Crítica do Mendonça:
Guerra dos Mundos
PROCESSANDO O REALISMO
Por Kleber Mendonça Filho
Em junho de 1975, Steven Spielberg inaugurou o chamado "arrasa-quarteirão de verão" com Tubarão. 30 anos depois, vemos que o diretor continua uma espécie de rei do cinema comercial, ainda filmando gente fugindo de monstros. Seu último filme, A Guerra dos Mundos (War of the Worlds, EUA, 2005), que invadiu boa parte do planeta considerado civilizado hoje, Brasil incluído, nos traz adaptação da obra de H.G Wells que já havia sido transformada no lendário programa de rádio de 1938 dirigido por um jovem e provocador Orson Welles. Foi também um filme marcante de mesmo nome dos anos 50 (disponível em DVD), clássico do gênero e que ainda sustenta-se bem ao ser visto hoje (se você respeitar a identidade visual de efeitos especiais executados cinco décadas passadas). Na versão de Spielberg, além do já esperado espetáculo de destruição e comedido terror, temos uma visão culturalmente isolada onde os EUA permanecem o centro de tudo, talvez um problema para uma obra que chama-se A Guerra dos Mundos.
A Guerra dos Mundos chega aos olhos de um público já acostumado a ver o planeta Terra sendo vandalizado por extraterrestres, algo incomum na época em que Welles assustou a área de Nova York ao transmitir seu "boletim especial" sobre uma invasão da Terra.
Nove anos atrás, por exemplo, o imbecil (e divertido, bom admitir) Independence Day (1996), de Roland Emmerich, mostrava a aniquilação de pontos turísticos internacionais por ETs do mal, mesmo ano em que Tim Burton nos deu marcianos anarquistas no muito, muito, muito engraçado Marte Ataca! (Mars Attacks!). Há menos de um mês, o nosso planeta sofria demolição para a construção de um viaduto espacial em O Guia do Mochileiro das Galáxias. Portanto, nada de realmente novo que A Guerra dos Mundos traz.
Com duas horas de duração, o filme de Spielberg passa certa idéia de confusão. A primeira hora sugere (para mim, pelo menos) uma tentativa patriótica de afirmação da imagem dos EUA única e exclusivamente para os próprios americanos. Não chega a causar o constrangimento de um Independence Day, mas há aspectos dignos de nota.
Na narração grave de Morgan Freeman, abrindo o filme, e citando o texto original de HG Wells, há uma referência aos "inimigos que vêm do outro lado do golfo espacial" (a palavra chave aqui é "golfo", perdida nas legendas em português), e seria justo entender esse golfo como o daquele país árabe que começa com a letra "I"? Hmm.
O herói Ray Ferrier (Tom Cruise, interpretando Tom Cruise) é classe trabalhadora e mora numa rua onde todas as casas têm bandeiras dos EUA. Ele é o herói, mas não sabe qual é a capital da Austrália. Diferente de filmes de invasão, e do próprio Guerra dos Mundos de 1952, a ação se passa imediatamente ao redor de Ray e dos seus dois filhos, Rachel (Dakota Fanning, muito bem assustada) e Robbie (Justin Chatwin), nos arredores de Nova York e Boston, Massachussetts, berço da noção de liberdade política dos EUA. Com a exceção de uma referência a misteriosos eventos meteorológicos na Ucrânia, a noção de que os acontecimentos têm alcance mundial é bastante nula.
Referências aos EUA pós-11 de setembro, no entanto, são muitas, da imagem de um policial na rua tentanto organizar o pânico na frente da câmera às paredes cobertas de fotos dos desaparecidos, boa parte deles desintegrados por raios que fazem ZOING!!!
Na verdade, a cada novo ZOING!!! (o ruído é bem mais interessante do que levamos a acreditar aqui) o filme parece distanciar-se dessa preocupação de afirmar-se americano, tomando o rumo de uma aventura de ficção científica clássica onde o aspecto da destruição é recheado por um senso de terror que não casa muito bem com a idéia de diversão. Isso é bom.
Esse senso de terror (discutido também no texto sobre Tubarão, aqui no site) vem, em parte, de um certo realismo que ele imprime ao filme, que vai do tom "classe-média" do todo ao próprio filmar das tragédias vistas que, ao que me parece, recebeu forte carga do que vimos na TV no dia 11 de setembro, em especial dos momentos em que as duas torres do WTC desceram, registradas por cameras desesperadas que ousaram olhar para trás.
Seria uma pesquisa spielberguiana comparável às suas assimilações (bem sucedidas, diga-se de passagem) de linguagem observadas em A Lista de Schindler e O Resgate do Soldado Ryan, onde a morte/guerra encenada ganha um tom naturalista de cinema-verdade (não vou entrar nos deméritos desses filmes, que são muitos), ou sua conhecida estratégia de filmar E.T. com a camera à altura dos olhos de uma criança, ou ainda na sua 'mediunidade' para 'filmar Kubrick' em A.I.
Uma cena que se passa à beira de um rio, ou uma outra onde automóveis com gente dentro caem de um barco são bons exemplos de uma estranheza realista aplicada num épico sci-fi para vender pipoca, muito embora a apresentação dos "tripods" na primeira parte (e os estragos que eles fazem) tenham me impressionado mais.
Ao final, Spielberg mostra-se fiel à sua obra e pensamento (tacanha, diga-se de passagem) dentro de uma visão de respeito às forças armadas e à força histórica do seu país... Estranhamente, esse final me pareceu abrupto e duro de satisfazer a qualquer um. Volta a voz de Morgan Freeman e ele meio que encerra o caso como algum narrador infantil que estava querendo ir logo dormir, ao contrário do seu ouvinte, que queria ouvir mais.
De qualquer maneira, Spielberg não parece divertir-se muito. Já chegando aos 60, ele repete truques que o fizeram tão famoso e rico, e os executa com os pés nas costas. Há luzes estranhas que vêm de cima e portões batendo (Contatos Imediatos do 3o. Grau), criaturas que investigam recintos enquanto vítimas em potencial prendem a respiração (os velociraptors de Jurassic Park), ventos que sopram na cara dos atores boquiabertos olhando para o alto (toda a obra de Spielberg, praticamente). São as notas conhecidas desse autor, muitas vezes irritantemente singular, um Spielberg que talvez ganhe menos dinheiro com esse arrasa-quarteirão do que ele talvez acredite que vai ganhar.
Muita coisa mudou desde que ele lançou Tubarão há 30 anos. Hoje, um filme de Steven Spielberg como Guerra dos Mundos pode tornar-se apenas mais um produto repleto de fogos de artifício, numa longa e incessante montadora de imagens industriais. Infelizmente, do alto da sua destreza visual, é isso que Guerra dos Mundos passa.
Filme visto na Sala THX do Box Cinemas, Recife, Junho 2005
http://cf.uol.com.br/cinemascopio/criticasf.cfm?CodCritica=1187
Guerra dos Mundos
PROCESSANDO O REALISMO
Por Kleber Mendonça Filho
Em junho de 1975, Steven Spielberg inaugurou o chamado "arrasa-quarteirão de verão" com Tubarão. 30 anos depois, vemos que o diretor continua uma espécie de rei do cinema comercial, ainda filmando gente fugindo de monstros. Seu último filme, A Guerra dos Mundos (War of the Worlds, EUA, 2005), que invadiu boa parte do planeta considerado civilizado hoje, Brasil incluído, nos traz adaptação da obra de H.G Wells que já havia sido transformada no lendário programa de rádio de 1938 dirigido por um jovem e provocador Orson Welles. Foi também um filme marcante de mesmo nome dos anos 50 (disponível em DVD), clássico do gênero e que ainda sustenta-se bem ao ser visto hoje (se você respeitar a identidade visual de efeitos especiais executados cinco décadas passadas). Na versão de Spielberg, além do já esperado espetáculo de destruição e comedido terror, temos uma visão culturalmente isolada onde os EUA permanecem o centro de tudo, talvez um problema para uma obra que chama-se A Guerra dos Mundos.
A Guerra dos Mundos chega aos olhos de um público já acostumado a ver o planeta Terra sendo vandalizado por extraterrestres, algo incomum na época em que Welles assustou a área de Nova York ao transmitir seu "boletim especial" sobre uma invasão da Terra.
Nove anos atrás, por exemplo, o imbecil (e divertido, bom admitir) Independence Day (1996), de Roland Emmerich, mostrava a aniquilação de pontos turísticos internacionais por ETs do mal, mesmo ano em que Tim Burton nos deu marcianos anarquistas no muito, muito, muito engraçado Marte Ataca! (Mars Attacks!). Há menos de um mês, o nosso planeta sofria demolição para a construção de um viaduto espacial em O Guia do Mochileiro das Galáxias. Portanto, nada de realmente novo que A Guerra dos Mundos traz.
Com duas horas de duração, o filme de Spielberg passa certa idéia de confusão. A primeira hora sugere (para mim, pelo menos) uma tentativa patriótica de afirmação da imagem dos EUA única e exclusivamente para os próprios americanos. Não chega a causar o constrangimento de um Independence Day, mas há aspectos dignos de nota.
