Haran
ㅤㅤ
(...) De minha parte, eu simplesmente constato que (1) há três tradições políticas duradouras e mais importantes: (a) socialismo, (b) liberalismo, (c) conservadorismo, (2) há uma intersecção grande entre liberalismo e conservadorismo, como por exemplo nos Pais Fundadores americanos, nos estadistas do Império do Brasil, na monarquia de Julho, etc, (3) há bem menos intersecção com o socialismo. Poderíamos acabar por aqui... Mas podemos, por mera convenção e sem uma definição clara, colocar o socialismo na esquerda, e o liberalismo e o conservadorismo na direta. Também nisso parece haver certo consenso, exceto por conservadores e liberais mais puristas...
E quanto ao nazismo? Bem, primeiramente, vejo nele uma tradição própria. Mas dentre aquelas três principais tradições, vejo um parentesco bem maior com o socialismo do que com o liberalismo e o conservadorismo. (...) o nazismo constitui uma tradição própria e bastante peculiar. Mas se insistirmos em inseri-lo no binário esquerda-direita, não vejo motivo para colocá-lo longe dos socialistas, que são seus parentes mais próximos.
Nesse post refleti apenas sobre o nazismo e não sobre doutrinas fascistas (ou proto-fascistas, semi-fascistas, etc.) como um todo. Tinha a opinião de que o liberalismo e conservadorismo formava um pólo, com várias vertentes no interior desse pólo, e o socialismo um pólo oposto, sem tanta conexão com o primeiro. Mas ao analisar as várias variantes do fascismo, penso que é justamente o fascismo que faz o meio de campo entre os dois pólos: socialismo-fascismo-conservadorismo-liberalismo. Por exemplo, o salazarismo e o franquismo parecem ficar bem no meio-termo entre conservadorismo e fascismo, alguns analistas apontam que foram doutrinas fascistas, outros não. Já no meio-termo entre fascismo e socialismo podemos citar o strasserismo, o nacional-bolchevismo, o baatismo. Nesse sentido, penso que o eixo socialismo-liberalismo é o eixo de maior poder descritivo e que deveria substituir o usual esquerda-direita: como procurei justificar no post anterior, o eixo usual esquerda-direita é "socialista-cêntrico", isso é, a esquerda é socialista e a direita é tudo o que não é esquerda, independente do que for... E isso dá pouco espaço para calibrar o eixo na direita: quem é menos socialista, ou menos "igualitário", ou menos esquerdista: um conservador católico ou um anarcocapitalista? Sei lá...
O eixo socialismo-liberalismo, por sua vez, é um eixo tal que as doutrinas vizinhas tem uma semelhança mais palpável, tanto estruturalmente, quanto historicamente, quanto no que diz respeito a doutrinas intermediárias. Ao invés de socialismo-liberalismo, talvez fosse mais adequado estabelecer o eixo como economia planificada-economia livre, e o fascismo, com seu corporativismo, estaria naturalmente no meio de campo (e é justamente nesse sentido que o fascismo muitas vezes é apontado como "centrista" ou como uma "terceira via" entre capitalismo e socialismo). O getulismo, o trabalhismo, o modelo nórdico (também corporativista!), a esquerda americana, também estariam no meio de campo, seja entre fascismo e conservadorismo, ou entre fascismo e socialismo. E poderia ser usado também um segundo eixo, a respeito do Estado: totalitarismo-autoritarismo-democracia-anarquismo. O centro, em especial, embarca desde o totalitário, o fascismo estrito, corporativismo de cima para baixo, quanto o fascismo lato, meramente autoritário, como o corporativismo de baixo para cima do salazarismo. Getulismo estaria por perto, e indo para o campo democrático, o New Deal americano e a social-democracia nórdica, o primeiro puxando para o lado mais conservador, e o último para o lado mais socialista...
Quer dizer, nada tão surpreendente, um eixo para descrever o Estado, e outro para descrever a economia. Esse último eixo poderia, quem sabe, se chamar esquerda-direita, dado que esses termos são usados, na linguagem coloquial, menos para descrever igualitarismo, e mais para descrever aquilo que se entende como o principal eixo descritivo das doutrinas políticas de um dado contexto, o que implica que o significado não é pétreo... mas enfim, aí já viu né, a esquerdaiada pira: pra chamar Bolsonaro de fascista, toda liberdade terminológica é válida, mas para fazer uso dos termos direita e esquerda, termos tão corriqueiros, vale apelar para um academicismo mofado, que nesse caso é menos de caráter empírico e científico e mais de caráter meramente convencional e vocabular. É como a questão de Plutão ser ou não planeta: a discussão e o consenso acadêmico a respeito se dão mais sobre uma convenção de nomenclatura, de forma que, quando Plutão deixou de ser planeta, não houve grande revolução ou novidade sobre Plutão. O consenso se estabelece mais por força de hábito, e não cabe buscar meio experimental de decidir a questão... Vírus serem vivos ou não-vivos é uma polêmica que segue na mesma linha: não há mistério sobre a natureza dos vírus, e sim mera discordância vocabular. Por fim, o nazismo ser de direita ou de esquerda é mais ou menos do mesmo tipo - e pior, porque diferente da definição de "planeta" e "ser vivo", a convenção vocabular sobre "esquerda-direita" também traz em si um viés político... mas muitos por aí querem tornar a discussão mais importante, significativa e pétrea do que ela realmente é, o que não tem cabimento.
Curiosamente, podem notar, a maioria das discussões a respeito mal tocam na definição de esquerda e direita, partindo para uma mera análise das semelhanças e diferenças entre o nazismo e doutrinas patentemente de direta e patentemente de esquerda. Só devagar e subliminarmente o sentido estrito das palavras direita e esquerda fica claro, se é que fica e se é que existe algum sentido. O que isso mostra? Que o sentido acadêmico do termo tem se desconectado do sentido não-acadêmico, este é menos calcado numa definição estrita e mais, como falei, encarado como um eixo que descreve, em primeira aproximação, o parentesco entre doutrinas políticas. Por exemplo, lembro que ficou patente numa reportagem da Globo, que repudiava uma fala de Bolsonaro sobre o nazismo ser de esquerda... Horror! Dá-lhe especialistas a rodo falando que nazismo não era de esquerda. Mas na reportagem ficou claro por que o nazismo não era de esquerda? Qual é a definição que deixa isso patente? Não ficou, e nem tentaram... Porque justamente o que há é uma discordância vocabular pouco importante, e explicitar isso não faria jus ao tom alarmista que se desejava dar ao assunto.
Última edição: