Matheus Spier
Usuário
Oi gente.
Este tópico é muito polêmico, e tenho até medo de irritar alguém com ele. Porém eu preciso desabafar: não suporto Gumarães Rosa, e não acho que ele seja um dos maiores escritores do mundo (como querem muitos críticos).
Antes de o pessoal querer me bater, peço que relembre o seguinte tópico do fórum: "Os piores clássicos que vc já leu", no qual vários dos membros do fórum criticam obras literárias consideradas canônicas: http://www.meiapalavra.com.br/showthread.php/18270-Os-piores-clássicos-que-você-já-leu
Tive de escrever sobre a obra de Gumarães Rosa para uma disciplina da faculdade: "Oficina de Leitura e Produção Literária", e acabei conseguindo dar voz aos meus sentimentos pelo famoso autor de Grande Sertão: Veredas.
Minha opinião sobre GR, em resumo, é a seguinte: trata-se de um homem capaz de imaginar histórias muito interessantes e cativantes, porém que não tinha nenhum talento poético e descritivo, e que, sob a influência de Joyce, principalmente, acabou por destruir os maravilhosos enredos de seus romances e contos.
Mas essa é apenas minha opinião; apenas queria desabafar e ver se existem mais leitores que sentiram o mesmo que eu ao ler Rosa.
Eis o texto que produzi sobre o autor:
Análise da obra de Guimarães Rosa
João Guimarães Rosa era um escritor dotado de um talento muito importante: a capacidade de criar histórias. Os enredos de muitos de seus contos são bastante interessantes, pois lidam com problemas universais; além disso, costumam ter um sabor lendário, quase épico. O Grande Sertão: Veredas possui uma história notavelmente empolgante, capaz de seduzir uma quantidade imensa de leitores. É melhor dizer, porém, que Grande Sertão: Veredas teria a capacidade de seduzir muitos leitores; na realidade, é um livro que cativa a poucos (geralmente estudiosos de literatura e linguagem), e essa deficiência se deve apenas a seus próprios defeitos.
Sim, Guimarães Rosa possui o talento de criar histórias e enredos, porém era um escritor muito ruim, dotado de uma deficiência colossal. Essa deficiência o acometeu por toda sua carreira, e fez de sua obra uma obra menor, meramente uma curiosidade literária. O grande defeito de Guimarães Rosa era sua linguagem, ou melhor, seu pedantismo; seu desejo em imitar James Joyce (que não merece ser imitado, pois mergulhou demasiadamente fundo em poças de mera técnica) não produziu bons frutos, pois criou uma complexidade inútil, uma complexidade que existe apenas por existir. Esse problema é tão grave, e ao mesmo tempo tão interessante, que merece ser estudado com cuidado.
Em primeiro lugar podemos analisar duas espécies muito diferentes de linguagem, usando como modelo dois escritores supremos: Shakespeare e Tolstói escrevem de forma muito diferente, mas cada uma de suas linguagens tem funções específicas, metas próprias. São linguagens que parecem úteis ao material que estão abordando, ao passo que a linguagem de Guimarães Rosa se parece com uma série de adornos.
Shakespeare se vale de uma textura poética magnífica, de metáforas sublimes, de símiles maravilhosos; a poesia é uma das mais antigas e mais elevadas formas de arte humana, e em nenhum lugar tal arte foi executada de forma mais bela do que em Shakespeare. As falas de seus personagens são válidas (como grande literatura) em um primeiro momento apenas por sua beleza, sua atordoante exuberância. Shakespeare não escrevia acerca de profundas verdades filosóficas, mas sim sobre lugares-comuns, sobre a sabedoria do dia-a-dia. Tudo o que disse já havia sido dito anteriormente, porém jamais de uma forma tão bela e memorável.
Além de sua beleza, a linguagem de Shakespeare é usada para criar personagens com personalidades maravilhosamente exageradas, como se o dramaturgo derrubasse fermento sobre suas consciências, fazendo-as extrapolar a barreira normal da mente humana. As pessoas em Shakespeare falam de uma forma que jamais qualquer um de nós falou, e possuem traços psicológicos artificialmente alargados. Por essa razão suas peças são amplamente cativantes: primeiramente pelo prazer da beleza pela beleza, da poesia pela poesia, e depois pela descoberta de criaturas tão curiosas e bizarras como seus personagens.
Deve ser lembrado que apesar de Shakespeare usar metáforas complexas, de chocar idéias abstratas com o concreto violentamente, ele jamais usa palavras desnecessariamente obscuras ou desconhecidas; se cria palavras, as cria por necessidade (e as criou em uma época em que seu idioma vinha se desenvolvendo furiosamente). É um poeta que tece imagens maravilhosamente frescas e novas, mas sempre com a mesma argila, com os mesmos tijolos por todos conhecidos; seu vocabulário é imenso, mas apenas por ser muito variado, e não demasiadamente técnico.
Quanto a Tolstoi, sua linguagem é absolutamente simples. Ele chama cada coisa pelo nome, não exagera nada: tenta relatar tudo com exatidão. Ele, como Guimarães Rosa, quis reproduzir em certas cenas a vida dos camponeses, dos mujiques pobres. A linguagem de tais pessoas, evidentemente, é diferente da linguagem dos membros da alta sociedade. Porém Tolstoi usa a linguagem popular como ela é, sem querer cunhar neologismos sobre neologismos, forçando os erros gramaticais do povo em construções que nada tem de popular. Os camponeses de Rosa não falam como camponeses; falam como professores de filologia tentando soar como camponeses.
Tolstoi não quer fazer de sua linguagem um espetáculo, um show de fogos de artifício: não quer fazer da linguagem seu maior foco de esforço. O que lhe consumiu mais tempo e atenção foi a descrição de detalhes, de todos os mais ínfimos detalhes do dia-a-dia, bem como do pensamento humano. Se fala, por exemplo, num bosque de outono, além das folhas secas e amareladas (que qualquer um se lembraria de citar) fala também do cheiro doce, porém azedo, das frutas apodrecidas no chão, do pólen e dos esporos no ar, dos musgos e do limo, do cheiro dos fungos e das folhas apodrecidas: seus sentidos captavam tudo.
É possível afirmar que o estilo de cada escritor deve ser respeitado, que gostos são gostos, que não se pode taxar algo de inferior com base meramente em gostos, em conceitos particulares. Ocorre, porém, que não se consegue encontrar qualquer utilidade para o estilo empregado por Guimarães Rosa: parece bastante óbvio que o escritor criou um estilo próprio apenas para afirmar que havia feito algo novo, que havia desenvolvido uma nova forma de narrar, uma forma toda sua. Mas invenções técnicas e estilísticas surgem muito vagarosamente, com contribuições de várias fontes, de várias mentes; o desenvolvimento é gradual. É por essa razão que os gêneros literários mais clássicos e consagrados, como o drama, a poesia lírica, o romance, o conto, são modelados muito vagarosamente, assumindo, com os anos, regras próprias. Nenhum desses gêneros simplesmente brotou, já completo, da mente de um escritor: foram cinzelados pela força de várias mentes. O drama, a poesia lírica, o romance, certa vez foram embriões. Guimarães Rosa quis criar um vocabulário todo próprio (imitando Joyce), mas sua invenção não serviu a nenhum fim, a não ser alimentar o orgulho de seu autor.
