Em março, Ministério da Saúde já projetava 100 mil mortes por Covid-19, diz ex-secretário
Para Wanderson Oliveira, total de mortes poderia ser menor com mais distanciamento social
O sr. ajudou a formular a estratégia para o enfrentamento do novo coronavírus. Hoje o país já soma mais de 1 milhão de casos e 60 mil mortes. Imaginava que poderíamos chegar a esses números?
Quando fizemos um dos primeiros modelos de projeção com o pessoal da Opas [Organização Pan-Americana de Saúde], em março, estimamos 100 mil óbitos.
Acredito que, se não tivesse sido feito nada, e os modelos são para essa situação, teríamos um cenário ainda mais complicado do que estamos vendo. As medidas empurraram a curva para frente.
Esses 100 mil óbitos seriam em que período?
Seriam em seis meses [até setembro]. Já imaginávamos uma situação delicada, embora os parâmetros vão mudando ao longo do tempo. Na prática, o que vemos hoje é um cenário muito preocupante e que ainda não está completamente desenhado.
Em abril, pedi à minha equipe que cada um fizesse estimativa de quantos óbitos poderíamos ter em 1o de julho, baseado na percepção do que estávamos vivendo. Lembro que coloquei uma estimativa mais otimista [do que temos hoje], de 42 mil [mortes]. Outros colocaram outras.
A que atribui essa diferença?
Creio que boa parte foi por essas controvérsias que ocorreram. Perdemos um tempo precioso com um debate improdutivo que acabou resultando numa confusão para a população muito grande. E hoje vejo um desgaste muito grande das medidas de distanciamento, que foi muito errático.
A partir de 13 de março, a maioria dos municípios começou um distanciamento básico, que era fechamento de escolas.
Estávamos começando a construir um distanciamento pelas informações que dispúnhamos no momento, mas ao longo desse tempo houve aqueles embates de abre-fecha, que voltou para o STF
[que decidiu que estados e municípios poderiam adotar ações próprias].
Vemos hoje vários estados flexibilizando o isolamento social, mesmo com aumento de casos. Não é cedo? Qual o melhor momento para isso ocorrer?
Essa é a pergunta de ouro. Fechar talvez seja mais fácil do que abrir. Fechar exige antecipação. Se puder fechar antes de ter caso confirmado, é o ideal para intensificar ações, e isso nós fizemos.
Quando eu olho para as estratégias que o Brasil adotou, isso em todas as esferas de gestão, diria que o país nem fechou nem abriu, ficou com a porta entreaberta.
O sr. citou essa projeção que fizeram no início da epidemia de 100 mil mortes no país. Chegaram a avisar ao Planalto?
Foi avisado, tanto que tivemos reunião com a Economia. Em seis meses [o que seria setembro] era quando teria esse volume de óbitos mais largo, de 100 mil.
Na prática, se considerar um cenário nesse ritmo, não vejo muito diferença disso, não. Vai ter até mais. Estamos com 58 mil mortes [nesta quarta, foram 60 mil] no primeiro semestre.
Se mantiver esse padrão, mesmo olhando a curva caindo ao longo do tempo, perto do fim do ano posso ter 110 mil, 120 mil.
Ao longo dos últimos meses fomos ampliando a previsão de testes, chegando a falar em 46 milhões. Por que essa previsão não deu certo?
Não temos um parque produtor de testes no Brasil. Temos a Fiocruz, que, por mais que se esforce, usa insumos importados. Entramos em fevereiro e março tentando conseguir insumos.
Estávamos com um plano para obter mais testes no momento de mais casos, que é junho, julho e agosto. Iríamos receber os testes da Vale e adquirir mais da Fiocruz, mas ela não conseguiu trazer e teve que reprogramar as entregas. Não foi de má-fé, mas de falta de insumo.
Ainda é possível ampliar a testagem?
É possível e necessário, mas existe a necessidade de ajustar a estratégia, principalmente o rastreamento do número de infecções e de contatos. Não basta só fazer teste, a mira tem de estar boa, e ela tem de estar na identificação e rastreamento de contatos.
Na sua gestão, falava-se que a epidemia chegaria ao pico entre junho e julho. Já chegamos?
O reflexo da circulação de agora só vamos ver umas três semanas para frente. Mas creio que estejamos no pico para gerar um platô. A questão é se vai gerar um platô ou se começará a ter uma queda. Não vou conseguir enxergar isso antes do final de julho. Mas creio que estejamos nesse momento agora.
Mas não há um risco de segunda onda?
O risco existe. Se estamos com um 1 milhão de casos, vamos supor que estejamos subestimando o número real, e que ele seja de 10 milhões. Estamos falando ainda de 200 milhões de pessoas sem se infectarem.
Se não tenho uma vacina, e não tenho medicamento profilático, não tenho como controlar.
O ministério alterou recentemente a divulgação dos dados e chegou a retirar o total de casos e mortes. Enquanto estava na pasta, recebeu pressão para mudar a divulgação?
Igual aconteceu, não.
Mas aconteceu em algum momento?
Desde o começo, a Presidência queria destacar mais os casos recuperados, mas não teve grande mudança. O objetivo de olhar para o recuperado é entender um pouco a velocidade de transmissão.
Como viu a decisão de mudar a divulgação dos dados?
Lamentei muito. Não é a tradição da Secretaria de Vigilância e nunca foi em nenhuma gestão.
Até quando devemos conviver com o novo coronavírus?
O coronavírus de 2002 perdurou até 2010 na China com casos esporádicos. Esse é um ponto central. Um novo momento da comunicação agora é trabalhar na convivência com esse vírus.
Enquanto não tivermos certeza de que a imunidade seja duradoura e de que a vacina seja realmente eficaz, vamos conviver.
Podemos ter uma vacina em breve?
Temos uma perspectiva muito boa dessa vacina da AstraZeneca, mas eu não colocaria muita força nessa mensagem agora, porque as pessoas precisam ficar em casa, lavar as mãos e usar máscara. A ideia que se passa é que a vacina estará amanhã disponível, mas não é para agora.
Especialistas apontam um apagamento do Ministério da Saúde. Como avalia a resposta do Brasil a essa pandemia?
A resposta poderia ser melhor, mas, se não fosse o SUS, estaríamos pior que os EUA.
Wanderson Kleber de Oliveira, 47, é ex-secretário de vigilância em saúde do Ministério da Saúde na gestão de Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. Formado em enfermagem, é doutor e mestre em epidemiologia pela Faculdade de Medicina da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e foi professor da Fiocruz Brasília. É servidor público federal do Hospital das Forças Armadas desde 2009. No Ministério da Saúde, já havia atuado em outras emergências, como a da zika.