Não existe a menor contradição em falar de liberalismo autoritário porque o liberalismo não se opõe ao autoritarismo de forma alguma a não ser no nível da retórica. Porque essa oposição que vocês colocam entre liberalismo e autoritarismo é extremamente tendenciosa porque presume que 'liberdade' é um termo inventado ou intuído pre-eternamente de um místico liberalismo pré-eterno. Logo, o liberalismo histórico seria um tipo de encarnação de virtudes 'liberais' intuídas eterna e ontologicamente de uma suposta tradição de pensamento, senão mesmo de práxis semi-consciente em meio a tradições autoritárias. É o que dá pra perceber da leitura de vocês.
Mas a liberdade não se refere, ainda que salvaguardado seu caráter real, a uma mesma prática e entendimento conceitual e existencial de liberdade. A liberdade muda com os tempos e não apenas muda, se transmuta, regride e avança, caminha por cordas bambas, e entre a s variáveis que influenciam no entendimento e prática dessa liberdade, existe todo um referencial, todo um universo simbólico cheio de referenciais significativos que tem na liberdade seu ponto de partida. No mundo tradicional, por exemplo, não existe uma liberdade política e uma liberdade social, uma liberdade religiosa e uma liberdade econômica, existe a Liberdade, um espírito que permeia todas as instâncias e estruturas da vida terrena que, com não canso de dizer, é símbolo e prefiguração da vida eterna.
E mesmo no mundo antigo, essa liberdade sofre variações constantes, ela vai desde a liberdade estritamente aristocrática, da subordinação das castas inferiores às superiores, da ordenação e correlação entre as diversas esferas da vida, a transfiguração dessas mesmas instâncias vividas sub specie aeternitatis através do rito e do mito, o primeiro como transmissão de influências sobre-humanas e transformadoras que pressupõem, apesar da impessoalidade de sua essência, uma determinada receptividade do adquirente de tais influências, receptividade moral e mais-que-moral, ontológica, metafísica. O mito, já um relato anamnético e igualmente ritual, embora a nível inferior e mais condicionado, de iguais realidades trans-físicas. Em tud isso, reina a liberdade. A liberdade do inferior obedecer ao inferior e, por meio da ascese do poder, se libertar de seus condicionamentos. A crucificação das paixões das classes aristocráticas através de um mando impessoal destas por sobre seus Impérios, que os elevas ás esferas mais transcendentes. A própria ordenação estritamente racional da sociedade conformada a modelos arquetípicos, em tudo reina a liberdade.
É preciso entender isso aqui, trazido para o reino da política que, como não canso de dizer, não apenas era parte orgânica do orgânico mundo tradicional, como era mesmo sua coroa, seu ápice, o campo par excellence de exercício do poder, da liberdade, da dialética, da escolha entre as possibilidades oferecidas pelo mundo da materialidade telúrica, vital, orgânica, das esferas lunares do devir da constante e eterna esfera de nascimento, vida, morte e renascimento e os condicionamentos aprisionantes dele decoerentes, e o mundo das estrelas fixas, olímpico, solar, devayânico, celestial.
Eu só estou tecendo essas coisas sobre o mundo tradicional para efeitos didáticps, a serem transpostos à esfera política profana. Lá na Índia védica ou na Roma antiga, a liberdade sempre esteve firmemente atrelada a uma concepção viril de espiritualidade, de entendimento do homem como microcosmo e do cosmo como macrantropo, ou seja, de que a liberdade é condicionamento, é prisão às paixões e a toda amarração característica do devir, e de que só a pura transcendência pode libertá-lo. Eis a liberdade,a mesma liberdade que brilha nos escritos políticos de Platão e dos neo-platônicos, dos santos Padres, dos escolásticos e de toda a fina flor da intelectualidade medieval e antiga, a liberdade da busca da verdadeira realidade de libertação de toda prisão e condicionamento.
E vocês me trazem a liberdade do liberalismo, a liberdade individualista que é a marca de toda práxis e filosofia liberal, o reinado do indivíduo (e não da pessoa, que é um ser já livre, que conquistou a liberdade através da ascese e do desapego, que domina as esferas de existência inferiores) absoluto, atomizado, a liberdade de exaltação não dos grandes feitos, das conquistas sobre si mesmo, sobre os demônios, não!, a liberdade hedonista, do utilitarismo, do apequenamento burguês de toda virtude, toda filosofia moral, a submissão de todo o universo simbólico e ritual antigos por uma concepção racionalista, fechada sobre si mesmo, do cosmo e da existência, o fechamento das dimensões transcendentes e mágicas ao homem 'civilizado', domesticado, o animal de rebanho que vocês, liberais, elevaram à quintessência do modelo de liberdade.
São duas concepções totalmente opostas, divergentes, radicalmente diversas, são mesmo duas 'liberdades'. Como que vocês opõem liberalismo e autoritarismo sem antes definir de que liberdade e de que autoridade estamos falando? Era a autoridade dos imperadores gibelinos 'autoritária', apesar da autonomia dos príncipes nacionais? Era 'liberal' a revolução bolchevique, contra o autoritarismo czarista (de cunho ocidental, aliás)? Minha concepção de poder e ascese é autoritária? O livre mercado é liberal? Isso é tudo muito discutível e só atesta aquela outra tese muito cara a nós, tradicionalistas, a de que essas dicotomias e dualidades sem sentido concreto presentes e toda discussão ideológica, só terminarão quando substituirmos o entendimento ideológico da política pela discussão filosófico, quando passarmos em vista, realmente, as doutrinas políticas ao crivo da tradição filosófica e teológica, quando se analisar essas ideias para longe dessas prisões normativas e esquemáticas de esquerda-direita, liberal-conservador, socialista-capitalista.
Nesse sentido é que eu, enquanto tradicionalista, digo e defendo que TODO liberalismo é autoritário, a concepção liberal do indivíduo atomizado e escravizaso às suas 'liberdades' amorais ou às suas prisões conceituais e filosóficas é um atentado a toda verdadeira liberdade que presume a presença de forças antagônicas que lutam entre si, que rebaixam ou elevam o homem, e pela qual ele terá de escolher e lutar para se defender. Para mim nada há mais escravizador, autoritário, que o liberalismo. O stalinismo mais absurdo, mais demônico, é menos autoritário que a simples ideia liberal.
Percebem? Eu poderia me definir como anarco-socialista, stalinista contigente, conservador de esquerda, tradicionalista pós-moderno, legionarista, fascista purificado, extrema-direita, e mesmo de extrema-esquerda. Pessoal se escandaliza com essas coisas mas não percebe que não se está inventando moda, mas simplesmente se demonstrando a nulidade dessas esquematizações normativas e normativizantes, a caducidade dessas dualismos. Isso precisa ser pensado e refletido, precisa ser transposto o abismo desses esquemas e sistemas, precisamos compreender os fenômenos políticos e sociais, e não fazê-los serem compreendidos pelas teorias disponíveis.