Por essa razão Guimarães Rosa atualmente é lido apenas por intelectuais, professores e scholars, e não pelo público em geral: as pessoas comuns não extraem prazer de sua obra, e, por não conseguirem entender o que é dito, simplesmente a abandonam. Não vale a pena gastar várias horas e dias decifrando uma linguagem artificial e particular, uma linguagem que não é nem bela (como a de Shakespeare) nem direta e facilmente inteligível (como a de Tolstoi); lendo Guimarães Rosa, nós nos colocamos frente a um enigma que gera dificuldade ao mesmo tempo em que não gera prazer. Se Guimarães Rosa tivesse usado uma linguagem simples e natural seus livros seriam muito mais lidos, bem como artisticamente mais perfeitos e belos.
Na realidade, é uma questão de poucos anos para que Rosa simplesmente não seja mais lido, uma vez que se tornará cada vez mais e mais obscuro. Era um autor de linguagem obscura para os próprios contemporâneos, como será, então, para os leitores futuros? Cervantes, nos dias de hoje, gera complexidade pelo envelhecimento de sua linguagem: o que se poderá dizer de Rosa? O escritor sabotou a si mesmo ao querer inventar ferramentas que tiveram a função de meramente divertir o inventor.
A linguagem simples de Tolstoi é muito mais forte do que qualquer página de Guimarães Rosa; como foi dito anteriormente, Rosa deveria preocupar-se mais com captar o máximo possível os detalhes do mundo que o circundava (cheiros, cores, texturas, roupas, gestos, expressões faciais, movimentos corporais, consciências), não com criar neologismos. O mais triste de seu fracasso decorre do fato de que seus enredos e histórias eram muito interessantes, originais, empolgantes, lendários e míticos. O Grande Sertão: Veredas é uma mina de ouro para diálogos e para o desenvolvimento psicológico dos personagens, porém deixou de ser o que poderia ter sido em razão da obsessão de Rosa em forjar uma linguagem nova.
Vejamos uma amostra de Tolstoi:
“A carruagem já estava atrelada, mas o cocheiro demorava a chegar. Entrara na isbá [Isbá é o nome de pequenas casas construídas com madeira de pinheiro, em vários países do norte da Europa, mas especialmente na Rússia. São moradias compostas por três compartimentos: o vestíbulo sem janela e sem lareira, um quarto aquecido e um quarto frio, mas com luz.] dos cocheiros. No interior da escura isbá fazia um calor sufocante; a atmosfera estava abafada e cheirava a pão recém cozido, a couves e a couro de carneiro. Alguns condutores de carruagem haviam se reunido ali e a cozinheira apressava-se junto do fogão, sobre o qual havia um doente coberto com um couro de carneiro.
- Tio Fiodor! Tio Fiodor! – exclamou, dirigindo-se ao doente, ao entrar na isbá, um jovem cocheiro, que trazia um casaco de pele e um chicote amarrado na cintura.
- Para que está chamando o Fiedka, vagabundo? – perguntou um dos cocheiros. – Vai embora, que estão te esperando na carruagem.
- Eu quero pedir as botas dele, as minhas estão muito velhas – respondeu o rapaz, sacudindo a cabeleira, enquanto arranjava as luvas no cinturão. – Será que está dormindo? Escuta, Tio Fiodor – repetiu, aproximando-se do fogão.
- Que é? – pronunciou uma voz fraca e um rosto avermelhado, muito magro, apareceu sobre a estufa. Uma larga mão descarnada, peluda e descolorida, levantou a coberta de pele de ovelha, para tapar o ombro ossudo, coberto por uma camisa muito suja – Me dá algo para beber, irmão. O que você quer?
O jovem estendeu-lhe uma canequinha d’água.
- Escuta, Fiedka – disse, hesitante – Eu acredito que agora você não vai precisar das botas novas; me de elas, pois acho que você não vai andar muito.
O enfermo inclinou sua cansada cabeça para o canequinho reluzente e, molhando seus ralos e caídos bigodes naquela água escura, bebeu sem forças. Sua barba estava desgrenhada e suja; seus afundados olhos vítreos ergueram-se com dificuldade para o rosto do jovem. Quando acabou de beber, quis levantar a mão para enxugar os lábios; mas não pôde e limpou-se com a manga do casaco. Calado e respirando com dificuldade pelo nariz, fitava os olhos do rapaz, enquanto reunia forças.”
(trecho do conto Três Mortes, Capítulo II)
Haverá alguém que não perceba a extrema pobreza da cena, de seus ocupantes; os cheiros, as vestes, a aparência: tudo isso se funde revelando com maestria a vida dos camponeses na Rússia do século XIX. É possível sentir a sensação de entrar numa isbá, quase como se entra em um galpão pobre de pessoas humildes no Rio Grande do Sul, com o cheiro do ferroso do fogão a lenha, do solo de chão batido, dos couros, da erva-mate.
Vamos citar mais um exemplo: eis a abertura do conto Kholstómer. A história de um cavalo:
“
I
O céu se abria cada vez mais alto, a aurora avançava na amplidão, o matiza de prata baça do orvalho começava a branquejar, o crescente ficava mortiço, a floresta mais sonora, as pessoas levantavam-se, e na estrebaria senhorial mais e mais se ouviam o bufo, a algazarra na palha e o relincho estridente e raivoso dos cavalos apinhados, brigando por alguma coisa.
- Ô! Calma! Estão com fome! – disse o velho peão ao abrir a cancela rangente. – Aonde pensa que vai? – gritou, ameaçando a egüinha que se enfiava pelo portão.
O peão Niéster vestia uma camisa curta à maneira cosaca sob um cinturão adornado, levava o chicote enrolado no ombro e o pão embrulhado numa toalha, preso à cintura. Nas mãos, a sela e o freio.
Os cavalos não se assustaram nem um pouco e muito menos se ofenderam com o tom zombeteiro do peão, fingiram que não era com eles e se afastaram calmamente do portão; e só uma velha égua baia de crinas largas baixou as orelhas e voltou-lhe as ancas rapidamente. Com isso, a potranca que estava logo atrás e nada tinha a ver com aquilo guinchou e escoiceou o cavalo mais próximo.
- Ô, ô! – gritou o peão, ainda mais alto e ameaçador, e caminhou para o canto do curral.
Dentre os cavalos que comiam (perto de uma centena), o mais paciente era um capão malhado que, sozinho num canto sob o alpendre, lambia de olhos cerrados uma viga de carvalho do galpão. Não se sabe que gosto encontrava aí o capão malhado, mas sua expressão era grave e pensativa enquanto lambia.
- Mimado, hein! – disse o peão, novamente no mesmo tom, ao aproximar-se, pondo sobre o esterco ao seu lado a sela e o suadouro sebento.
O capão malhado parou de lamber e, sem se mexer, ficou muito tempo olhando Niéster. Não sorriu, não se zangou e nem ficou carrancudo, limitou-se a inflar a barriga, deu um suspiro bem pesado e virou-se. O peão abraçou-lhe o pescoço e pôs o freio.
- Que suspiros são esses? – disse Niéster.
O capão abanou a cauda como quem diz: “Não é nada, não, Niéster”. Niéster colocou-lhe o suadouro e a sela, e o malhado murchou as orelhas, demonstrando talvez o seu descontentamento; por conta disso, o peão xingou-o e começou a apertar a barrigueira. O malhado respirou fundo, mas levou um dedo na boca e uma joelhada na barriga, de sorte que teve de soltar o ar. Apesar disso, quando os dentes apertaram o freio, mais uma vez murchou as orelhas e até olhou para trás. Mesmo sabendo que de nada adiantava, ainda assim achou necessário expressar que aquilo não o agradava e que sempre iria demonstrá-lo. Quando já estava selado, afastou a perna direita machucada e começou a mastigar o freio, sabe-se lá por qual razão, afinal já era tempo de saber que no freio não poderia haver gosto nenhum.