Na narração grave de Morgan Freeman, abrindo o filme, e citando o texto original de HG Wells, há uma referência aos "inimigos que vêm do outro lado do golfo espacial" (a palavra chave aqui é "golfo", perdida nas legendas em português), e seria justo entender esse golfo como o daquele país árabe que começa com a letra "I"? Hmm.
O herói Ray Ferrier (Tom Cruise, interpretando Tom Cruise) é classe trabalhadora e mora numa rua onde todas as casas têm bandeiras dos EUA. Ele é o herói, mas não sabe qual é a capital da Austrália. Diferente de filmes de invasão, e do próprio Guerra dos Mundos de 1952, a ação se passa imediatamente ao redor de Ray e dos seus dois filhos, Rachel (Dakota Fanning, muito bem assustada) e Robbie (Justin Chatwin), nos arredores de Nova York e Boston, Massachussetts, berço da noção de liberdade política dos EUA. Com a exceção de uma referência a misteriosos eventos meteorológicos na Ucrânia, a noção de que os acontecimentos têm alcance mundial é bastante nula.
Referências aos EUA pós-11 de setembro, no entanto, são muitas, da imagem de um policial na rua tentanto organizar o pânico na frente da câmera às paredes cobertas de fotos dos desaparecidos, boa parte deles desintegrados por raios que fazem ZOING!!!
Na verdade, a cada novo ZOING!!! (o ruído é bem mais interessante do que levamos a acreditar aqui) o filme parece distanciar-se dessa preocupação de afirmar-se americano, tomando o rumo de uma aventura de ficção científica clássica onde o aspecto da destruição é recheado por um senso de terror que não casa muito bem com a idéia de diversão. Isso é bom.
Esse senso de terror (discutido também no texto sobre Tubarão, aqui no site) vem, em parte, de um certo realismo que ele imprime ao filme, que vai do tom "classe-média" do todo ao próprio filmar das tragédias vistas que, ao que me parece, recebeu forte carga do que vimos na TV no dia 11 de setembro, em especial dos momentos em que as duas torres do WTC desceram, registradas por cameras desesperadas que ousaram olhar para trás.
Seria uma pesquisa spielberguiana comparável às suas assimilações (bem sucedidas, diga-se de passagem) de linguagem observadas em A Lista de Schindler e O Resgate do Soldado Ryan, onde a morte/guerra encenada ganha um tom naturalista de cinema-verdade (não vou entrar nos deméritos desses filmes, que são muitos), ou sua conhecida estratégia de filmar E.T. com a camera à altura dos olhos de uma criança, ou ainda na sua 'mediunidade' para 'filmar Kubrick' em A.I.
Uma cena que se passa à beira de um rio, ou uma outra onde automóveis com gente dentro caem de um barco são bons exemplos de uma estranheza realista aplicada num épico sci-fi para vender pipoca, muito embora a apresentação dos "tripods" na primeira parte (e os estragos que eles fazem) tenham me impressionado mais.
Ao final, Spielberg mostra-se fiel à sua obra e pensamento (tacanha, diga-se de passagem) dentro de uma visão de respeito às forças armadas e à força histórica do seu país... Estranhamente, esse final me pareceu abrupto e duro de satisfazer a qualquer um. Volta a voz de Morgan Freeman e ele meio que encerra o caso como algum narrador infantil que estava querendo ir logo dormir, ao contrário do seu ouvinte, que queria ouvir mais.
De qualquer maneira, Spielberg não parece divertir-se muito. Já chegando aos 60, ele repete truques que o fizeram tão famoso e rico, e os executa com os pés nas costas. Há luzes estranhas que vêm de cima e portões batendo (Contatos Imediatos do 3o. Grau), criaturas que investigam recintos enquanto vítimas em potencial prendem a respiração (os velociraptors de Jurassic Park), ventos que sopram na cara dos atores boquiabertos olhando para o alto (toda a obra de Spielberg, praticamente). São as notas conhecidas desse autor, muitas vezes irritantemente singular, um Spielberg que talvez ganhe menos dinheiro com esse arrasa-quarteirão do que ele talvez acredite que vai ganhar.
Muita coisa mudou desde que ele lançou Tubarão há 30 anos. Hoje, um filme de Steven Spielberg como Guerra dos Mundos pode tornar-se apenas mais um produto repleto de fogos de artifício, numa longa e incessante montadora de imagens industriais. Infelizmente, do alto da sua destreza visual, é isso que Guerra dos Mundos passa.
Filme visto na Sala THX do Box Cinemas, Recife, Junho 2005
http://cf.uol.com.br/cinemascopio/criticasf.cfm?CodCritica=1187