suas ordens, Jack bocejava, os remos começavam a trabalhar e o navio a se afastar da costa de Bravos, e rumava para o Oeste, para o Ocidente, para Westeros. Enquanto a embarcação se afastava e era impelida por braços e ventos, com as velas içadas, e com o suor dos marujos, Paegge permanecia olhando Bravos, que se afastava, por sua vez, que se tornava menor, mais distante, mais etérea, como nos seus sonhos e na sua infância, o portos sujos, as casernas caindo aos pedaços, as grandes mansões senhoriais, o Palácio do Senhor, a Casa do Preto e do Branco, as ruas poeirentas e lúgubres de noites estreladas, fumacentas e mal iluminadas, dos dias apertados, calorentos, sufocantes em peles e couro. A Bravos de sua vida.
Subindo ao convés, Paegge só podia lembrar do quanto amava essa cidade e se perguntava se a veria novamente, se essa viagem terminaria como todas ou se o Deus teria finalmente se lembrado de lhe conceder a dádiva do fim.
Talvez não a merecessem ele, Sem Face e Sem Escolha.