Niéster montou no capão pelo estribo curto, desenrolou o chicote, puxou a camisa cossaca acima do joelho, sentou na sela, com aquele estilo próprio dos cocheiros, caçadores e peões, e puxou as rédeas. O capão levantou a cabeça, revelando disposição de partir para onde mandassem, mas não se mexeu. Sabia que, antes de sair montado nele, Niéster tinha ainda muito que gritar, dar ordens ao peão Vaska e aos cavalos. Realmente, ele começou a gritar: “Vaska! Ô, Vaska! Você soltou as éguas? Onde se meteu esse diabo? Ô! Seu bêbado. Vai ver que ta dormindo. Abra, pras éguas saírem primeiro” etc.
O portão rangeu, e Vaska apareceu ao lado, zangado e sonolento, segurando um cavalo pelas rédeas e deixando os outros passarem. Os cavalos começaram a sair uns depois dos outros, pisando cuidadosamente a palha e cheirando-a; as potrancas, os potrinhos, as crias e as éguas pesadonas passaram uma de cada vez pelo portão, carregando o ventre cautelosamente. As potrancas comprimiam-se às vezes em duas ou três, as cabeças no lombo umas das outras e, apressadas em sair pelo portão, recebiam insultos dos peões. As crias se lançavam às pernas de éguas às vezes estranhas e relinchavam alto, respondendo aos relinchos curtos das fêmeas. Mal atravessou o portão, uma potranca travessa baixou a cabeça e olhou de lado, voltando as ancas e guinchando; mas, em todo caso, não se atreveu a passar à frente da velha égua cinza, a grega premiada Juldiba, que balançava a barriga com o andar pesado e pachorrento, num passo medido, como sempre, à frente de todos os cavalos.
Aquele lugar, tão animado e cheio, em alguns minutos ficou vazio e melancólico; sobressaiam tristes as colunas do alpendre vazio, via-se apenas a palha amassada coberta de estrume. Por mais habitual que fosse para o cavalo malhado aquela paisagem deserta, pelo visto ela o entristecia. Como se fizesse um cumprimento, baixou e ergueu a cabeça lentamente, suspirou o quanto lhe permitia a sobrecinta apertada e saiu mancando atrás dos cavalos, as pernas bem abertas em arco, carregando em suas costas descarnadas o velho Niéster.
“Já sei: agora é só a gente sair a caminho, que ele vai acender e começar a fumar o seu cachimbo de madeira com aro de cobre” – pensou o capão. “Sinto-me feliz porque de manhã bem cedo, com o orvalho, gosto desse cheiro que traz muitas lembranças agradáveis; o único inconveniente é que, com o cachimbo entre os dentes, o velho sempre apronta, imagina coisas sobre si mesmo, sentado de lado, obrigatoriamente de lado; e do lado que me machuca. Bem, deixa pra lá, para mim não é novidade sofrer pelo prazer dos outros. Eu já passei a achar nisso algum prazer de cavalo. Que fique com suas fanfarronices, coitado. Arrota valentia sozinho, quando ninguém o vê. Pois que fique sentado de lado” – refletiu o capão, enquanto movia cuidadosamente as pernas tortas, andando pelo meio da estrada.
II
Depois de levar a manada para o rio, perto de onde os cavalos deviam pastar, Niéster apeou e desselou o animal. Enquanto isso, a manada se dispersava lentamente pelo prado ainda não pisoteado, coberto de orvalho e de um vapor que subia do chão e do rio que o contornava. Ao retirar-lhe o arreio, Niéster coçou o pescoço do capão malhado, que respondeu fechando os olhos, em sinal de reconhecimento e prazer. “Você gosta, não é, cão velho!” – resmungou. O cavalo não gostava nem um pouco que o coçassem, só por delicadeza fingia gostar, e balançou a cabeça, concordando. Mas de repente, para surpresa total e sem qualquer motivo, talvez por supor que uma intimidade exagerada desse uma idéia falsa da importância do animal, Niéster afastou a cabeça do capão, levantou o arreio e bateu com a fivela da rédea em suas pernas mirradas, provocando uma dor forte, e sem dizer palavra subiu até um tronco, junto ao qual costumava sentar-se.”
(trecho do conto Kholstómer. A história de um cavalo)
Magnífico! Quantos detalhes, quanta riqueza de minúsculos toques de mestre, e que linguagem pura, cristalina, simples; mesmo crianças de dez anos entenderiam perfeitamente o conto. Todos os detalhes aparecem como absolutamente verdadeiros e naturais, como descrições perfeitas da realidade. O trecho em que o cavalo finge gostar das carícias do peão apenas para agradá-lo é um dos exemplos da imensa percepção de Tolstoi de cada aspecto do dia-a-dia: é um exemplo do detalhe que parece insubstituível e perfeito, porém que apenas um grande mestre seria capaz de detectar e utilizar. Tais percepções, tal vastidão de detalhes, são uma característica central em Tolstoi: um traço estilístico que acompanha toda sua obra. Guerra e Paz, em seu colossal corpo de mais de 2.000 páginas, apresenta infinitas cenas e personagens, o que é impressionante; mais impressionante, porém, é que todas essas cenas e consciências são descritas e apresentadas com a espécie de toques e detalhes expostos nos trechos citados. Tolstoi a tudo absorvia.
Vamos partir agora para Guimarães Rosa; eis a introdução de Grande Sertão: Veredas:
“– Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar.Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda a parte.”
O trecho revela apenas uma grande confusão de frases e palavras deliberadamente deformadas; o leitor, mal abrindo o romance, já se sente desencorajado a lê-lo, sendo recepcionado por uma lufada tão incompreensível de linguagem artificial.
Mas alguns defensores de Rosa dirão: autor está escrevendo poesia; o autor está utilizando o vocabulário dos simples; o trecho tem uma beleza selvagem; o trecho tem uma inventividade lingüística fabulosa; a artificialidade do trecho se justifica em face de sua beleza e profundidade, etc.
Tais afirmações seriam falsas: o trecho não é boa poesia; não reproduz a fala dos simples; não é esteticamente belo; não contém detalhes maravilhosamente verdadeiros e palpáveis... É apenas a forma de um escritor que não era dotado de capacidade poética produzir algo que, em sua mente, teria o mesmo valor estético da alta poesia; Guimarães Rosa sem dúvida julgava que o tecido verbal de seu romance era grávido de profundidade, de beleza e de valor poético.
Mas, falando em tecido verbal, citaremos aqui uma frase de Nabokov: “A textura poética verbal de Shakespeare é a maior que o mundo jamais viu, e é muito superior a estrutura de suas peças como peças.”. Shakespeare valia-se, como já dito anteriormente, de uma linguagem artificial, uma linguagem em certos momentos muito complexa e densa. Ocorre que essa linguagem jamais é entupida de neologismos grotescos, neologismos nascidos meramente para seu autor ter o prazer de dizer que os pariu; é uma linguagem que obtém efeitos maravilhosos principalmente pelo seu uso de imagens e de metáforas.
Vamos citar, então, Shakespeare. Um trecho breve será o bastante. Vamos para Hamlet, ato III, cena IV. Nesta cena o príncipe Hamlet confronta Gertrude, sua mãe, dizendo-lhe o quão graves são os seus pecados, uma vez que casou com o irmão de seu falecido marido (que era o antigo rei), sem atentar para a vileza, a podridão e a sujeira moral de seu ex-cunhado (que, afinal de contas, havia assassinado o pai de Hamlet, ex-marido de Gertrude). Em uma das falas, Hamlet diz o seguinte:
“ Mãe, pelo amor da graça,
Não aplique uma unção lisonjeira sobre a sua alma
Para que não o seu trespasse, mas minha loucura, fale.
Isso vai apenas dar pele e película ao lugar ulceroso,
Enquanto a podre corrupção, minando tudo por dentro,
Infecta sem ser vista.”
Hamlet quer dizer para sua: não finja que minha pretensa loucura seja a culpada pela aflição de sua alma, e não o seu crime, o seu trespasse, pois isso não vai curá-la, mas apenas esconder o problema e os sintomas da culpa. A maravilha, porém, é como Hamlet fala: ele compara a lisonja, o fingimento, com uma pomada, que pode ser aplicada sobre a alma, sobre a ferida da alma; essa lisonja, esse fingimento, apenas daria uma nova camada de pele, criaria novo tecido, sobre a pústula moral, a ferida fedorenta do crime, permitindo que, dentro da alma a infecção continuasse a correr e devorar com boca cancerígena, sem que pudesse ser vista, uma vez que oculta pela negação. É um exemplo maravilhoso de linguagem metafórica e de imagistica. Além disso, é uma imagistica util ao drama em que ocorre, pois a Dinamarca, na peça, é descrita constantemente como um local apodrecido pelo crime do regicídio; metáforas de doença corporal, de infecções e feridas abundam, e servem para criar uma atmosfera apreensiva, pesada, onde o próprio país surge como um ente ferido e doente. Esse tipo de trabalho linguistico é frequente em Shakespeare; sua linguagem sempre nos golpeia como maravilhosamente bela e inventiva.
Voltando a comparação de Guimarães Rosa com Tolstói, poderiamos colocar frente a frente suas duas obras máximas: Grande Sertão: Veredas e Guerra e Paz. Em primeiro lugar, este último romance é muito mais variado em número de personagens e de cenas, transitando entre vários nichos da sociedade (nos trechos citados anteriormente vemos cenas rurais, mas em Guerra e Paz temos bailes, festas, batalhas, duelos, jantares, idas ao teatro, fofocas entre mulheres, bebedeiras entre homens, vida na prisão, hospitais de feridos de guerra, cabanas de servos, ruas movimentadas das cidades, tribunais de guerra, solenidades de maçons, etc); o Grande Sertão permance preso a um só âmbito: o sertão. Esse não é, porém, o diferencial central entre os dois trabalhos. O problema começa quando Gumarães Rosa escolhe a primeira pessoa como forma de narrativa: isso restringe em muito sua liberdade, e ele sabia disso. A terceira pessoa (utilizada em Guerra e Paz) permite o transitar da linguagem entre várias formas de discurso (falas, pensamentos, fluxo de consiência) e de personagens, tudo isso separado e organizado pela estrada neutra da voz do narrador. Em Grande Sertão: Veredas, a voz que sempre soa é a de Riobaldo, o ex-jagunço, e estamos, por essa razão, sempre presos em suas frases desordenadas, suas palavras inventadas, sua mistura de termos chulos e de gírias e vocabulário acadêmico. Não é assim que um jagunço falava; é como um Antônio Houaiss falaria se quisesse imitar alguém do povo.
Como foi dito, é óbvio que Guimarães Rosa sabia que a utilização da primeira pessoa na narrativa lhe traria tais limitações. Por que ele escolheu, então, a primeira pessoa? Simples: raciocinou que, se quem está narrando a obra é um jagunço sem escolaridade, ele, Guimarães Rosa, ficaria livre para inventar várias palavras novas, para bagunçar como bem entendesse a ordem sintática das frases; sabia que todos iriam admirar a forma como ele “captava” o discursso do povo; sabia que todos elogiariam sua “criatividade” ao inventar tantas palavras novas. Resultado: um livro desagradável, incapaz de dar prazer ao leitor.
De Guimarães Rosa disse Vinícius de Moraes: “Ele só quer ser o Joyce brasileiro. Isso não é escrever". Essa é uma verdade absolutamente cristalina, porém muitas vezes temos vergonha ou medo de admiti-lo. Mas há que ser dito: os livros de Rosa são absurdamente chatos, mofados, e academicamente rançosos; são, dito de forma simples, desagradáveis de ler. Parece que um dicionário com gripe, ao tossir palavras misturadas e frases desordenadas, produziu grande parte de sua obra. E isso, como não pode cessar de ser dito, é uma grande pena, uma pena pelo fato de que Rosa possuía um dom muito grande para criar enredos cativantes. Não possuía, porém, conhecimento de vida (ou não sabia expressá-lo), nem habilidade poética.
O que Guimarães Rosa desejava? Ora, como todo e qualquer escritor, queria produzir obras memoráveis, que seriam lidas para sempre; queria, além disso, ser lembrado como um mestre da língua, e como um homem extremamente criativo em matéria de linguagem. Como foi revelado, o pobre homem não tinha talento poético, então, como poderia revelar sua criatividade verbal? Ora, tecendo todo um tecido lingüístico particular, criando mais palavras novas do que qualquer outro escritor. Ao que parece, também se orgulhava da profundidade filosófica de seus escritos. Tais desejos o derrotaram como escritor para todo o sempre; o que ele fez foi criar maravilhosos enredos, que mentes mais aptas e criativas podem, no futuro, utilizar como esqueletos para suas próprias obras.
O primeiro Tolstoi, aquele que compôs Guerra e Paz, que não havia sido absorvido ainda por um desejo de pregar idéias morais, religiosas e filosóficas, numa carta para o escritor P. D. Boborykin, de julho ou agosto de 1865, assim expressou-se sobre o objetivo do artista:
“O objetivo do artista não é resolver uma questão irrefutavelmente, mas forçar as pessoas a gostar da vida em todas suas inumeráveis, inesgotáveis manifestações. Se me dissessem que eu poderia escrever um romance que estabelecesse quais as atitudes aparentemente corretas diante das questões sociais, eu não perderia nem duas horas de trabalho nele; mas se me dissessem que o que eu escrevesse seria lido daqui a vinte anos pelas crianças de hoje e que elas iriam chorar e sorrir com a leitura e se apaixonar pela vida, eu devotaria toda a minha vida e as minhas forças a isso.”
É uma visão madura e saudável de qual é o objetivo primordial da literatura: o prazer de criar histórias, o louvar da vida e das pessoas, a celebração dos seres humanos. Como artista supremo que era, Tolstoi foi capaz de atingir suas metas, e situa-se atualmente entre os maiores escritores de todos os tempos (talvez o maior, ao lado de Shakespeare).
Quanto a Guimarães Rosa, eis uma declaração sua:
“Eu falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituano, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do checo, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração.”
Temos aqui um scholar, um estudioso da linguagem, um filólogo; porém a mente que absorveu tantos conhecimentos não era a de um escritor; Guimarães Rosa não era um homem extraordinariamente talentoso (pelo menos não na área da literatura), e seu cérebro, intoxicado por teorias e técnicas, vomitou obras literárias que, como os romances de James Joyce, são pesadelos e tortura para os leitores. Guimarães Rosa é um escritor lido por poucos, e é provável que, no futuro, venha a ser apenas uma curiosidade nos volumes acerca da história da literatura brasileira.
Eis minha opinião. Peço perdão se ofendi a algum admirador de Guimarães Rosa (mastambém não fiquem preocupados com isso, afinal o que importa minha opinião sobre o autor se ele é, de fato, um gênio? O tempo vai louvá-lo, quer eu goste dele quer não goste, caso ele realmente seja grande).
Abraços pessoal,
Matheus.
Este tópico é muito polêmico, e tenho até medo de irritar alguém com ele. Porém eu preciso desabafar: não suporto Gumarães Rosa, e não acho que ele seja um dos maiores escritores do mundo (como querem muitos críticos).
Antes de o pessoal querer me bater, peço que relembre o seguinte tópico do fórum: "Os piores clássicos que vc já leu", no qual vários dos membros do fórum criticam obras literárias consideradas canônicas: http://www.meiapalavra.com.br/showthread.php/18270-Os-piores-clássicos-que-você-já-leu
Tive de escrever sobre a obra de Gumarães Rosa para uma disciplina da faculdade: "Oficina de Leitura e Produção Literária", e acabei conseguindo dar voz aos meus sentimentos pelo famoso autor de Grande Sertão: Veredas.
Minha opinião sobre GR, em resumo, é a seguinte: trata-se de um homem capaz de imaginar histórias muito interessantes e cativantes, porém que não tinha nenhum talento poético e descritivo, e que, sob a influência de Joyce, principalmente, acabou por destruir os maravilhosos enredos de seus romances e contos.
Mas essa é apenas minha opinião; apenas queria desabafar e ver se existem mais leitores que sentiram o mesmo que eu ao ler Rosa.
Eis o texto que produzi sobre o autor:
Análise da obra de Guimarães Rosa
João Guimarães Rosa era um escritor dotado de um talento muito importante: a capacidade de criar histórias. Os enredos de muitos de seus contos são bastante interessantes, pois lidam com problemas universais; além disso, costumam ter um sabor lendário, quase épico. O Grande Sertão: Veredas possui uma história notavelmente empolgante, capaz de seduzir uma quantidade imensa de leitores. É melhor dizer, porém, que Grande Sertão: Veredas teria a capacidade de seduzir muitos leitores; na realidade, é um livro que cativa a poucos (geralmente estudiosos de literatura e linguagem), e essa deficiência se deve apenas a seus próprios defeitos.
Sim, Guimarães Rosa possui o talento de criar histórias e enredos, porém era um escritor muito ruim, dotado de uma deficiência colossal. Essa deficiência o acometeu por toda sua carreira, e fez de sua obra uma obra menor, meramente uma curiosidade literária. O grande defeito de Guimarães Rosa era sua linguagem, ou melhor, seu pedantismo; seu desejo em imitar James Joyce (que não merece ser imitado, pois mergulhou demasiadamente fundo em poças de mera técnica) não produziu bons frutos, pois criou uma complexidade inútil, uma complexidade que existe apenas por existir. Esse problema é tão grave, e ao mesmo tempo tão interessante, que merece ser estudado com cuidado.
Em primeiro lugar podemos analisar duas espécies muito diferentes de linguagem, usando como modelo dois escritores supremos: Shakespeare e Tolstói escrevem de forma muito diferente, mas cada uma de suas linguagens tem funções específicas, metas próprias. São linguagens que parecem úteis ao material que estão abordando, ao passo que a linguagem de Guimarães Rosa se parece com uma série de adornos.
Shakespeare se vale de uma textura poética magnífica, de metáforas sublimes, de símiles maravilhosos; a poesia é uma das mais antigas e mais elevadas formas de arte humana, e em nenhum lugar tal arte foi executada de forma mais bela do que em Shakespeare. As falas de seus personagens são válidas (como grande literatura) em um primeiro momento apenas por sua beleza, sua atordoante exuberância. Shakespeare não escrevia acerca de profundas verdades filosóficas, mas sim sobre lugares-comuns, sobre a sabedoria do dia-a-dia. Tudo o que disse já havia sido dito anteriormente, porém jamais de uma forma tão bela e memorável.
Além de sua beleza, a linguagem de Shakespeare é usada para criar personagens com personalidades maravilhosamente exageradas, como se o dramaturgo derrubasse fermento sobre suas consciências, fazendo-as extrapolar a barreira normal da mente humana. As pessoas em Shakespeare falam de uma forma que jamais qualquer um de nós falou, e possuem traços psicológicos artificialmente alargados. Por essa razão suas peças são amplamente cativantes: primeiramente pelo prazer da beleza pela beleza, da poesia pela poesia, e depois pela descoberta de criaturas tão curiosas e bizarras como seus personagens.
Deve ser lembrado que apesar de Shakespeare usar metáforas complexas, de chocar idéias abstratas com o concreto violentamente, ele jamais usa palavras desnecessariamente obscuras ou desconhecidas; se cria palavras, as cria por necessidade (e as criou em uma época em que seu idioma vinha se desenvolvendo furiosamente). É um poeta que tece imagens maravilhosamente frescas e novas, mas sempre com a mesma argila, com os mesmos tijolos por todos conhecidos; seu vocabulário é imenso, mas apenas por ser muito variado, e não demasiadamente técnico.
Quanto a Tolstoi, sua linguagem é absolutamente simples. Ele chama cada coisa pelo nome, não exagera nada: tenta relatar tudo com exatidão. Ele, como Guimarães Rosa, quis reproduzir em certas cenas a vida dos camponeses, dos mujiques pobres. A linguagem de tais pessoas, evidentemente, é diferente da linguagem dos membros da alta sociedade. Porém Tolstoi usa a linguagem popular como ela é, sem querer cunhar neologismos sobre neologismos, forçando os erros gramaticais do povo em construções que nada tem de popular. Os camponeses de Rosa não falam como camponeses; falam como professores de filologia tentando soar como camponeses.
Tolstoi não quer fazer de sua linguagem um espetáculo, um show de fogos de artifício: não quer fazer da linguagem seu maior foco de esforço. O que lhe consumiu mais tempo e atenção foi a descrição de detalhes, de todos os mais ínfimos detalhes do dia-a-dia, bem como do pensamento humano. Se fala, por exemplo, num bosque de outono, além das folhas secas e amareladas (que qualquer um se lembraria de citar) fala também do cheiro doce, porém azedo, das frutas apodrecidas no chão, do pólen e dos esporos no ar, dos musgos e do limo, do cheiro dos fungos e das folhas apodrecidas: seus sentidos captavam tudo.
É possível afirmar que o estilo de cada escritor deve ser respeitado, que gostos são gostos, que não se pode taxar algo de inferior com base meramente em gostos, em conceitos particulares. Ocorre, porém, que não se consegue encontrar qualquer utilidade para o estilo empregado por Guimarães Rosa: parece bastante óbvio que o escritor criou um estilo próprio apenas para afirmar que havia feito algo novo, que havia desenvolvido uma nova forma de narrar, uma forma toda sua. Mas invenções técnicas e estilísticas surgem muito vagarosamente, com contribuições de várias fontes, de várias mentes; o desenvolvimento é gradual. É por essa razão que os gêneros literários mais clássicos e consagrados, como o drama, a poesia lírica, o romance, o conto, são modelados muito vagarosamente, assumindo, com os anos, regras próprias. Nenhum desses gêneros simplesmente brotou, já completo, da mente de um escritor: foram cinzelados pela força de várias mentes. O drama, a poesia lírica, o romance, certa vez foram embriões. Guimarães Rosa quis criar um vocabulário todo próprio (imitando Joyce), mas sua invenção não serviu a nenhum fim, a não ser alimentar o orgulho de seu autor.
Por essa razão Guimarães Rosa atualmente é lido apenas por intelectuais, professores e scholars, e não pelo público em geral: as pessoas comuns não extraem prazer de sua obra, e, por não conseguirem entender o que é dito, simplesmente a abandonam. Não vale a pena gastar várias horas e dias decifrando uma linguagem artificial e particular, uma linguagem que não é nem bela (como a de Shakespeare) nem direta e facilmente inteligível (como a de Tolstoi); lendo Guimarães Rosa, nós nos colocamos frente a um enigma que gera dificuldade ao mesmo tempo em que não gera prazer. Se Guimarães Rosa tivesse usado uma linguagem simples e natural seus livros seriam muito mais lidos, bem como artisticamente mais perfeitos e belos.
Na realidade, é uma questão de poucos anos para que Rosa simplesmente não seja mais lido, uma vez que se tornará cada vez mais e mais obscuro. Era um autor de linguagem obscura para os próprios contemporâneos, como será, então, para os leitores futuros? Cervantes, nos dias de hoje, gera complexidade pelo envelhecimento de sua linguagem: o que se poderá dizer de Rosa? O escritor sabotou a si mesmo ao querer inventar ferramentas que tiveram a função de meramente divertir o inventor.
A linguagem simples de Tolstoi é muito mais forte do que qualquer página de Guimarães Rosa; como foi dito anteriormente, Rosa deveria preocupar-se mais com captar o máximo possível os detalhes do mundo que o circundava (cheiros, cores, texturas, roupas, gestos, expressões faciais, movimentos corporais, consciências), não com criar neologismos. O mais triste de seu fracasso decorre do fato de que seus enredos e histórias eram muito interessantes, originais, empolgantes, lendários e míticos. O Grande Sertão: Veredas é uma mina de ouro para diálogos e para o desenvolvimento psicológico dos personagens, porém deixou de ser o que poderia ter sido em razão da obsessão de Rosa em forjar uma linguagem nova.
Vejamos uma amostra de Tolstoi:
“A carruagem já estava atrelada, mas o cocheiro demorava a chegar. Entrara na isbá [Isbá é o nome de pequenas casas construídas com madeira de pinheiro, em vários países do norte da Europa, mas especialmente na Rússia. São moradias compostas por três compartimentos: o vestíbulo sem janela e sem lareira, um quarto aquecido e um quarto frio, mas com luz.] dos cocheiros. No interior da escura isbá fazia um calor sufocante; a atmosfera estava abafada e cheirava a pão recém cozido, a couves e a couro de carneiro. Alguns condutores de carruagem haviam se reunido ali e a cozinheira apressava-se junto do fogão, sobre o qual havia um doente coberto com um couro de carneiro.
- Tio Fiodor! Tio Fiodor! – exclamou, dirigindo-se ao doente, ao entrar na isbá, um jovem cocheiro, que trazia um casaco de pele e um chicote amarrado na cintura.
- Para que está chamando o Fiedka, vagabundo? – perguntou um dos cocheiros. – Vai embora, que estão te esperando na carruagem.
- Eu quero pedir as botas dele, as minhas estão muito velhas – respondeu o rapaz, sacudindo a cabeleira, enquanto arranjava as luvas no cinturão. – Será que está dormindo? Escuta, Tio Fiodor – repetiu, aproximando-se do fogão.
- Que é? – pronunciou uma voz fraca e um rosto avermelhado, muito magro, apareceu sobre a estufa. Uma larga mão descarnada, peluda e descolorida, levantou a coberta de pele de ovelha, para tapar o ombro ossudo, coberto por uma camisa muito suja – Me dá algo para beber, irmão. O que você quer?
O jovem estendeu-lhe uma canequinha d’água.
- Escuta, Fiedka – disse, hesitante – Eu acredito que agora você não vai precisar das botas novas; me de elas, pois acho que você não vai andar muito.
O enfermo inclinou sua cansada cabeça para o canequinho reluzente e, molhando seus ralos e caídos bigodes naquela água escura, bebeu sem forças. Sua barba estava desgrenhada e suja; seus afundados olhos vítreos ergueram-se com dificuldade para o rosto do jovem. Quando acabou de beber, quis levantar a mão para enxugar os lábios; mas não pôde e limpou-se com a manga do casaco. Calado e respirando com dificuldade pelo nariz, fitava os olhos do rapaz, enquanto reunia forças.”
(trecho do conto Três Mortes, Capítulo II)
Haverá alguém que não perceba a extrema pobreza da cena, de seus ocupantes; os cheiros, as vestes, a aparência: tudo isso se funde revelando com maestria a vida dos camponeses na Rússia do século XIX. É possível sentir a sensação de entrar numa isbá, quase como se entra em um galpão pobre de pessoas humildes no Rio Grande do Sul, com o cheiro do ferroso do fogão a lenha, do solo de chão batido, dos couros, da erva-mate.
Vamos citar mais um exemplo: eis a abertura do conto Kholstómer. A história de um cavalo:
“
I
O céu se abria cada vez mais alto, a aurora avançava na amplidão, o matiza de prata baça do orvalho começava a branquejar, o crescente ficava mortiço, a floresta mais sonora, as pessoas levantavam-se, e na estrebaria senhorial mais e mais se ouviam o bufo, a algazarra na palha e o relincho estridente e raivoso dos cavalos apinhados, brigando por alguma coisa.
- Ô! Calma! Estão com fome! – disse o velho peão ao abrir a cancela rangente. – Aonde pensa que vai? – gritou, ameaçando a egüinha que se enfiava pelo portão.
O peão Niéster vestia uma camisa curta à maneira cosaca sob um cinturão adornado, levava o chicote enrolado no ombro e o pão embrulhado numa toalha, preso à cintura. Nas mãos, a sela e o freio.
Os cavalos não se assustaram nem um pouco e muito menos se ofenderam com o tom zombeteiro do peão, fingiram que não era com eles e se afastaram calmamente do portão; e só uma velha égua baia de crinas largas baixou as orelhas e voltou-lhe as ancas rapidamente. Com isso, a potranca que estava logo atrás e nada tinha a ver com aquilo guinchou e escoiceou o cavalo mais próximo.
- Ô, ô! – gritou o peão, ainda mais alto e ameaçador, e caminhou para o canto do curral.
Dentre os cavalos que comiam (perto de uma centena), o mais paciente era um capão malhado que, sozinho num canto sob o alpendre, lambia de olhos cerrados uma viga de carvalho do galpão. Não se sabe que gosto encontrava aí o capão malhado, mas sua expressão era grave e pensativa enquanto lambia.
- Mimado, hein! – disse o peão, novamente no mesmo tom, ao aproximar-se, pondo sobre o esterco ao seu lado a sela e o suadouro sebento.
O capão malhado parou de lamber e, sem se mexer, ficou muito tempo olhando Niéster. Não sorriu, não se zangou e nem ficou carrancudo, limitou-se a inflar a barriga, deu um suspiro bem pesado e virou-se. O peão abraçou-lhe o pescoço e pôs o freio.
- Que suspiros são esses? – disse Niéster.
O capão abanou a cauda como quem diz: “Não é nada, não, Niéster”. Niéster colocou-lhe o suadouro e a sela, e o malhado murchou as orelhas, demonstrando talvez o seu descontentamento; por conta disso, o peão xingou-o e começou a apertar a barrigueira. O malhado respirou fundo, mas levou um dedo na boca e uma joelhada na barriga, de sorte que teve de soltar o ar. Apesar disso, quando os dentes apertaram o freio, mais uma vez murchou as orelhas e até olhou para trás. Mesmo sabendo que de nada adiantava, ainda assim achou necessário expressar que aquilo não o agradava e que sempre iria demonstrá-lo. Quando já estava selado, afastou a perna direita machucada e começou a mastigar o freio, sabe-se lá por qual razão, afinal já era tempo de saber que no freio não poderia haver gosto nenhum.
Niéster montou no capão pelo estribo curto, desenrolou o chicote, puxou a camisa cossaca acima do joelho, sentou na sela, com aquele estilo próprio dos cocheiros, caçadores e peões, e puxou as rédeas. O capão levantou a cabeça, revelando disposição de partir para onde mandassem, mas não se mexeu. Sabia que, antes de sair montado nele, Niéster tinha ainda muito que gritar, dar ordens ao peão Vaska e aos cavalos. Realmente, ele começou a gritar: “Vaska! Ô, Vaska! Você soltou as éguas? Onde se meteu esse diabo? Ô! Seu bêbado. Vai ver que ta dormindo. Abra, pras éguas saírem primeiro” etc.
O portão rangeu, e Vaska apareceu ao lado, zangado e sonolento, segurando um cavalo pelas rédeas e deixando os outros passarem. Os cavalos começaram a sair uns depois dos outros, pisando cuidadosamente a palha e cheirando-a; as potrancas, os potrinhos, as crias e as éguas pesadonas passaram uma de cada vez pelo portão, carregando o ventre cautelosamente. As potrancas comprimiam-se às vezes em duas ou três, as cabeças no lombo umas das outras e, apressadas em sair pelo portão, recebiam insultos dos peões. As crias se lançavam às pernas de éguas às vezes estranhas e relinchavam alto, respondendo aos relinchos curtos das fêmeas. Mal atravessou o portão, uma potranca travessa baixou a cabeça e olhou de lado, voltando as ancas e guinchando; mas, em todo caso, não se atreveu a passar à frente da velha égua cinza, a grega premiada Juldiba, que balançava a barriga com o andar pesado e pachorrento, num passo medido, como sempre, à frente de todos os cavalos.
Aquele lugar, tão animado e cheio, em alguns minutos ficou vazio e melancólico; sobressaiam tristes as colunas do alpendre vazio, via-se apenas a palha amassada coberta de estrume. Por mais habitual que fosse para o cavalo malhado aquela paisagem deserta, pelo visto ela o entristecia. Como se fizesse um cumprimento, baixou e ergueu a cabeça lentamente, suspirou o quanto lhe permitia a sobrecinta apertada e saiu mancando atrás dos cavalos, as pernas bem abertas em arco, carregando em suas costas descarnadas o velho Niéster.
“Já sei: agora é só a gente sair a caminho, que ele vai acender e começar a fumar o seu cachimbo de madeira com aro de cobre” – pensou o capão. “Sinto-me feliz porque de manhã bem cedo, com o orvalho, gosto desse cheiro que traz muitas lembranças agradáveis; o único inconveniente é que, com o cachimbo entre os dentes, o velho sempre apronta, imagina coisas sobre si mesmo, sentado de lado, obrigatoriamente de lado; e do lado que me machuca. Bem, deixa pra lá, para mim não é novidade sofrer pelo prazer dos outros. Eu já passei a achar nisso algum prazer de cavalo. Que fique com suas fanfarronices, coitado. Arrota valentia sozinho, quando ninguém o vê. Pois que fique sentado de lado” – refletiu o capão, enquanto movia cuidadosamente as pernas tortas, andando pelo meio da estrada.
II
Depois de levar a manada para o rio, perto de onde os cavalos deviam pastar, Niéster apeou e desselou o animal. Enquanto isso, a manada se dispersava lentamente pelo prado ainda não pisoteado, coberto de orvalho e de um vapor que subia do chão e do rio que o contornava. Ao retirar-lhe o arreio, Niéster coçou o pescoço do capão malhado, que respondeu fechando os olhos, em sinal de reconhecimento e prazer. “Você gosta, não é, cão velho!” – resmungou. O cavalo não gostava nem um pouco que o coçassem, só por delicadeza fingia gostar, e balançou a cabeça, concordando. Mas de repente, para surpresa total e sem qualquer motivo, talvez por supor que uma intimidade exagerada desse uma idéia falsa da importância do animal, Niéster afastou a cabeça do capão, levantou o arreio e bateu com a fivela da rédea em suas pernas mirradas, provocando uma dor forte, e sem dizer palavra subiu até um tronco, junto ao qual costumava sentar-se.”
(trecho do conto Kholstómer. A história de um cavalo)
Magnífico! Quantos detalhes, quanta riqueza de minúsculos toques de mestre, e que linguagem pura, cristalina, simples; mesmo crianças de dez anos entenderiam perfeitamente o conto. Todos os detalhes aparecem como absolutamente verdadeiros e naturais, como descrições perfeitas da realidade. O trecho em que o cavalo finge gostar das carícias do peão apenas para agradá-lo é um dos exemplos da imensa percepção de Tolstoi de cada aspecto do dia-a-dia: é um exemplo do detalhe que parece insubstituível e perfeito, porém que apenas um grande mestre seria capaz de detectar e utilizar. Tais percepções, tal vastidão de detalhes, são uma característica central em Tolstoi: um traço estilístico que acompanha toda sua obra. Guerra e Paz, em seu colossal corpo de mais de 2.000 páginas, apresenta infinitas cenas e personagens, o que é impressionante; mais impressionante, porém, é que todas essas cenas e consciências são descritas e apresentadas com a espécie de toques e detalhes expostos nos trechos citados. Tolstoi a tudo absorvia.
Vamos partir agora para Guimarães Rosa; eis a introdução de Grande Sertão: Veredas:
“– Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar.Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda a parte.”
O trecho revela apenas uma grande confusão de frases e palavras deliberadamente deformadas; o leitor, mal abrindo o romance, já se sente desencorajado a lê-lo, sendo recepcionado por uma lufada tão incompreensível de linguagem artificial.
Mas alguns defensores de Rosa dirão: autor está escrevendo poesia; o autor está utilizando o vocabulário dos simples; o trecho tem uma beleza selvagem; o trecho tem uma inventividade lingüística fabulosa; a artificialidade do trecho se justifica em face de sua beleza e profundidade, etc.
Tais afirmações seriam falsas: o trecho não é boa poesia; não reproduz a fala dos simples; não é esteticamente belo; não contém detalhes maravilhosamente verdadeiros e palpáveis... É apenas a forma de um escritor que não era dotado de capacidade poética produzir algo que, em sua mente, teria o mesmo valor estético da alta poesia; Guimarães Rosa sem dúvida julgava que o tecido verbal de seu romance era grávido de profundidade, de beleza e de valor poético.
Mas, falando em tecido verbal, citaremos aqui uma frase de Nabokov: “A textura poética verbal de Shakespeare é a maior que o mundo jamais viu, e é muito superior a estrutura de suas peças como peças.”. Shakespeare valia-se, como já dito anteriormente, de uma linguagem artificial, uma linguagem em certos momentos muito complexa e densa. Ocorre que essa linguagem jamais é entupida de neologismos grotescos, neologismos nascidos meramente para seu autor ter o prazer de dizer que os pariu; é uma linguagem que obtém efeitos maravilhosos principalmente pelo seu uso de imagens e de metáforas.
Vamos citar, então, Shakespeare. Um trecho breve será o bastante. Vamos para Hamlet, ato III, cena IV. Nesta cena o príncipe Hamlet confronta Gertrude, sua mãe, dizendo-lhe o quão graves são os seus pecados, uma vez que casou com o irmão de seu falecido marido (que era o antigo rei), sem atentar para a vileza, a podridão e a sujeira moral de seu ex-cunhado (que, afinal de contas, havia assassinado o pai de Hamlet, ex-marido de Gertrude). Em uma das falas, Hamlet diz o seguinte:
“ Mãe, pelo amor da graça,
Não aplique uma unção lisonjeira sobre a sua alma
Para que não o seu trespasse, mas minha loucura, fale.
Isso vai apenas dar pele e película ao lugar ulceroso,
Enquanto a podre corrupção, minando tudo por dentro,
Infecta sem ser vista.”
Hamlet quer dizer para sua: não finja que minha pretensa loucura seja a culpada pela aflição de sua alma, e não o seu crime, o seu trespasse, pois isso não vai curá-la, mas apenas esconder o problema e os sintomas da culpa. A maravilha, porém, é como Hamlet fala: ele compara a lisonja, o fingimento, com uma pomada, que pode ser aplicada sobre a alma, sobre a ferida da alma; essa lisonja, esse fingimento, apenas daria uma nova camada de pele, criaria novo tecido, sobre a pústula moral, a ferida fedorenta do crime, permitindo que, dentro da alma a infecção continuasse a correr e devorar com boca cancerígena, sem que pudesse ser vista, uma vez que oculta pela negação. É um exemplo maravilhoso de linguagem metafórica e de imagistica. Além disso, é uma imagistica util ao drama em que ocorre, pois a Dinamarca, na peça, é descrita constantemente como um local apodrecido pelo crime do regicídio; metáforas de doença corporal, de infecções e feridas abundam, e servem para criar uma atmosfera apreensiva, pesada, onde o próprio país surge como um ente ferido e doente. Esse tipo de trabalho linguistico é frequente em Shakespeare; sua linguagem sempre nos golpeia como maravilhosamente bela e inventiva.
Voltando a comparação de Guimarães Rosa com Tolstói, poderiamos colocar frente a frente suas duas obras máximas: Grande Sertão: Veredas e Guerra e Paz. Em primeiro lugar, este último romance é muito mais variado em número de personagens e de cenas, transitando entre vários nichos da sociedade (nos trechos citados anteriormente vemos cenas rurais, mas em Guerra e Paz temos bailes, festas, batalhas, duelos, jantares, idas ao teatro, fofocas entre mulheres, bebedeiras entre homens, vida na prisão, hospitais de feridos de guerra, cabanas de servos, ruas movimentadas das cidades, tribunais de guerra, solenidades de maçons, etc); o Grande Sertão permance preso a um só âmbito: o sertão. Esse não é, porém, o diferencial central entre os dois trabalhos. O problema começa quando Gumarães Rosa escolhe a primeira pessoa como forma de narrativa: isso restringe em muito sua liberdade, e ele sabia disso. A terceira pessoa (utilizada em Guerra e Paz) permite o transitar da linguagem entre várias formas de discurso (falas, pensamentos, fluxo de consiência) e de personagens, tudo isso separado e organizado pela estrada neutra da voz do narrador. Em Grande Sertão: Veredas, a voz que sempre soa é a de Riobaldo, o ex-jagunço, e estamos, por essa razão, sempre presos em suas frases desordenadas, suas palavras inventadas, sua mistura de termos chulos e de gírias e vocabulário acadêmico. Não é assim que um jagunço falava; é como um Antônio Houaiss falaria se quisesse imitar alguém do povo.
Como foi dito, é óbvio que Guimarães Rosa sabia que a utilização da primeira pessoa na narrativa lhe traria tais limitações. Por que ele escolheu, então, a primeira pessoa? Simples: raciocinou que, se quem está narrando a obra é um jagunço sem escolaridade, ele, Guimarães Rosa, ficaria livre para inventar várias palavras novas, para bagunçar como bem entendesse a ordem sintática das frases; sabia que todos iriam admirar a forma como ele “captava” o discursso do povo; sabia que todos elogiariam sua “criatividade” ao inventar tantas palavras novas. Resultado: um livro desagradável, incapaz de dar prazer ao leitor.
De Guimarães Rosa disse Vinícius de Moraes: “Ele só quer ser o Joyce brasileiro. Isso não é escrever". Essa é uma verdade absolutamente cristalina, porém muitas vezes temos vergonha ou medo de admiti-lo. Mas há que ser dito: os livros de Rosa são absurdamente chatos, mofados, e academicamente rançosos; são, dito de forma simples, desagradáveis de ler. Parece que um dicionário com gripe, ao tossir palavras misturadas e frases desordenadas, produziu grande parte de sua obra. E isso, como não pode cessar de ser dito, é uma grande pena, uma pena pelo fato de que Rosa possuía um dom muito grande para criar enredos cativantes. Não possuía, porém, conhecimento de vida (ou não sabia expressá-lo), nem habilidade poética.
O que Guimarães Rosa desejava? Ora, como todo e qualquer escritor, queria produzir obras memoráveis, que seriam lidas para sempre; queria, além disso, ser lembrado como um mestre da língua, e como um homem extremamente criativo em matéria de linguagem. Como foi revelado, o pobre homem não tinha talento poético, então, como poderia revelar sua criatividade verbal? Ora, tecendo todo um tecido lingüístico particular, criando mais palavras novas do que qualquer outro escritor. Ao que parece, também se orgulhava da profundidade filosófica de seus escritos. Tais desejos o derrotaram como escritor para todo o sempre; o que ele fez foi criar maravilhosos enredos, que mentes mais aptas e criativas podem, no futuro, utilizar como esqueletos para suas próprias obras.
O primeiro Tolstoi, aquele que compôs Guerra e Paz, que não havia sido absorvido ainda por um desejo de pregar idéias morais, religiosas e filosóficas, numa carta para o escritor P. D. Boborykin, de julho ou agosto de 1865, assim expressou-se sobre o objetivo do artista:
“O objetivo do artista não é resolver uma questão irrefutavelmente, mas forçar as pessoas a gostar da vida em todas suas inumeráveis, inesgotáveis manifestações. Se me dissessem que eu poderia escrever um romance que estabelecesse quais as atitudes aparentemente corretas diante das questões sociais, eu não perderia nem duas horas de trabalho nele; mas se me dissessem que o que eu escrevesse seria lido daqui a vinte anos pelas crianças de hoje e que elas iriam chorar e sorrir com a leitura e se apaixonar pela vida, eu devotaria toda a minha vida e as minhas forças a isso.”
É uma visão madura e saudável de qual é o objetivo primordial da literatura: o prazer de criar histórias, o louvar da vida e das pessoas, a celebração dos seres humanos. Como artista supremo que era, Tolstoi foi capaz de atingir suas metas, e situa-se atualmente entre os maiores escritores de todos os tempos (talvez o maior, ao lado de Shakespeare).
Quanto a Guimarães Rosa, eis uma declaração sua:
“Eu falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituano, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do checo, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração.”
Temos aqui um scholar, um estudioso da linguagem, um filólogo; porém a mente que absorveu tantos conhecimentos não era a de um escritor; Guimarães Rosa não era um homem extraordinariamente talentoso (pelo menos não na área da literatura), e seu cérebro, intoxicado por teorias e técnicas, vomitou obras literárias que, como os romances de James Joyce, são pesadelos e tortura para os leitores. Guimarães Rosa é um escritor lido por poucos, e é provável que, no futuro, venha a ser apenas uma curiosidade nos volumes acerca da história da literatura brasileira.
Eis minha opinião. Peço perdão se ofendi a algum admirador de Guimarães Rosa (mastambém não fiquem preocupados com isso, afinal o que importa minha opinião sobre o autor se ele é, de fato, um gênio? O tempo vai louvá-lo, quer eu goste dele quer não goste, caso ele realmente seja grande).
Abraços pessoal,
Matheus.